Areia

Quando se cultua algo, não é fácil deixar de cultuar. Há um tempo impreciso, um senhor começou a crer em algo totalmente diferente da sua cultura. Não era oposto e nem complementar, mas, em sua simplicidade, diferente. Embora não fosse muito ousado, as pessoas começaram a reclamar da sua tentativa de propagar a sua crença. Ofendidos com o simples ato de ouvirem uma ideia oposta, eles começaram a pedir a cabeça do desvirtuado. Então, durante uma noite de poucas estrelas e brisa seca, atearam fogo na casa onde o solitário cultuador morava e assim o assassinaram.

Apesar de terem matado uma pessoa, se passaram anos e eles continuaram as suas vidas normalmente. Até mesmo uma outra casa foi construída no mesmo terreno onde morava o cultuador. Com o sol brilhando lá fora, tudo parecia estar seguindo o seu rumo tranquilamente. Isso até a filha de um casal que morava nessa casa morrer sufocada mesmo não tendo nada a sufocando. A partir daí diferentes pessoas moraram nesse terreno, mas o número de mortos por sufocamento só aumentava. Inicialmente era preciso ficar dias no terreno para ser atingido por essa praga misteriosa, mas, com o aumento de mortos, o tempo necessário foi diminuindo e a quantidade de pessoas afetadas ao mesmo tempo aumentando.

Por causa disso, o prefeito convocou uma audiência pública e a cidade chegou a um consenso depois de muita discussão. Como nenhum membro da oposição teve a sua disposição coragem para entrar no terreno, foi aceito por unanimidade a queima da casa atual e a construção de cercas com fortes avisos para ninguém entrar no terreno. Assim foram estabelecidas as bases para que no futuro se tivesse uma lenda urbana local sobre um terreno amaldiçoado que sufocava as pessoas. Mesmo sendo lenda, pouquíssimas pessoas arriscaram atravessar a cerca durante séculos.

Atualmente há uma cerca de arame farpado e uma placa de ferro enferrujada dizendo “Terreno amaldiçoado: fique fora se quiser continuar vivo”. Do outro lado da cerca, só tinha um terreno coberto de areia que acabava numa densa floresta que indicava os limites da cidade. Nunca ninguém soube explicar racionalmente o porquê de não nascer nem sequer uma erva daninha naquelas terras, então a culpa era sempre da maldição. Tudo nessa cidade virou culpa da maldição.

Foi durante essa época em que Davi foi desafiado a entrar no terreno por um de seus amigos. Diversas pessoas diziam que já haviam entrado lá e que não era nada demais, mas ele continuava com um medo que vinha desde a sua infância. Já que a sua intuição dizia que era o caminho errado a ser tomado, recusou o desafio mesmo depois de ser zoado pelo seu amigo.

Logo depois de colocar a cabeça no travesseiro, a sua cabeça começou a remoer as zoações e ficou refletindo se não usou a sua intuição somente como uma desculpa para esconder o seu medo sem fundamento. O fato de ser um medroso o irritava profundamente e isso ele não conseguia aceitar. Então foi até o terreno, deixou o celular apoiado num carro para filmar a travessia e provar que não era covarde. Repetia em sua mente sem parar que diversas pessoas já tinham feito isso e que o buraco na cerca era uma prova. De fato, havia um buraco na cerca, mas todos que falaram que tinham passado haviam mentido e usado fotoshop. Mas, mesmo com as suas incertezas, se recusava a ser um covarde. É claro que ele reconhecia que também não era corajoso já que as palmas das suas mãos estavam suadas e fechadas, além de estar parado há bons minutos em frente do terreno só o encarando e de vez em quando ameaçando começar a correr. Ele se via como uma pessoa que enfrentava o medo, estando entre o corajoso e o medroso para pegar o que há de melhor em cada grupo.

Depois de ficar encarando por uns cinco minutos, começou a dar passos desconfiados em direção ao buraco e parou bem perto para analisá-lo um pouco mais. Mediu com os olhos o quanto teria que se abaixar e pensou nos movimentos que teria que fazer para não se cortar. Respirou fundo e o ar saiu de maneira trêmula quando soltou. Ignorando isso, continuou com os movimentos que havia planejado e passou pela cerca sem se cortar. Assim que chegou do outro lado, pensou em todo drama que havia criado só para entrar num lugar em que só tinha areia. Logo quando começava a dar uma risada tímida, caiu no chão paralisado. O medo o deixava com uma sensação de que a pressão nos seus olhos havia aumentado e que eles estavam em ponto de saltar do seu rosto. Ele piscava desesperadamente como se pedisse socorro já que não conseguia mover a sua boca e nem mesmo murmurar. A areia começava a girar em pequenos redemoinhos indo em direção ao seu corpo. A velocidade em que ela o atingia tirava sangue de sua pele e lágrimas de seus olhos. Lentamente ia açoitando e encobrindo todo o seu corpo até restar de fora somente os seus olhos, nariz e boca. Os redemoinhos pararam quando já não restava quase mais nada da sua pele. A areia que encobria o seu corpo estava molhada com o seu sangue, ficando mais rígida e avermelhada. A alegria de ter parado de sentir a dor do açoitamento foi substituída em poucos segundos pelo horror de ver uma nuvem de areia se formando acima da sua cabeça. Como em uma tempestade violenta, a areia caiu do céu com máxima velocidade, o atingindo com tudo. Embora o seu corpo também tivesse recebido o impacto, o foco era a cabeça. A areia prontamente o deixou cego e, logo depois, começou a entrar em sua boca e nariz. O ar não chegava mais aos seus pulmões, somente areia. Lentamente ele foi sendo sufocado sem conseguir mover nada além dos espasmos naturais do corpo. Ele teve durante minutos a sensação dolorosa e agonizante de ter algo preso na sua garganta impedindo a passagem de ar enquanto o seu corpo e a sua mente clamavam por um oxigênio que nunca iria chegar. Tinha certeza que havia morrido, mas esse não foi o seu último suspiro. De alguma maneira, Davi acordou do lado de fora do terreno dando uma grande puxada de ar pela boca.

Assim que retomou o ar, um turbilhão de pensamentos e lembranças sobre o que tinha acabado de acontecer atingiu a sua cabeça. Ele estava confuso demais para entender alguma coisa e assustado o suficiente para nem tentar. O medo fez o seu coração acelerar e a única coisa que queria fazer era correr para algum lugar calmo. Então foi isso que ele fez. Simplesmente pegou o seu celular e saiu correndo em direção a floresta. Chegando lá, ficou agachado debaixo de uma árvore tentando tomar coragem para ver a filmagem. Logo após dar o play, lágrimas caiam a cada segundo de reprodução e foram aumentando de fluxo. Ele lembrava com perfeição sobre tudo que havia sentido, cheirado, visto e ouvido, mas durante todos os trinta minutos de vídeo ele somente estava parado em pé dentro do terreno sem fazer absolutamente nada. Entre lágrimas e incompreensões, não tinha mais forças para fazer nada, então somente se encolheu em posição fetal e tentou achar algum bom sonho em meio aos seus inúmeros pesadelos.

No dia seguinte, reuniu forças para ir para casa, tomar um banho, beber um café e tentar esquecer tudo que tinha acontecido no dia anterior. Como um disco arranhado, a sua cabeça repetia que, se estava vivo, não tinha mais que temer o terreno. É lógico que entrou em um acordo de nem passar mais perto dele, mas por respeito e não por medo.

Depois que terminou de fazer isso, decidiu que já estava na hora de ir para a escola. Obviamente ele não queria isso, mas precisava de algo para distrair a sua mente por mais entediante que fosse a tarefa. Além das aulas, também poderia conversar com os seus amigos sobre esportes, jogos ou qualquer outra coisa e assim não pensar na noite anterior. Davi foi o primeiro a chegar na sala e o amigo que o desafiou foi o segundo. Ele não sabe o que aconteceu em sua cabeça, mas começou a culpá-lo de tudo que havia acontecido. Uma raiva dominou a sua mente e transpareceu em suas feições que ficaram sérias enquanto a sua testa era bruscamente franzida. Os seus olhos ficaram fixos em seu amigo como se fosse um predador pronto para avançar sobre a sua presa. Apesar desse claro aviso, o amigo pensou que era uma brincadeira e perguntou se ele havia tomado o café da manhã. Quase não dando tempo para terminar a frase, Davi empurrou com força a sua mesa para o chão e começou a correr na direção do seu amigo que, por estar surpreso com a cena, nem sequer esboçou uma reação. Foram tantos socos desferidos que os nós das mãos de Davi ficaram vermelhos a ponto de não se diferenciar mais qual vermelho era do sangue de seu amigo e qual era o de sua pele. A cada soco dado o mesmo sentimento de querer matá-lo surgia pois ele o culpava. O amigo ficou tão desfigurado que era impossível de ele sobreviver já que não tinha mais um caminho para respirar pelo nariz e a boca estava obstruída por um crescente volume de sangue.

Depois que aconteceu o último batimento cardíaco do seu amigo, a calma começou a tomar conta do corpo de Davi e logo em seguida o horror pelo que tinha feito. Mais uma vez, estava desesperado. Correu em direção a saída mais próxima, evitando as câmeras já que não queria ser pego. Para não virar um suspeito, teria que se livrar da única testemunha que o viu entrando na escola. A sua mente só repetia incessantemente que para atingir o seu maior desejo, o de se livrar de suspeitas, era só matar o guardinha da entrada. E ele queria, sem sombra de dúvidas queria muito, não ser considerado um assassino.

Enquanto estava remoendo algum plano em sua cabeça, viu um policial bem velho fazendo uma ronda para supostamente proteger a entrada dos alunos na escola, mas que na realidade ficava em um canto escondido fumando. Não querendo perder a oportunidade, Davi pegou uma pedra pesada e levemente pontuda do chão e se aproximou por trás do policial sem que ele percebesse. Chegando perto dele, ergueu o seu braço direito o mais alto possível e o desceu com o máximo de força aliada a velocidade. Embora mirasse na cabeça do policial, acabou acertando a nuca dele. O efeito, entretanto, foi certeiro e ele acabou desacordado.

Como o plano tinha dado certo até agora, continuou com ele. Pegou a arma do policial e tirou a camisa dele para usá-la como máscara. Com a arma em punho, ficou agachado durante um tempo enquanto via o seu alvo de longe. Davi encheu os seus pulmões de ar e começou a correr em direção a entrada da escola. Quando já estava perto do seu alvo, o guardinha virou o rosto em sua direção e os olhos assustados dele pediam misericórdia. Entretanto Davi não a teve já que não queria ser descoberto e acertou dois tiros no peito de seu alvo sem nem hesitar. O guardinha, depois de alvejado, tentou se manter em pé se escorando no muro, mas acabou escorregando lentamente.

Para escapar do seu atentado, correu em direção a floresta. Não a conhecia como a palma de sua mão, mas sabia da existência de diversos atalhos e saídas. Porém, a cada saída que tentava, via que os policiais já estavam a vigiando. Na terceira em que tentou sair, ouviu o latido dos cães policiais o perseguindo. Querendo se livrar deles, não pensou duas vezes em correr mais para o centro da floresta. Para atrasar os policiais, descarregou o resto das balas em direções aleatórias. Como não sabiam se Davi estava tentando os acertar ou não, começaram a revidar atirando em direção aos sons que ouviram. Um dos tiros acertou em cheio a coxa de Davi, mas, mesmo assim, ele não parou e continuou a correr. Ignorou a dor e o rastro de sangue o máximo possível, chegando a se arrastar para não deixar de se locomover. Ele não queria ser pego.

Quando chegou à noite, ele se encolheu no pé de uma árvore para tentar se aquecer um pouco. Sabia que não conseguiria sobreviver, sendo morto pelo ferimento ou pelo frio. Não queria morrer, mas já não tinha mais controle sobre isso. Lentamente foi adormecendo e, nos minutos finais de sua vida, começou a rever tudo que tinha vivido. A última coisa que viu foi uma parte da experiência extracorpórea que teve no terreno amaldiçoado da qual não se lembrava. Davi estava atrás do seu corpo soterrado de areia e em sua frente estava um velho usando roupas antigas. A sua volta havia dezenas de pessoas com diferentes idades conversando entre si e se divertindo. Aparentemente, ele e o velho já haviam conversado muito, mas a lembrança dele começava quando era passada uma missão para ele. Davi não saberia, mas estaria sendo vítima das suas vontades. Os atos dele serviriam de alerta para uma cidade que não parava de se deixar levar pelos seus desejos, mesmo que esses desejos contradissessem as suas crenças. Foi através disso que o velho cultuador foi morto e que cada um de seus convertidos foram parar naquele terreno. As vontades adquiridas a qualquer custo e cobiçadas de qualquer maneira envenenam a alma das pessoas e as relações entre elas, custando tudo que elas têm, inclusive as suas convicções. Tudo isso foi explicado em uma carta que escreveu inconscientemente durante um de seus breves sonos da noite anterior.

Depois de entender o porquê de ter feito o que tinha feito, abriu os olhos uma última vez e esboçou um pequeno sorriso. O seu último pensamento em vida antes de ficar preso no terreno amaldiçoado para sempre foi que ele havia contraído um verme ao comer areia e que, por essa atitude infantil, teve seu cérebro controlado por essa horrenda criatura.