Ekaterina e a Boneca Russa

Ekaterina parou em frente à loja de artesanato pela quarta vez só naquela semana, fingindo observar a infinidade de objetos de madeira através da vitrine, enquanto a chuva forte começava a deixá-la encharcada.

Já passava das dez da noite e, por conta do toque de recolher recém-estabelecido no centro regional de Belgarden, a estreita rua estava deserta, embora ainda restasse quase uma hora, pois uma grande quantidade de pessoas havia desaparecido no último mês.

Sua semana havia sido horrível e parecia que sua má sorte ainda não tinha acabado. Sentia-se levemente frustrada. “O amor humano é muito ruim…” Sabia que era um pecado esperar que correspondessem às suas expectativas, mas, apesar disso, o belo homem da lojinha à sua frente havia conseguido chamar sua atenção…

Tinha decidido, no dia anterior, que finalmente entraria ali, então não pensou muito antes de empurrar a porta de vidro e ouvir o tilintar do sino ecoar pelo ambiente.

O ar parecia seco e quente, apesar do temporal que caía do lado de fora. A iluminação era pouca e as esculturas estranhamente bonitas a encaravam de cada canto da loja, fazendo-a sentir-se extremamente observada e atordoada enquanto caminhava devagarzinho, olhando uma por uma.

Parou em frente a uma prateleira de pequenos totens perfeitamente talhados, se sentindo maravilhada com o talento de quem quer que fosse o artesão daquele lugar.

– Bem-vinda…

A voz rouca e arrastada como o silvo de uma cobra veio do canto da loja, surpreendendo-a, onde um velho repousava no que parecia ser uma cadeira de balanço. A cabeça era cheia de pequenas manchas marrons, careca e enrugada, e os olhos pouco expressivos pareciam atravessar seu corpo e sua alma, opacos como os de um cego.

Manteve-se em silêncio por alguns segundos até lembrar-se do terceiro, embora tenha amaldiçoado seu sotaque em seguida.

– Obrigada, senhor…

Outra voz irrompeu o ambiente em sequência, desta vez mais firme e veio da porta que parecia dar acesso ao estoque da loja.

– Avô, não assuste os clientes assim. – O belo homem parecia irritado e colocou a mão na testa, jogando os cabelos para longe dos olhos e Ekaterina se sentiu novamente atraída para ele.

– Eu não estava assustando a bela moça, só dei as boas vindas. Não é por estar velho que tenho que ficar mofando.

O senhor fez uma expressão séria enquanto o homem revirava os olhos.

– Não vamos discutir isso na frente da moça… – Suspirou, se recompondo. - Seja bem-vinda! Sou Trevor e esse é o Avô. – Estendeu a mão.

– Ekaterina. – Apertou a mão grande, sentindo-se vulnerável. – Sem problemas… Não foi uma susto tão grande assim. – Oitavo. Deu um sorriso.

– Desculpe a situação, ele gosta de ficar no canto assustando as pessoas. - Disse inquieto, olhando para o velho pelo canto do olho.

– Sem problemas.

– O que gostaria? – Demorou um pouco para processar a pergunta e ouviu o velho fazendo alguns barulhos estranhos no canto.

– Hã… Vocês têm bonecos russas? Matrioskas…

A loja pareceu ficar silenciosa por longos segundos, enquanto o belo homem a encarava seriamente, analisando suas expressões minuciosamente.

– Vou dar uma olhada no estoque. – Disse se retirando.

– Bonito, não é? – O velho perguntou.

– O quê…?

– Os totens. – Zombou.

– Ah! São sim, bastante… – Desconversou rápido.

Ele voltou a fazer os sons estranhos, que ela finalmente percebeu ser uma risada engasgada.

– A senhorita é russa? – O velho perguntou.

– Sou.

– Notei pela forma como fala. Gosta das matrioskas?

– Sim, as bonecos ajudam a lembrar de casa. – Explicou.

– Por isso passou a semana encarando nossa loja?

Manteve-se em silêncio.

– Se quiser, pode pegar um dos totens, de presente.

– Não precisa. Obrigada. – Sexto.

Ele a chamou mais para perto com um gesto de mão e ela se aproximou com cuidado.

– Não se preocupe. Trevor ainda não sabe que passou a semana tentando espionar ele pela vitrine. – Sussurrou.

– O quê? Mas eu não…

– Não precisa tentar me enganar. - Falou e ela pôde notar a boca sem dentes se retorcer em um sorriso.

Ekaterina voltou a passear pela loja de forma agitada e encontrou esculturas muito realistas em uma parte mais afastada. Eram todos muito bonitos e chegavam a parecer reais de tão bem esculpidos, mas tinhas expressões estranhas, como se sentissem dor.

– Trevor quem fez?

– Exatamente… – Disse antes de dar um grito pelo mais jovem. – Trevor! Vem ajudar o Avô a voltar pro quarto! – Baixou o tom de voz novamente. – Você daria uma bela boneca russa para nossa loja, não acha?

Ela deu um pulo, pouco antes de Trevor aparecer com uma carranca e levar o velho para dentro, enquanto ele resmungava sobre uma dor nas costas.

Seu coração estava batendo tão forte que tinha quase certeza que as pessoas poderiam ver seu tórax se mover, enquanto se mantinha encarando as estátuas de gesso à sua frente, decidindo se sairia correndo dali. Era isso.

Virou-se, planejando ir embora, mas Trevor já estava de volta, encarando-a.

– Não ligue muito para o Avô, ele é só um velho cego que gosta de assustar as pessoas. – Disse, virando a placa da loja para “fechado” e começando a organizar algumas esculturas nas prateleiras.

– Cego? – Perguntou, tentando engolir a própria e inexistente saliva. Sua boca estava seca.

Ele só concordou com a cabeça, sem parecer dar muita importância, mas Ekaterina sabia que ele ainda estava observando-a pelo canto do olho, então passou a olhar os itens mais próximos da saída.

Trincou os dentes quando percebeu uma aranha enorme próxima a si, enquanto repetia o décimo incessantemente em sua mente e tentava se afastar calmamente.

– Nós temos algumas matrioskas lá dentro, a propósito, mas elas ainda não estão totalmente prontas, falta terminar de pintar. – Ela parou seus movimentos, indecisa. Não sabia se devia ter cuidado ou seguir suas vontades.

– Posso dar um olhada mesmo assim? – Questionou, franzindo a testa.

– Claro! – Ele disse, dando um sorriso. – Me acompanhe, por favor.

Viu-o desaparecer loja adentro e pôs a mão na maçaneta da saída, confirmando que ele trancara e levara a chave, então o seguiu, sentindo as mãos tremerem levemente. Não estava certa sobre o que estava fazendo, mas continuaria mesmo assim, precisava disso esta noite.

– Você quem fez os esculturas lá no frente? Aqueles realistas…

– Sim, algumas… Mas em geral são obras do Avô, de quando ele ainda estava na ativa, sabe? Mas elas não ficam à venda.

Entraram num cômodo cheio de entalhes de madeira e logo avistou algumas peças que pareciam matrioskas, mas a pintura ainda não estava completa. Eram lindas, certamente.

Ekaterina tinha quase certeza que tinha feito a maior besteira da sua vida entrando ali.

O ambiente ficou silencioso por um longo período.

– O quê…?

O som de um baque abafado pelo carpete ecoou baixo pelo ambiente. Um suspiro foi o único ruído no lugar por cerca de um minuto e então foi possível ouvir sons de metais se batendo, seguido de um corpo sendo arrastado e a porta sendo trancada.

– Satã sabe o que pede!

[…]

A mais linda matrioska ostentava uma bela cor carmim em suas roupas, enquanto repousava sobre uma prateleira de vidro bem iluminada. Trevor tinha sido uma presa tão fácil, que toda a agitação de Ekaterina explodiu em um êxtase enquanto via o corpo cair ao chão…

Usar o sangue para pintar a boneca russa havia sido uma ideia de última hora, quando já tinha preparado o lugar para o ritual de costume, entretanto não atrapalhou em nada seu planejamento… Além de tê-la deixado com as lembranças incríveis de vê-lo acordar confuso e nervoso.

Havia ficado tão incerta inicialmente, que achou que não ia dar conta dessa vez e quase desistiu, mas, quando estava sozinha com ele, soube exatamente o que fazer.

O melhor de tudo foi encontrar o cego e velho Avô em um cômodo próximo e trazê-lo para morrer junto de seu pupilo. Ele não parou de gargalhar por um segundo sequer, enquanto dizia para ela furá-los com mais força, e foi a primeira vez que pôde encontrar alguém tão divertido e parecido com ela, embora nada a tivesse deixado mais extasiada do que o assustado Trevor, que mal podia imaginar que a própria presa seria, na verdade, o predador.

Sentia que Satã tinha ficado duplamente satisfeito, afinal, tinha conseguido duas vítimas de uma vez só e ainda não havia deixado de lembrar-se de seus mandamentos durante o processo.

E agora tinha a linda boneca para sua coleção de suvenires.

Sorriu, sentindo um enorme prazer atingir sua mente, enquanto via a vitrine da loja de artesanato com uma placa anunciando sua venda, uma semana depois.

Agradeceu mentalmente.

“O amor humano é muito ruim… mas o amor de Satã nunca peca.”

Seu amor por ele era maior do que tudo, nada mais importava.

Patricia Sales
Enviado por Patricia Sales em 06/08/2019
Código do texto: T6714148
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