Um galo canta de manhã

Percorria a faixa azul. Era domingo, afinal. Dia de presença obrigatória na Missa Geral, o que também lhe exigia um relatório dos temas tratados no encontro. Respondia um questionário moral - abrangia desejos e ações. Pensou em impurezas essa semana? Não. Esforçou-se para percorrer a hierarquia de grupos? Sim. Percebeu algum traço de revolta em algum parente, vizinho ou amigo? Não. Sim. Não. Não. Sim.

Normal. Da rotina. Como um galo canta de manhã.

Depois da missa e do relatório entregue, à noite, se desbloqueiam as linhas do lazer. Os trajetos aparecem na tela dos aparelhos que cada um deve ter em mãos. Sempre. É de ordem constitucional, ordem máxima, inclusive estimulada pela igreja. Por Deus. Para nenhuma ovelha se perder.

As linhas são reorganizadas toda a semana. Nunca percorrem os mesmos lugares - para que não se reconheça onde está. Isso pode trazer a revolta - aquela coisa que colore as bochechas de vermelho e mata.

0223 percorria silenciosamente uma de suas opções de lazer - a conquistou depois de preencher as 20.000 horas dedicadas ao País e a seu Deus, trabalhando, se mantendo puro e comprovando com os registros de seu aparelho. Os trabalhos que lhe eram dados variavam pouco - por ser jovem, sua força era muito útil nos campos de trigo, cuidando das máquinas dentuças e impedindo que falhassem.

Sua nova faixa desbloqueada de lazer o levava a um grande shopping. Ali, diferente de antes, poderia comprar rações de melhor qualidade, e, quem sabe, conseguir experimentar um pouco de café. Seu pai falava muito do café, do cheiro, da energia que provocava. Ficou raríssimo depois da Reforma - dizia-se que era perigosamente estimulante.

Ali dentro, sentiu-se grato por seu esforço. Com o aparelho na mão, continuou percorrendo as linhas que os levavam às lojas, aos passeios destinados a ele e ao seu grupo, agora, prateado. De segunda linhagem.

O passeio o levou até uma padaria específica. Sentiu o cheiro do pão. Aproveitou esse momento. Há pouco tempo, uma nova discussão veio à tona - a de que o olfato era perigoso e poderia causar revoltas e revoluções. Seduzir. Os gostos e o tato, também. Viu na missa. Fez um relatório sobre. Por isso, seriam entregues aos indivíduos máscaras e luvas que lhe ajudariam a conquistar a pureza e percorrer suas linhas em paz, sem distrações.

Pensou que a Reforma lhe trouxe meios de ir superar sua natureza má do ser humano. Aquela de sentir coisas, de ser irracional, sexual. Se deixar levar. Por sorte, não conseguia se lembrar muito da época em que essas coisas feias lhe eram permitidas.

Ouviu dizer, ainda, sobre um tempo em que faixas não estavam no chão e as pessoas poderiam percorrer os caminhos livremente, sem saber pra onde estavam indo. Imagina, que confusão! Pra onde iria, agora, se sumissem as faixas? Quem melhor do que o próprio País pra te dizer aonde ir? Fica mais prático. As opções são dadas e com certeza são as melhores.

Passou um tempo sentado nas mesinhas da padaria, ao ar livre, tentando ignorar o cheiro do pão.

Recebeu uma notificação em seu aparelhinho.

Dizia para se apressar a percorrer as faixas que o levavam ao seu dormitório. Caso contrário, poderia perder seus novos privilégios.

Nunca havia recebido ordem parecida. Com pressa, pegou o trem para a Cidade Dormitória. Tentou se acalmar. Aqueles indivíduos agitados também eram acusados de revoltosos. Irracionais. Sexuais. Suava frio.

Trabalhava tanto pra se manter puro. Pra desbloquear novos caminhos. Todos aqueles que Deus poderia lhe oferecer.

Mesmo assim, desesperou-se. Já fora do trem, resolveu correr as duas quadras de distância que o levariam para seu quarto.

As faixas no chão não apareciam na tela do objeto. Tentou lembrar-se dos caminhos e acabou se perdendo. Entrou numa rua sem dormitórios, vazia.

O aparelhinho detectou sua rapidez e apitou muito alto. 0223 parou. Essas eram as diretrizes. E as notificações, seriam ignoradas?

Guardas ouviram o barulho e vieram ao seu encontro. Perguntaram sobre sua pressa. Algumas pessoas que também voltavam pra casa passavam, cumprimentando os guardas, ignorando 0223.

Eles viram a tela nua de faixas. O jovem tentou explicar que tentava voltar pra casa pra entender o acontecido. Suava.

O espancaram até a morte ali mesmo.

As pessoas continuavam percorrendo seus trajetos.

Normal. Da rotina. Como um galo canta de manhã.

Afinal, o que faria uma ovelha perdida?