Sombras de uma viela escura
TESTEMUNHA — A lua brilhava em contraponto à neblina quando ouvi um forte estrondo. Meus passos acelerados cessaram. Parei, ofegante. De súbito, as luzes da sala se acenderam. O lampião da viela tinha luz fraca, tanto que pude ver as silhuetas surgindo do fundo, no interior da casa, com as sombras projetadas através das cortinas para a rua, servindo as velas da casa como contraluz. Decidi parar no mesmo instante em que a música começou. Os dois corpos pareciam preparados. Era um casal. As mãos se uniram, e o cavalheiro puxou a dama para perto de forma brusca, dando início ao que parecia uma coreografia, que se seguiu. Passos à direita, um giro; um empurrão que afastou os corpos e os uniu no momento seguinte; movimentos de cabeça. A melodia espanhola parecia servir de fundo para o que se dava. Uma dança? Paso doble. O homem cravou a mão nas costelas de sua dama e puxou, fazendo-a rodopiar várias vezes até parar, batendo o rosto contra a parede. Enquanto ela se virava, o cavalheiro tirou da cintura sua capa — vermelha, eu imaginava. Abaixando a cabeça, a dama tomou impulso e foi de encontro ao par, que desviou em um passo, apunhalando-a pelas costas. Ela caiu de joelhos. Suspirou. A capa foi erguida e, num só movimento, o dominador a posicionou na garganta da mulher. Puxou a presa para cima e enrolou a capa ao redor dela. Afastou-se, enquanto a criatura se livrava do tecido, jogando-o para longe. Ela ergueu os braços e, num gesto de legítima defesa, marchou ao encontro do macho no ritmo da música. Cada batida, um passo. Uniram-se novamente e cortaram a sala em passos truncados e praticamente sincronizados. Até que a criatura ameaçou cair, e o dominador a segurou pelas costelas puxando-a para perto. Os lábios se encostaram. Um tabu. O homem ergueu a cabeça e empurrou sua fêmea, que cambaleou para trás. Pingou algo de seu rosto inclinado: não soube se eram lágrimas ou sangue. O quadro da parede já estava por um fio e caiu nas costas da dama. Mesmo com a música, pude ouvir o estilhaço de vidros. O homem puxou da cintura um objeto pontiagudo, um canivete espanhol. Era o clímax, o ápice da música. Meu coração acelerava. A criatura parecia implorar para que seu sofrimento terminasse — que interpretação!. Mas o homem parecia ignorar. Aproximou-se. Cravou a faca contra o peito da dama, a qual não emitiu som algum. Suspirava pela ultima vez, até cair no colo de seu assassino, dando fim à melodia. E assim ficaram: o homem e sua criatura. Eu aplaudi e contemplei em silêncio.
Otávio Sarti
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