"Política não é jardim-da-infância;
em política obediência e apoio são a mesma coisa."
Hanna Arendt
O aroma de purê de maçã e joelho de porco assado espalhava-se pela sala aquecida pela lareira onde o fogo crepitava. A luz tênue tornava o ambiente familiar ainda mais acolhedor.
Terminado o jantar, nos sentamos em volta do piano. Minha mãe tocou as antigas canções germânicas que nos ensinaram na escola e que contavam sobre nossos ancestrais nórdicos, enquanto nós a acompanhamos cantando.
Meu pai fumava sentado em sua poltrona. Naquela noite, envergava seu uniforme de campanha da Grande Guerra. Estava recostado, os olhos fechados, saboreando a desforra da Alemanha.
Naquele dia, Paris tinha caído. Era o ano de 1940 e a Alemanha era invencível.
No dia seguinte eu me juntaria às tropas da Wehrmacht e marcharia pelo Führer e pela Alemanha. Por isso meu pai havia me olhado durante todo o jantar com orgulho. Minha mãe havia tentado esconder a preocupação e a tristeza por ter que entregar seu filho à guerra, enquanto minha pequena irmã, com seus cabelos louros quase brancos arrumados em duas tranças que pendiam de cada lado de sua cabeça bem feita, me olhava com um misto de orgulho e preocupação.
Eu estava ansioso por fazer parte daquilo e sabia que não havia razões para temer. Estávamos sob o comando daquele homem enviado por Deus para restaurar o orgulho da Alemanha e até aquele momento todas as suas promessas tinham se tornado realidade.
Nós seguiríamos o Führer até o fim.
Então, um tiro isolado cortou o silêncio da noite e me arrancou daquela lembrança fazendo o calor da lareira daquela havia sido minha última noite em casa dar lugar ao ar congelado da Rússia. Estava tão frio que mesmo a simples tarefa de respirar exigia uma força sobre-humana.
JÁ NÃO ERA 1940 e tínhamos aprendido que não éramos invencíveis.
Nunca tinha visto tanta neve em minha vida, nem mesmo nos piores invernos de Berlim, e sequer imaginava que era possível sentir tanto frio e não morrer.
Do meu esconderijo eu podia ver, naquele mundo totalmente branco, os corpos de centenas de alemães mortos pelo inimigo russo e por outros inimigos ainda mais traiçoeiros. O frio, a fome, o tifo.
Não conseguíamos entender como aquilo era possível. Nós sabíamos que éramos muito mais fortes e organizados e que, como nos tinham dito tantas vezes, aqueles russos, assim como os polacos, os judeus e os ciganos, eram sub-humanos. Estávamos ali para conquistar o espaço vital para a Alemanha a levar a civilização assim como havíamos feito com grande parte da Europa Ocidental, mas, apesar de todo nosso sacrifício Stalingrado ainda se mantinha misteriosamente em pé ao longe.
A cada dia nossa situação se tornava mais miserável e muitos de nós já não se envergonhavam por chorar como crianças, chamando por suas mães e mulheres.
As rações diminuíam visivelmente.
Nossos uniformes de inverno nunca chegaram.
Não havia qualquer esperança.
Mas a responsabilidade por toda aquela desgraça era nossa. Devíamos ter tomado Moscou muito antes do inverno chegar, mas nós decepcionamos o Füher e quando o alto-comando solicitou à Berlim autorização para recuar sua resposta foi clara: “A vitória ou a morte!”.
E nós obedecemos.
Naquela noite, enquanto eu olhava o céu onde dezenas de milhares de estrelas brilhavam alheias à loucura humana tive a certeza de que nunca mais veria minha casa. Nunca mais ouviria a voz séria do meu pai exaltando a grandeza de nossa pátria, a expressão amável e o sorriso doce de minha mãe enquanto cuidava de nós ou os olhos límpidos e inteligentes de minha irmã.
Eu nunca mais pisaria o solo sagrado da Alemanha.
Não estaria vivo quando o nacional-socialismo terminasse sua missão, quando Germânia se tornasse a capital do mundo civilizado sob o governo de mil anos do III Reich. Eu não estaria lá, mas meu sacrificio me faria parte de tudo aquilo, como um pequeno grão de areia é parte do mar.
Fechei os olhos, evocando novamente aquela noite distante enquanto sentia as mãos geladas da morte me envolvendo. Ela enfim vinha me libertar e eu morreria em paz, sabendo que tão longe dali minha família estava segura, pois tinha a absoluta convicção de que o nosso amado Füher, o salvador da Alemanha, os protegeria até o fim e, se fosse necessário, daria sua vida por seus filhos antes que Berlim pudesse cair.
Mas ali, no solo congelado da Rússia, ele não iria nos salvar.
Nota: conto repostado após revisão. Considero que lembrar o passado é essêncial, ainda mais nas circunstâncias atuais.