As meninas
Na escuridão de outra tarde ensolarada, vasculho o desarranjo de minhas lembranças. Entre flashs de um tempo distante, que poderia ser ontem,não encontro o rosto das meninas.
Desejo uma vez mais, quem sabe a última, me enxergar dentro de olhinhos felizes. Aninhada em abraços manchados de terra e tinta, adivinhar o contorno maroto de corpos lambuzados em travessuras diárias. Queria ser embalada pela melodia dos apelos improváveis e histórias impossíveis. Dormir e acordar ao som do choro breve e do riso fácil.Ah, minhas meninas...
A chaleira apita sobre o fogão. A enfermeira se aproxima depressa.Com mãos ágeis, abre gavetas, empurra a porta do armário. Encerra sua inspeção segurando o pequeno pote de plástico colorido.
-Eu preparo.- Ela anuncia com uma paciência incômoda.
Quando me estende a xícara de café quente e amargo, comemora:”Do jeito que você gosta”.Concordo com um sorriso prudente, apavorada com a probabilidade de já ter me tornado uma idiota.O que mais sabem, dizem e pensam por mim?
Tenho vontade de assegurar à mulher de avental branco e cabelo bem penteado que nem sempre foi assim. Entretanto , todos os dias uma parte de mim se transforma em fumaça,pouco mais espessa do que aquela que agora sobe da xícara de café, quente e amargo que uma pessoa, da qual sequer recordo o nome ,diz ser meu sabor preferido.
-Mais café?- A enfermeira tenta ser gentil.- Faz bem para o cérebro.
Estou outra vez com meio sorriso nos lábios. O medo e o ressentimento devem ter me convertido em uma especialista em expressões supostamente vazias. Estou desaparecendo. E não há café ou medicamento milagroso que possa me devolver o que já fui, tampouco garantir o que poderia ainda ser, um dia.
Desajeitada, peço licença para me retirar. Não estranharei se constatar que estou sendo acompanhada, vigiada por olhos severos. Tive sorte, minha cuidadora voltou a se distrair com uma revista qualquer. Posso caminhar pelo quintal , perguntando de novo o que fiz para merecer o castigo desta morte antecipada. Por que fui a escolhida nesta conspiração cósmica ou divina que rouba de mim todas as certezas?
Empoleirados nos galhos da jabuticabeira, os pardais organizam um coral numeroso e barulhento . Em meio a confusão das recordações ,vejo ressurgir as criaturas que mais amei em toda a vida. Ontem? Mês passado? Há uma década? Eu não sei.
.Elas deslizam pelo tronco da árvore coberta de flores brancas. Correm para mim, revestidas de plenitude.
-Este ano vai ter bastante jabuticaba, né mãe.
Já não entendo se agora experimento a punição ou o milagre. A vida devolvida para mim em imagens passageiras e tão profundas.
-Vamos subir bem lá no alto. Deixar só um pouco pros pardais,mãe.
Suplico a Deus que retarde, o quanto puder, o tempo em que a presença delas não seja mais do que um borrão em meu cérebro vazio.
As meninas, as meninas. Queria levar comigo para sempre ,este momento.