O coração do cão
“Eu sou aquele que ficou sozinho/Cantando sobre os ossos do caminho/A poesia de tudo quanto é morto!”
Augusto dos Anjos
O reflexo das chamas iluminavam suas faces cadavéricas. Quem os visse assim sob a luz da lua imaginaria que eles fossem fantasmas. Eu, entretanto, sabia que não eram o que aparentavam ser. No começo da noite haviam passado soturnos, bamboleantes, com um cachorro nos ombros e sacos barulhentos às costas. Acamparam depois do pátio do hotel, do outro lado da rodovia.
A primeira coisa que avistei após a meia noite foram as fagulhas que desprendiam, avermelhadas, dos galhos e ramos secos amontoados a vários metros do pátio do hotel. A princípio, não prestei atenção. Liguei a tv e acendi um cigarro. Na minha frente havia uma lista de clientes para visitar na manhã seguinte.
Quando o som intenso do tráfego de caminhões e carretas diminuiu pude ouvir as repentinas gargalhadas que chegaram até mim vindos do outro lado da rodovia. Ouvi também dois sons que se assemelhavam a uma paulada e um latido seco. No momento não liguei importância, fui tomar banho. Ao sair do banheiro pude ouvir o barulho lá longe. Então, pus a lista de clientes sobre a cama e, vagarosamente, entreabri a janela do quarto. Junto com o vento da noite chegou o suculento cheiro de churrasco.
Antes de perceber a situação já havia inalado, junto com a brisa do pátio, o odor da fome. Num impulso o asco, o nojo e a saliva, grossa e caudalosa saltaram da minha boca diretamente em cima do para-brisa do carro que estava na garagem à frente. Fechei com um baque a janela e, acendendo outro cigarro, fiquei sentado na cama com pensamentos confusos. Por fim, deitei com roupa e tudo e dormi com a luz acesa.
No outro dia um sol avermelhado esquentava o vidro sujo da janela. Os primeiros caminhões da manhã faziam as paredes tremerem com seus roncos e aceleradores nervosos. A fumaça dos escapamentos e o insistente vento do sul transformavam o pátio do hotel numa planície enfumaçada.
Eu, sobraçando minha valise e encaixando o boné da empresa na cabeça, saí do quarto e fui para a cantina. Tomei um café com pão de queijo enquanto ouvia alguém dizer para o proprietário do hotel que algum pássaro havia sujado o seu carro. O dono do hotel balançava a cabeça simulando decepção.
Após pagar o café saí para o pátio empoeirado. Aqui e ali havia manchas de óleo e marcas de pneus. Debaixo do pé de manga, coberto de folhas e dejetos de pássaros, estava o meu Ford velho e paciente. Abri a porta, joguei a valise no banco ao lado e parti em direção à cidade.
Dirigia distraído observando os poucos carros que subiam para a rodovia. Àquela hora da manhã uma nuvem de garças voava baixo. Certamente se dirigiam às lagoas ou aos banhados próximos. Desviando os olhos do horizonte eu os vi andando, também em direção à cidade. Eram quatro pessoas, dois homens e duas mulheres. Levavam velhos cobertores marrons debaixo dos braços e usavam roupas rasgadas que dançavam ao redor dos seus corpos esquálidos. Caminhavam devagar e encurvados.
Acelerei e aumentei o volume do som assim que passei por eles. A nuvem de fumaça cobriu suas figuras e o ronco do motor abafou seus gritos desdentados. Não me sentia feliz nem triste por fazer isso, apenas entediado. Fui me distanciando, deixando para trás aquele montículo de gente que semi movia no retrovisor. Eu me movimentava freneticamente junto com o carro, pensando na comissão que ia ganhar depois de vender os produtos do catálogo.
O sol já passava do meio do céu e eu já havia percorrido os dez quarteirões da cidadezinha. Algumas vendas e reticências era o que eu trazia de volta ao hotel. Estava cansado de tentar fazer com que as pessoas comprassem sem dinheiro. Alguns, educadamente, olharam o catálogo, outros nem me atenderam. Por isso, entrei no carro como quem entra numa bolha: querendo me isolar.
Na volta pisei fundo e rápido. O ronco do motor e o ronco da minha barriga disputavam um lugar no mundo. Eu tinha um princípio de raiva e muita fome que sempre me atacavam quando eu estava contrariado.
A raiva aumentou e a fome diminuiu logo que os avistei debaixo de uma árvore à margem da estrada. Pareciam bem animados. Imitavam felicidade e dança. No entanto, estavam de costas para mim. Veio um pensamento de que seria fácil, muito fácil, deixá-los tristes, de preferência mortalmente tristes. Cheguei a acelerar e avançar na direção deles, mas ao se aproximar, impetuosamente, um vulto negro e grande atravessou a pista vindo do mato. Era um enorme cão de olhos brilhantes. Eu freei bruscamente, desviando. Praguejei alto, diminuí a marcha e dei passagem ao animal. Arranquei em alta velocidade deixando aqueles gravetos humanos e aquela mancha escura se tocando e lambendo alguns metros atrás.
Olhando ainda pelo retrovisor eu vi que passavam uma garrafa de mão em mão. E riam. E gargalhavam. Eu, à medida que me distanciava deles, comecei a rir também. Gargalhava com a boca fechada e os dentes travados. Rindo para dentro de mim e sentindo que a fome, estava voltando, grande, do tamanho do mundo.
Depois do almoço dormi a tarde inteira. Fui acordado pela camareira perguntando se podia trocar os lençóis. Concordei. Fui para o pátio e acendi um cigarro. As primeiras e fracas estrelas surgiam no céu. Com uma mão no bolso brincava com as chaves quando percebi, para além do pátio, os vultos que se agrupavam ao redor de um tambor. Fiquei curioso e apático. Lá estavam os quatro e mais um do qual só se via o contorno do corpo, os olhos e as orelhas levantadas.
Olhei para trás e vi que a camareira fechou a porta do quarto com um estrondo. Então, calmamente, me virei e fui até a cantina do hotel e fiz o que tinha que ser feito. Voltei ao pátio, entrei no carro e, girando a chave, acelerei. As rodas esparramaram ruidosamente o pedregulho do pátio. Fui me aproximando veloz. Acelerei de novo e cruzei a pista um pouco antes de uma carreta e sua buzina desesperada. Freei o carro quase bem perto deles.
Enquanto a nuvem de poeira se dissolvia na aragem fria da noite eu pegava de cima do banco um embrulho quente. Abri a porta e desci do carro. Eles estavam com os olhos do tamanho da lua, amontoados e tremendo atrás do tambor. Apenas um não se escondeu. Mostrava os enormes dentes para mim. Eu tremi. Eles tremiam também, mas os olhos de fogo subiam e desciam e saltaram. Dois pingos de sua baba bateram em meu rosto e o hálito morno e fétido invadiu minhas narinas. Recuei de costas ao mesmo tempo em que dois deles seguravam numa velha coleira o enorme cão. Afastaram, puxando o cachorro, para trás do tambor.
De onde estava estiquei o braço, tremendo, na direção deles. Um, o que parecia uma mulher, se aproximou cautelosamente. Esticou os braços e recebeu o pacote de salgados que eu trazia. Então, balançando a cabeça e juntando o embrulho junto ao peito afastou de costas. Os outros murmuravam algo incompreensível para mim e amigável para o cachorro que abanava e batia o grande rabo nas pernas das calças sujas e rasgadas de seus amigos.
Por um tempo fiquei parado olhando para eles. De repente, um uivo de cão ao longe me fez virar a cabeça na direção de onde vinha o barulho. Com os dedos trêmulos e o coração acelerado puxei um cigarro. O vento frio e constante me impedia de acendê-lo. Abaixei a cabeça e fiquei pensando. Uma onda de calor, que subia da base da nuca, passava pelas orelhas e esparramava-se pelo rosto, incendiou os meus olhos. Olhei para eles e olhei para o cão novamente. Eles todos brilhavam na noite escura.