110 anos de GreNal:
Gruuuunevaaaalllllll...
Era uma madrugada fria de inverno gaúcho em Porto Alegre, naquele 18 julho de 1909. Poppe se mexia na cama, insone, tenso. O vento gelado soprava forte, assoviando pelo lado de fora da casa:
Gruuuunevaaaaallll - parecia dizer.
Uma janela abriu e começou a bater seca e intermitentemente:
Booth, booth, boorth, booth, booth...
Poppe levantou, sobressaltado.
- Querido, você está muito agitado. Vê se dorme.
- Vou fechar a janela e já volto - respondeu.
Andou pela casa escura, levantou o vidro e fechou a janela da sala. Ouvia mais nitidamente agora o vento, que soturnamente parecia mesmo repetir:
Gruuuunevaaaaalllll...
"Não fora uma boa idéia do Antenor ter desafiado aquele pessoal para o duelo de amanhã" - pensou. "Ainda mais exigindo que a tropa de elite deles, homens de escol, participasse do desafio. Agora estou eu aqui, nervoso. Eles treinam no Clube dos Atiradores Alemães, são bombardeiros impiedosos. Mas fazer o que, agora? O negócio é encarar. Devemos ir lá e tentar vencê-los no seu próprio Fortim, ou sermos vencidos com honra. Uma epopéia quixotesca! Como lutar contra moinhos de vento." Poppe, epopéia, riu da similaridade entre as palavras. E o vento lá fora, provocando-o:
Gruuuunevaaallll...
Olhou para a mulher, adormecida na cama. Se tivesse se recusado a participar, como poderia honrar sua esposa? E seus futuros filhos, o que sentiriam se alguém lhes dissesse que seu pai fora um covarde? Não, um homem de respeito é a sua honra e a sua coragem, foi assim que fora educado, assim procederia. Um Poppe não afrouxava, nunca! Deitou novamente. Mesmo ansioso e incomodado com o vento a repetir "gruuuuunevaaaalllll..." Adormeceu depois de um tempo. Então o inevitável pesadelo, tétrico tal qual uma das dolorosas telas do pintor expressionista alemão Matthias Grünewald (imagem acima, A Tentação de Santo Antônio - 1515, que ilustra esse conto), começou...
Estava em uma batalha, com seu exército sendo dizimado sem piedade pelos adversários. A túnica encarnada de alguns companheiros abatidos se tingia de um vermelho brilhante, denso.. sanguíneo! Estava caído ao chão e um dos atiradores alemães chegou perto e mirou, olhar seco, frio, nervos de aço, impávido, vazio, estilo próprio dos matadores.
- Vou te dar o tiro de misericórdia, você "morerá" - disse, com o típico sotaque carregado dos colonos germânicos do Sul do Brasil.
- Não, não - gritou suplicante, me poupe, me poupe...
- Acorde querido, o que foi, porque está gritando o seu próprio nome? Teve um pesadelo?
- Sim querida, mas está tudo bem agora, volte a dormir que eu também vou fazer o mesmo.
A esposa obedeceu, sabia que o marido era fechado e não gostava de falar de suas preocupações. Não era o seu próprio nome que ele gritava, mas melhor deixá-la pensar assim.
Aquele domingo amanheceu com o sol claro, mas ventoso, como a noite. Um incomodativo ventinho gelado, mas agora mudo, pelo menos. Após o almoço com a esposa, pegou a sacola com o uniforme e saiu, em direção ao Bairro Moinhos de Vento, seu destino. Ao chegar nas proximidades do Fortim da Baixada, viu os companheiros, que os esperavam.
- Tudo bem Poppe? Está com cara de que não dormiu direito? - perguntou Antenor.
- Não é nada, tudo bem.
Cumprimentou seu irmão e percebeu, pelo seu silêncio, que também estava receoso com o que poderia vir em seguida. Dirigiram-se ao Clube dos Atiradores Alemães pra se fardarem. O vento frio incomodava Poppe, cheio de maus pressentimentos para aquele match. Ainda mais ele, o guarda-metas, o homem para onde toda a artilharia dos alemães iria se concentrar. Premonitórios os temores da noite anterior...
Os 40 minutos iniciais não foram assim tão ruins, com o placar de 2x0 para a equipe azul. Mas no segundo tempo, com os colorados cansados, a história adquiriu contornos trágicos. Booth, atacante do time mandante, fez os primeiros cinco gols da partida. O vento, que ficava mais frio ao cair da tarde, só ampliava o desconforto pela derrota cabal que acontecia. "Antenor, seu estúpido arrogante, porque não aceitou jogar com o segundo quadro deles?" Depois o outro atacante, o temido Grunewald, rápido e frio como o vento, fez mais quatro gols. Desastre, era o primeiro jogo do recém fundado Internacional. Sua bela esposa era uma das moças que assistia sentada o Grenal do pavilhão social do Fortim da Baixada, como convidada.
Após o nono gol, abatido, derrotado, procurou paz nos olhos da amada, que fitava-o preocupada, com dó. Ela sorriu pra ele. Era uma boa esposa, virtuosa, companheira. Tinha sorte em tê-la desposado.
O jogo encaminha-se para os seus minutos finais, aliviando o constrangimento de Poppe. Então mais um avante do Grêmio escapou da marcação e entrou na área. Foi tudo muito rápido. Seus olhares se cruzaram. Poppe percebeu nas pupilas de Moreira o mesmo brilho gélido que vira nos olhos do atirador do pesadelo. "Morerá", Moreira... Foi um arremate forte, potente, sem nenhuma chance de defesa. Consistiu, realmente, num tiro de misericórdia: 10X0! O desânimo, o olhar vazio dos companheiros deixava claro que aquela derrota fora avassaladora. Alguns nunca mais, depois disso, voltariam a jogar futebol, tamanho foi o abatimento.
A noite, deitado em sua casa, o vento continuava, impiedoso:
Gruuuunevaaaallll, gruuuunevaaaallll...
A maldita janela novamente abriu:
Booth, booth, booth..
Poppe levantou e foi, quieto, fechar a janela. Era um homem, um marido, não se abatia. Ao voltar, viu que a mulher lhe sorria. A vida continua para os valentes, mesmo na derrota. Naquela noite, não teve pesadêlos. Dormiu profundamente.
Gruuuunevaaaalllllll...
Era uma madrugada fria de inverno gaúcho em Porto Alegre, naquele 18 julho de 1909. Poppe se mexia na cama, insone, tenso. O vento gelado soprava forte, assoviando pelo lado de fora da casa:
Gruuuunevaaaaallll - parecia dizer.
Uma janela abriu e começou a bater seca e intermitentemente:
Booth, booth, boorth, booth, booth...
Poppe levantou, sobressaltado.
- Querido, você está muito agitado. Vê se dorme.
- Vou fechar a janela e já volto - respondeu.
Andou pela casa escura, levantou o vidro e fechou a janela da sala. Ouvia mais nitidamente agora o vento, que soturnamente parecia mesmo repetir:
Gruuuunevaaaaalllll...
"Não fora uma boa idéia do Antenor ter desafiado aquele pessoal para o duelo de amanhã" - pensou. "Ainda mais exigindo que a tropa de elite deles, homens de escol, participasse do desafio. Agora estou eu aqui, nervoso. Eles treinam no Clube dos Atiradores Alemães, são bombardeiros impiedosos. Mas fazer o que, agora? O negócio é encarar. Devemos ir lá e tentar vencê-los no seu próprio Fortim, ou sermos vencidos com honra. Uma epopéia quixotesca! Como lutar contra moinhos de vento." Poppe, epopéia, riu da similaridade entre as palavras. E o vento lá fora, provocando-o:
Gruuuunevaaallll...
Olhou para a mulher, adormecida na cama. Se tivesse se recusado a participar, como poderia honrar sua esposa? E seus futuros filhos, o que sentiriam se alguém lhes dissesse que seu pai fora um covarde? Não, um homem de respeito é a sua honra e a sua coragem, foi assim que fora educado, assim procederia. Um Poppe não afrouxava, nunca! Deitou novamente. Mesmo ansioso e incomodado com o vento a repetir "gruuuuunevaaaalllll..." Adormeceu depois de um tempo. Então o inevitável pesadelo, tétrico tal qual uma das dolorosas telas do pintor expressionista alemão Matthias Grünewald (imagem acima, A Tentação de Santo Antônio - 1515, que ilustra esse conto), começou...
Estava em uma batalha, com seu exército sendo dizimado sem piedade pelos adversários. A túnica encarnada de alguns companheiros abatidos se tingia de um vermelho brilhante, denso.. sanguíneo! Estava caído ao chão e um dos atiradores alemães chegou perto e mirou, olhar seco, frio, nervos de aço, impávido, vazio, estilo próprio dos matadores.
- Vou te dar o tiro de misericórdia, você "morerá" - disse, com o típico sotaque carregado dos colonos germânicos do Sul do Brasil.
- Não, não - gritou suplicante, me poupe, me poupe...
- Acorde querido, o que foi, porque está gritando o seu próprio nome? Teve um pesadelo?
- Sim querida, mas está tudo bem agora, volte a dormir que eu também vou fazer o mesmo.
A esposa obedeceu, sabia que o marido era fechado e não gostava de falar de suas preocupações. Não era o seu próprio nome que ele gritava, mas melhor deixá-la pensar assim.
Aquele domingo amanheceu com o sol claro, mas ventoso, como a noite. Um incomodativo ventinho gelado, mas agora mudo, pelo menos. Após o almoço com a esposa, pegou a sacola com o uniforme e saiu, em direção ao Bairro Moinhos de Vento, seu destino. Ao chegar nas proximidades do Fortim da Baixada, viu os companheiros, que os esperavam.
- Tudo bem Poppe? Está com cara de que não dormiu direito? - perguntou Antenor.
- Não é nada, tudo bem.
Cumprimentou seu irmão e percebeu, pelo seu silêncio, que também estava receoso com o que poderia vir em seguida. Dirigiram-se ao Clube dos Atiradores Alemães pra se fardarem. O vento frio incomodava Poppe, cheio de maus pressentimentos para aquele match. Ainda mais ele, o guarda-metas, o homem para onde toda a artilharia dos alemães iria se concentrar. Premonitórios os temores da noite anterior...
Os 40 minutos iniciais não foram assim tão ruins, com o placar de 2x0 para a equipe azul. Mas no segundo tempo, com os colorados cansados, a história adquiriu contornos trágicos. Booth, atacante do time mandante, fez os primeiros cinco gols da partida. O vento, que ficava mais frio ao cair da tarde, só ampliava o desconforto pela derrota cabal que acontecia. "Antenor, seu estúpido arrogante, porque não aceitou jogar com o segundo quadro deles?" Depois o outro atacante, o temido Grunewald, rápido e frio como o vento, fez mais quatro gols. Desastre, era o primeiro jogo do recém fundado Internacional. Sua bela esposa era uma das moças que assistia sentada o Grenal do pavilhão social do Fortim da Baixada, como convidada.
Após o nono gol, abatido, derrotado, procurou paz nos olhos da amada, que fitava-o preocupada, com dó. Ela sorriu pra ele. Era uma boa esposa, virtuosa, companheira. Tinha sorte em tê-la desposado.
O jogo encaminha-se para os seus minutos finais, aliviando o constrangimento de Poppe. Então mais um avante do Grêmio escapou da marcação e entrou na área. Foi tudo muito rápido. Seus olhares se cruzaram. Poppe percebeu nas pupilas de Moreira o mesmo brilho gélido que vira nos olhos do atirador do pesadelo. "Morerá", Moreira... Foi um arremate forte, potente, sem nenhuma chance de defesa. Consistiu, realmente, num tiro de misericórdia: 10X0! O desânimo, o olhar vazio dos companheiros deixava claro que aquela derrota fora avassaladora. Alguns nunca mais, depois disso, voltariam a jogar futebol, tamanho foi o abatimento.
A noite, deitado em sua casa, o vento continuava, impiedoso:
Gruuuunevaaaallll, gruuuunevaaaallll...
A maldita janela novamente abriu:
Booth, booth, booth..
Poppe levantou e foi, quieto, fechar a janela. Era um homem, um marido, não se abatia. Ao voltar, viu que a mulher lhe sorria. A vida continua para os valentes, mesmo na derrota. Naquela noite, não teve pesadêlos. Dormiu profundamente.