Lei Seca

Rudolph Carson fez o favor de me esperar na estação Grand Central, Nova Iorque, quando cheguei de Chicago com minha mala surrada cheia de partituras - e algumas roupas.

- Como foi de viagem? - Indagou, solícito.

- Quase um dia inteiro dentro do trem, mas não posso reclamar - declinei. - Afinal, foi você quem pagou a minha passagem...

- Meu patrão fez isso, na verdade... aliás, é um investimento, não um favor. Eu lhe vendi como a nova sensação do piano de Chicago - replicou, me dando uma palmada amistosa no ombro.

- Espero que a parte de "vender" não tenha sido literal - ponderei. - O seu patrão é o Ernest Rollins?

- Ele mesmo. E agora vamos, meu carro está estacionado lá fora.

O veículo de Carson era um Ford Modelo T "último tipo", segundo ele. Como o Modelo T deixara de ser fabricado em 1927, o carro já teria pelo menos uns três anos de uso.

- Você comprou depois de virar empregado do Rollins? - Indaguei, tentando prever quanto poderia cobrar pelos meus serviços.

- Não, bem antes... foi logo depois da Quebra da Bolsa; o dono estava desesperado, perdeu uma fortuna em ações! - Comentou alegremente, enquanto seguíamos pelo trânsito pesado de Manhattan em direção ao Harlem.

- E esse lugar onde vou tocar... é um clube de jazz? - Indaguei cautelosamente.

- O Daniel's Den, um dos melhores do Harlem, e talvez de toda a Nova Iorque! - Descreveu ele com grandiloquência. - Até "Fats" Waller já tocou lá!

- Então, deve ser bom mesmo - avaliei. - Mas, me diga... a clientela não vai lá só para ouvir jazz e flertar com as moças, imagino.

Carson me deu um sorriso maroto.

- As pessoas não deixaram de beber por causa da Lei Seca, Franklin - redarguiu. - Meu patrão é alguém que percebeu o potencial criado pela Proibição e investiu um bom dinheiro nisso. O Daniel's Den é um dos lugares mais chiques da rede criada pelo Rollins, mas ele têm dezenas de outros espalhados por Nova Iorque... alguns não são mais do que uma salinha com uma mesa, duas cadeiras... e uma garrafa de uísque.

- E a qualidade da bebida? - Questionei.

Carson deu de ombros.

- Depende do volume da sua carteira. Para quem não quer bebida batizada, feita em fundo de quintal, Rollins oferece material importado, de primeira linha.

- Quanto? - Indaguei.

- Quatro, cinco dólares a garrafa.

Fiz uma conta rápida de cabeça e cheguei à conclusão que Ernest Rollins deveria estar rico. Muito rico.

- Imagino que seu patrão deva gastar um bom dinheiro subornando a polícia e os agentes da Lei Seca...

Carson fez uma careta.

- Veja, Franklin: antes da Proibição, os donos de bares legais já tinham que gastar um bom dinheiro subornando gente da prefeitura e pagando taxas de licenciamento. Como não há mais necessidade de cumprir a legislação, já que vender bebida alcoólica tornou-se ilegal, na prática abrir um bar tornou-se muito mais barato do que antes da Proibição. Se formos parar pra pensar, a Proibição tornou-se um grande incentivo à livre iniciativa!

Certamente, as boas senhoras defensoras da moral e da sobriedade, que tanto haviam contribuído para a implantação da Lei Seca, provavelmente jamais teriam pensado nela nestes termos. Mas, ei, estamos na América. Aqui é a Terra das Oportunidades!

E no Harlem, Carson parou o automóvel em frente a um armazém de secos e molhados, sobre o qual ficava um salão de bilhar.

- O salão é uma fachada para o clube de jazz - explicou Carson, quando descemos do carro e nos encaminhamos para as escadas que levavam ao andar superior. No alto destas, surgiu um negro de boina na cabeça, provavelmente um vigia.

- O patrão já chegou - alertou ele.

- Ótimo - respondeu Carson. - Aproveito para lhe apresentar logo o Franklin!

Carson estava na minha frente, e assim não vi de imediato quem estava dentro do salão. Mas quando vi o homem alto, de chapéu e sobretudo, senti que alguma coisa estava errada. Quando ele puxou um distintivo do bolso do colete e o exibiu para nós, senti meu sangue gelar.

- Lei Seca. Vocês estão presos!

Após um lapso de segundo, o homem caiu na gargalhada.

- Eu sou Ernest Rollins... Carson, o seu amigo pianista quase teve um infarto!

Carson me deu um tapinha nas costas.

- O Sr. Rollins adora fazer essa brincadeira com os recém-chegados.

Pensei comigo mesmo que ele poderia ter me avisado no caminho. Rollins, contudo, estendeu-me a mão, que apertei.

- Muito prazer, Sr. Rollins. Franklin Turner.

- Bem-vindo ao Daniel's Den, Franklin - saudou-me, guardando o distintivo no bolso. - Ah, e a propósito, o distintivo é de verdade.

Afinal, quem melhor do que um agente da Lei Seca para proteger o seu próprio negócio ilegal?

- [24-06-2019]