Raguel

Harry Bour – 18 de junho de 2019

“Esquecer é difícil. Lembrar é pior.”

*aviso: gatilho de violência sexual

Ele sabia que precisava fazer alguma coisa. Tossir daquela maneira só poderia significar qualquer coisa muito ruim. Soltou o cigarro na calçada em frente à igreja e terminou de apagar a brasa com o coturno.

A igreja estava vazia. O Padre, seu conhecido e confidente há muitos anos, lhe garantiu que teriam a privacidade necessária para aquela conversa, apesar de que, pela demora, talvez ela tivesse se arrependido.

O sol estava alto e o dia era quente. Ele já se questionava se valia a pena sair outra vez para fumar ou ir embora. Paciência nunca foi uma de suas qualidades.

Enquanto olhava para o altar, pensando nas inúmeras possibilidades que poderiam surgir a partir daquele encontro, ele ouviu o som de saltos se aproximarem, desde a rua, pelas escadarias e adentrando a nave da igreja.

Com um andar firme e decidido, ela entrou na fileira logo atrás dele e se sentou. Ele ouviu contas deslizando para fora da bolsa. Ela se ajoelhou e permaneceu em silêncio por mais alguns momentos, e depois voltou a se sentar, repetindo o som das contas e da bolsa.

- Você está atrasada. Devo me preocupar?

- Tive alguns contratempos. Nenhum de seu interesse.

- Você trouxe a pasta?

- Com quem você pensa que está falando? É evidente que não.

- Fez bem.

- E você, cumpriu sua parte?

- Um carro está preparado e te esperando do outro lado da rua. Assim que você sair daqui, estará segura. Minhas instruções estão no porta-luvas.

- Ótimo. Então, o que você precisa saber?

- Não muito além do que deve estar na pasta. Apenas o necessário para eu não correr o risco de ser surpreendido.

- Por onde eu começo?

- Como você o encontrou?

- O médico da minha família tem contatos, digamos, extraoficiais. Sabendo meu diagnóstico e o tempo que eu tinha, ele me ajudou a buscar alternativas não ortodoxas.

- Precisarei do nome desse médico.

- Eu imaginei que sim. Está tudo na pasta, documentado, com as fotos que pediu.

- Você disse ‘o tempo que tinha’. O que isso quer dizer?

- Ele é real.

- O canalha é pra valer? - A surpresa quebrou a serenidade que ele mantinha na voz.

- Sim. Eu estou curada. Talvez você devesse fazer ele dar um jeito nessa tua tosse, antes de...

- Talvez. Talvez...

- Não me orgulho de estar fazendo isso. Eu tenho uma carreira. Um legado. Não posso deixar que meu nome apareça em nada disso, ok?

- Estamos na casa de deus. Quem sou eu para te julgar?

- Estamos na casa de Deus, mas me sinto lidando com demônios...

- Você sabe como ele faz?

- Não é sobrenatural. Tem a ver com o sangue dele. Os genes...

- Modificado?

- Nenhuma tecnologia de que eu já tenha ouvido falar.

- De fora?

- Pode ser. - Ela respondeu sem muita certeza do que ele quis dizer.

- Quando você esteve com ele?

- No começo de janeiro.

- Tem um tempo. E por que você decidiu me procurar? Por que só agora?

- Por que você acha que eu procuraria alguém como você? E eu precisava ter certeza de que você é capaz de fazer o que é necessário.

- Não perca meu tempo, tá bem? Eu preciso saber o que ele fez para merecer meus serviços. Você disse que ele te curou. Você não deveria estar grata?

- Você não sabe nada mesmo sobre ele?

- Ele nunca cruzou meu caminho.

- Bem... É justo. E não, eu não deveria agradecer pelo que ele me fez. A cura que ele oferece é uma fachada.

- Para o que?

- Ele atrai pessoas doentes, mas não qualquer um. Casos terminais... Gente da elite... Influentes, poderosos, e só os mais desesperados. Gente que tem muito a perder. Ele usa isso para garantir que ninguém vai expor o que acontece por trás dessa imagem de messias agindo pela vontade divina...

- E o que acontece?

- Você já foi coagido? Já te forçaram a fazer algo contra sua vontade? Contra sua honra? Contra sua dignidade?

- Constantemente.

- Mas não dessa forma, eu garanto. Você nunca foi violado. Entenda isso, os homens que o procuram, ele trata de igual para igual. Faz a transfusão que inicia a cura e cuida deles durante o tempo de recuperação. Nada além. Essa transfusão deixa a gente muito fraca, totalmente à mercê dele.

- Continue.

- Bem, com as mulheres, ele age de outra forma. - Ela respondeu e fez uma pausa. Parecia ofegante, como se segurasse um choro.

Até então, ele não olhara para trás, mas, pela primeira vez, inclinou a cabeça como se precisasse confirmar algo nos olhos dela.

- Olhe para a frente. Não preciso da tua compaixão. Preciso que você faça o que eu pedi.

- Estou começando a entender.

- Não é apenas vingança. É justiça. Eu não sou a primeira com quem ele faz essa monstruosidade. E tenho certeza de que não serei a última. Alguém precisa acabar com isso.

- Por que você mesma não faz isso?

- Penso nisso todos os dias. Apesar de tudo, eu não tenho o que você tem.

- E o que você acha que eu tenho?

- Você é igual a ele.

- Eu nunca toquei numa mulher...

- Você acaba com vidas, assim como ele acabou com a minha.

Ao ouvir isso, ele começou a tossir muito, engasgado. Levou pouco mais de um minuto para se controlar. Então ele respirou muito lenta e profundamente, mas não falou nada.

- Desculpe, não devia ter dito isso em voz alta.

- Está tudo bem, não tem ninguém para nos ouvir aqui.

- Você precisa de algo mais? Essa igreja está me cozinhando. Eu quero sair logo daqui. Quero esquecer tudo isso.

- Sim. Preciso que pegue seu dinheiro. Deixe os documentos, as fotos.

- Como assim?

- Tem coisas que eu faço porque mandaram fazer, porque sabem que sou o melhor. Isso eu vou fazer por prazer.

- Mas eu faço questão de te pagar.

- Teu carro está lá fora. Suma. Suma por uns tempos. E se esqueça de mim.

Ela se levantou e começou a andar na direção da rua. Ele a ouviu parar, de repente. De novo, ele quase olhou para trás, mas confiou que não seria necessário intervir. Em seguida, ouve uma criança correr. Ela se vira para ele.

- Vá. Não se importe com o garoto. Ele não será um problema.

- E se ele for um problema?

- Não será seu problema.

***

A continuação será publicada quando este texto ultrapassar 100 leituras.

Harrison Bourguignon
Enviado por Harrison Bourguignon em 22/06/2019
Reeditado em 24/06/2019
Código do texto: T6679280
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