O CHAMADO
Depois de mais um extenuante dia de trabalho, era hora de partir. Limpamos e guardamos nossas ferramentas de trabalho, juntamos nossos objetos pessoais e deixamos a fazenda como era de costume. Inicialmente, em grupo. Depois, à medida que distanciávamos do local de trabalho, sozinhos, ou juntos a Deus (como manda nossa fé), cada um em direção ao próprio lar. A vida na roça tem dessas coisas. As casas geralmente são bem distantes umas das outras. Centenas de metros, ou até mesmo quilômetros. E os locais de trabalho, muitas vezes se distanciam ainda mais, como agora. É uma vida de sacrifícios, mas viver exige sacrifício. Para quem nasce e cresce nesse ritmo, a rotina se torna comum. A maioria dos que ficam, aceita resignada essa condição. Ninguém reclama. Caminhamos depressa, conversando alto, fazendo piadas e rindo como também é de costume. O cansaço não dita regras ao longo do caminho. Todos querem chegar em casa o mais rápido possível, para só então, sentir os efeitos da jornada pesada de afazeres. Aos poucos, fomos nos despedindo, e um a um, tomando rumos diferentes.
Permaneci na estrada principal. Enquanto andava, observava os últimos raios de sol sumindo por trás da serra, irradiando tons vermelho-alaranjados, e finalmente a escuridão dominar o ambiente. Era noite de inverno. Estava frio e o céu não estava tão límpido como é comum nessa época. A lua, entre nuvens, vez ou outra brilhava iluminando o caminho, mas logo sumia novamente. Para quem sempre andou por estradas e trilhas sem luz, os olhos são acostumados com a escuridão e os pés treinados na irregularidade do terreno. Mesmo sem a ajuda da lua não era difícil fazer aquele trajeto, que ainda estava longe do final, pois minha casa era a mais distante daqueles que compunham o grupo de trabalho.
Embora cansado, mantive o ritmo inicial, priorizando a companhia de minha família o mais breve possível. O silêncio da estrada trazia paz, mas ao mesmo tempo, certo incômodo, pela iminente solidão. Podia ouvir meus passos e claramente minha respiração. Como companhia agora, só o coaxar dos sapos e o estrilar dos grilos. Durante o trajeto sozinho, naquele dia, ainda não havia encontrado sequer um cavaleiro, um morador da região, ou até mesmo uma vaca cruzando a estrada. Estava tudo quieto demais.
Fui seguindo meu caminho, atento aonde pisava, concentrado em meus pensamentos. De repente, senti um leve zumbido em minha cabeça. Zumbido que foi aumentando, aumentando, deixando-me atordoado. Fiquei preocupado. Comecei a suar. Não sabia o que era aquilo. Nunca senti algo assim. Pensei ser o cansaço acumulado. Um resfriado. Uma gripe, talvez. Acelerei o passo, visando chegar ainda mais rápido em minha casa. Tomar um banho, um relaxante muscular e dormir. E o zumbido aumentava.
Ao chegar à base de um morro no caminho, o zumbido estava fortíssimo. Eu já não raciocinava direito, não conseguia caminhar direito também. Tropeçava nas pedras, cambaleava como se tivesse ingerido alguma bebida em grande quantidade. Diminui o ritmo. Ouvi, vindo do alto, um barulho forte pulsando, como de um motor de caminhão ou um veículo de grande porte. Coisa que não era comum por ali, principalmente àquelas horas. Vi também luzes que pareciam farol. Devia ser algum caminhão mesmo, buscando gado ou outra coisa. Fui subindo devagar. Apoiei-me ao barranco. Continuei subindo. Poderiam socorrer-me.
Com enorme sacrifício cheguei ao topo do morro e deparei-me com uma luz extremamente forte, que me cegou momentaneamente. Que farol potente, pensei. O zumbido na cabeça aumentou de forma insuportável. Encostei-me ao barranco. Não conseguia abrir os olhos. Agachei. Sentei-me. Perdi os sentidos.
Acordei com um sacolejo em um dos ombros e uma voz agitada chamando meu nome:
- Miguel! Miguel! Você está bem, compadre? – Dizia o homem nos termos e sotaque típicos da região.
Abri os olhos, ainda confuso. Percebi que o zumbido havia passado. A tontura ainda permanecia, embora em nível bem menor. Os faróis estavam acesos, mas já não me cegavam como antes. O ruído do carro também parecia menor. Tentei levantar. Estava fraco. Fui amparado pelo homem, que a essa altura eu já reconhecia como um amigo, “vizinho” e padrinho do meu segundo filho.
- Por onde andou, compadre? Está todo mundo preocupado. A comadre e as crianças não param de chorar. Todo mundo já lhe dava como morto. – Disparou o homem.
Ouvi com estranheza. Não entendi aquele desespero nas palavras.
- Estava trabalhando, ora! Agora estava voltando pra casa, quando senti mal e encostei-me àquele barranco. – Respondi. – Sorte que o compadre me achou.
Ele encarou-me seriamente.
- Compadre, voltou a beber? – Arguiu com ar de reprovação.
- Claro que não! – Respondi. – Olhe para mim. Veja se estou bêbado! Sabe bem que há cinco anos não bebo nada, José! – Retruquei. – Que história é essa?
Ele olhou-me confuso. Fez silêncio. Mediu as palavras. Enfim, falou moderadamente:
- Também faz cinco dias que o compadre saiu de casa para trabalhar e não voltou.
- Como assim? – perguntei atônito. – Saí hoje de manhã. Trabalhei com a turma e estou voltando. Se me atrasei, foi porque senti mal, como disse e o compadre mesmo viu. – Prossegui.
Ele preparava-se para dizer mais alguma coisa, quando viu que levei a mão à cabeça, tentando conter a tontura que voltava; então interrompeu a frase, amparando-me antes que eu caísse.
- Venha. Vou levar o compadre para casa. Sua mulher e as crianças estão muito preocupadas. – Disse, conduzindo-me a porta do carro e ajudando-me a sentar na poltrona do carona. – A comunidade está mobilizada te procurando. Até a polícia também. – Prosseguiu o relatório.
Parou de falar quando percebeu meu estado de confusão mental e, então, dedicou-se somente a dirigir o carro, em silêncio, até chegarmos a minha casa.
Algum tempo depois o fusca parava em frente à porteira de minha propriedade. Levei a mão à porta do carro para sair, mas fui contido por José, que se dispôs a abri-la. Pediu que eu ficasse em repouso. Não relutei e assim foi. Enquanto ele abria a porteira, reparei as luzes acesas na entrada da casa e movimento na sala. O barulho do carro chamou a atenção. Os cães latiam. As pessoas foram saindo para ver quem chegava. Logo surgiu minha esposa à porta. Atrás dela, meus três filhos. E todos no local, com feições aflitas.
José abriu a porta, saiu do carro, circulando-o em minha direção. Abriu minha porta. Estendeu a mão para ajudar-me a sair. Todos olhavam incrédulos. Os cães vieram fazendo farra. Minha filha caçula foi a primeira a correr ao meu encontro:
- Papai! Papai! – Gritava enquanto corria com passadas curtas, proporcionais às pernas de uma criança de três anos.
Abraçou-me chorando. Balbuciou:
- Senti saudades!
Logo vieram o filho do meio e minha esposa, também apressados. Abraçaram-me também emocionados. Arredio, o mais velho, que ironicamente foi batizado “Junior”, olhou-me desconfiado antes de me saudar, embora sua feição também demonstrasse a mesma preocupação dos demais.
O restante do povo foi chegando em seguida. Em meio a choros, exclamações, perguntas sem fim, senti-me fraco e a tontura voltou. Precisei ser amparado até o sofá da sala. Refeito com um gole de café quente, conversei como pude, respondendo como sabia, porém questionando sempre, sem hesitar, a informação das datas divergentes. Cinco dias longe era demais para minha cabeça. Era inacreditável. Ligaram a TV. Passava um programa de auditório de domingo. Lembrava ter saído de casa na quarta-feira de manhã. O Relógio digital de meu filho também confirmava a data. Era mesmo inacreditável. Não só para mim.
Aos poucos as pessoas foram se despedindo, não sem antes assegurar seus préstimos, caso se fizessem necessários. Hospitalidade e solidariedade típica da região. Logo, estávamos sozinhos em casa. Tomei banho, comi a sopa preparada por minha esposa, recebi o carinho dos dois filhos mais novos. Percebi a desconfiança estampada no rosto de Júnior, também presente, de forma mais contida, em minha mulher. Conversamos. Expliquei novamente o ocorrido. Não houve consenso. Até para mim, era difícil sustentar aquela versão. Fomos dormir. Embora cansado, passei a noite em claro, tentando encaixar o quebra-cabeça. Minha esposa, ainda que silenciosamente, também não dormiu.
No dia seguinte fui levado ao médico. À polícia também. Entre exames e interrogatórios, mantive a minha versão dos fatos, ou melhor, a única versão dos fatos que eu tinha. Não caí em contradições. Arguido diversas vezes, por pessoas diferentes e de formas diferentes, não tinha o que acrescentar. Fui liberado. O médico disse tratar-se de uma Amnésia Global Transitória, que eu poderia lembrar em flashes em breve, ou ter perdido aqueles cinco dias para sempre. Para a polícia, não havia crimes, danos ou perdas em princípio. Suas buscas foram encerradas. Disseram que continuariam investigando alguma informação que pudesse contribuir com minha recuperação. Na prática desconfiavam que eu tivesse uma amante (teoria que foi aceita pela maioria do povo da região), ou que havia dado uma ‘escapadinha’ de casa. Não entraram mais em contato.
Os dias se passaram comigo em casa, em um período de repouso forçado, por ordens médicas e posteriormente pela desconfiança das frentes de trabalho e família. Fui tocando a vida, mas esta nunca mais foi a mesma. Nem um segundo perdido daqueles dias, retornou à minha mente. Nunca mais dormi direito. À noite, acordava aos gritos, banhado em suor, depois de repetidos pesadelos horríveis. Tortura, dor, olhos gigantes arregalados, numa face inexpressiva, diante de mim. Às vezes, abria mão do sono, para não passar por aquele sofrimento diário.
Voltei ao médico que receitou psicotrópicos para combater a insônia e a confusão mental. De nada valeram. Percebi apenas uma frieza interior crescente. Já não sentia alegria, ou raiva, ou afeto. Os sentimentos foram se distanciando de mim. Após aquele dia, ou aqueles dias, sentia apenas não ser mais o mesmo. Fiz terapia, sessões de hipnose e regressão. Tomei mais remédios, fui ao benzedor. Aqui é comum essa prática. Nada adiantou. As pessoas se afastavam. Para elas, eu estava ficando louco.
E todas as noites, ao entrar em sono profundo, lá vinha a dor, a sensação de violação e aqueles olhos enormes, naquela face acinzentada, sem pelos e sempre impassível. E eu acordando desesperado. Cheguei a construir um quarto só para mim, a fim de evitar o incômodo à minha esposa e o medo que causava às crianças.
Numa dessas noites, após a sessão de penosos sonhos – se é que podem ser chamados assim, - acordei com a boca seca e fui até a cozinha beber água. Percebi que os cães latiam desinquietos. Abri a porta. Senti o mesmo zumbido na cabeça que senti aquele dia. Era forte. Muito forte. Escorei-me ao portal. Minha cabeça pulsava. Senti escorrer um líquido viscoso e quente de meu nariz. Levei uma das mãos. Sangue. O zumbido foi aumentando. Junto com ele ouvi um forte ruído pulsante, que lembrava um motor, vindo de trás do morro de minha plantação. Era igual aquele que ouvira no dia em que perdi o sentido na estrada. Mas lá não havia estrada. O ruído foi aumentando. Os cães se esconderam. O silêncio dominou o ambiente. Fitei meus olhos em direção ao barulho. O zumbido me impedia de raciocinar. Logo, luzes brilharam, de baixo pra cima, iluminando o topo do relevo onde começava minha plantação. Senti-me atraído. Era mais forte que eu. Pus-me então a andar naquela direção. Pulei cercas, subi o pasto, passei por outra cerca, atingi, enfim, o local iluminado.
Quando parei e olhei, fui cegado por uma luz extremamente forte. Fechei os olhos. O zumbido e o ruído pulsante permaneciam igualmente fortes. Abaixei-me. Movi a cabeça para o chão. Senti a luminosidade diminuir. Abri os olhos. Fiquei espantado, porém, não senti medo. Bem à minha frente planava um objeto metálico, enorme, em forma de prato. De suas laterais emanavam feixes coloridos de luz. De seu meio um círculo iluminado, rodeado por círculos menores, também iluminados, por uma luz branca e forte. As luzes diminuíram ainda mais. Fitei o objeto. Uma abertura fez-se em meio ao metal liso e dela surgiu um ser esguio, de coloração acinzentada. Tinha uma cabeça aparentemente desproporcional ao corpo. Boca minúscula. Olhos grandes, sem pálpebras. Expressão impassível. Encarou-me.
O zumbido cessou. O Ser não disse uma única palavra, mas podia senti-lo em minha mente. Por meio de imagens e sons diferentes de tudo que já ouvi, recebi explicações, propósitos, planos e informações, que jamais sonhara em minha vida. Ao final, assenti com a cabeça ao alienígena, que repetiu o gesto e retornou ao interior da espaçonave. O metal selou-a novamente, dando-lhe o aspecto anterior. As luzes da parte inferior do disco iluminaram a plantação lá embaixo, revelando em meio ao milharal um desenho complexo aos olhos comuns. A aeronave acionou seus mecanismos, emitiu um poderoso feixe de luz no ambiente e sumiu imediatamente, sem deixar vestígios.
Permaneci ali por alguns instantes, contemplando a imagem do espaço e pensando em toda informação que havia recebido. Refiz meu caminho de volta à casa, deitei-me e tentei adormecer até o amanhecer do dia. Restava agora ser paciente, agir de forma insuspeita, aguardar o meu chamado e juntamente com meus companheiros, finalizarmos nossa missão.