Encanto siciliano

[Continuação de "L de Liberdade"]

Quando saí à rua, depois de ter sido marcado como um devoto secreto da Deusa pela minha secretária, a misteriosa Srta. H., achei que já era de procurar algumas respostas - não sobre a missão que me aguardava em Astoria, pois essa poderia esperar até a noite, mas sobre a própria Srta. H..; aliás, Elena Cannizzaro Randazzo.

Assim, caminhei dois quarteirões até a Terceira Avenida, onde havia uma cabine telefônica na esquina com a rua 74. Eu possuía um telefone no escritório, mas a conversa que queria ter era justamente sobre a pessoa que lá deixara. Entrei no cubículo, fechei a porta corrediça, coloquei dois níqueis no aparelho e disquei o número de minha velha amiga Effie Hurley. Ela atendeu no segundo toque, a voz rouca de cigarro.

- Investigações Hurley & Hurley, bom dia.

- Por que Hurley & Hurley, se nunca houve um senhor Hurley? - Inquiri em tom sardônico.

Ela sugeriu que eu enfiasse um taco de beisebol numa parte recôndita da minha anatomia, o que naturalmente declinei.

- Quem é a garota? - Indagou logo em seguida.

- Como sabe que é uma garota? - Questionei.

- Sou a melhor especialista em trabalhos espirituais femininos de Manhattan, Pearce - declarou sem falsa modéstia. - Não estaria me ligando se não houvesse topado com alguma garota de garras afiadas.

- Não só garras... uma boca afiada também - comentei.

- Oh... e ela machucou alguma parte sensível da sua anatomia?

- Felizmente, a única parte da minha anatomia na qual ela encostou os lábios, foi no meu pulso esquerdo - redargui, puxando ligeiramente a manga da camisa para deixar visível o "L" queimado como que por ferro em brasa sobre minha pele.

- Pulso esquerdo... o "L" da Deusa? - Indagou placidamente Effie.

- Sim. Ela me disse que o efeito passa em 24 h.

- A sua garota não é uma vadia qualquer - avaliou Effie. - Conheço poucas pessoas aqui em Nova Iorque capazes de causar esse tipo de efeito, principalmente se a ideia é que você vá investigar algum lugar onde este sinal tenha que ser exibido para permitir a entrada.

- E as pessoas que você conhece em Nova Iorque, que tipo de gente são?

- Todas elas... e só há mulheres nisso... estão vinculadas à Cosa Nostra. Essa técnica é típica de bruxas sicilianas.

Senti um frio na espinha.

- Bem, acho que fui pego por uma delas - admiti. - O pior é que não tive nenhum alerta de presença, nenhum indicativo de que estava diante de um problema... aliás, nem me parece que seja exatamente um problema. Ela parece disposta a me ajudar num caso complicado que peguei...

Effie suspirou, do outro lado da linha.

- Uma bruxa siciliana coloca você para trabalhar pra ela, e não vê nenhum problema nisso, Pearce? - Retorquiu exasperada. - Você está bem mais enfeitiçado do que eu pensava!

- Estou raciocinando perfeitamente bem - protestei. - O estranho é nenhum dos meus amuletos de proteção ter dado qualquer sinal diante da presença dela...

- Pearce, Pearce... ela estudou você antes de dar o bote, anulou qualquer defesa que pudesse ter! Seja lá quem for, é muito perigosa. A troco de quê ela quer que você entre num local de culto da Deusa?

Um tilintar indicou que o primeiro níquel se fora.

- Eu não acho que ela queira me causar mal - racionalizei. - Creio que está agradecida porque eu a livrei da morte certa, nas mãos do ex-noivo...

- Ah! Então há um ex-noivo... e onde anda esse ressentido, me pergunto? - Ironizou Effie.

Pela primeira vez, passou pela minha mente que o Sr. J. bem poderia estar à minha espera em Astoria, e não exatamente para uma conversa amigável.

- Desaparecido.

- Antes que você entre nessa arapuca, gostaria que viesse me ver. Tenho algo que pode ao menos fazer com que pense com mais clareza, quando estiver diante dela... se é isso o que quer.

- Preciso pensar com clareza... afinal, esse é um atributo indispensável para um bom investigador - admiti. - Onde nos encontramos?

- Onde você está?

- Próximo do escritório, na Terceira Avenida com 74, Yorkville.

- Pois vai ter que pegar um táxi e vir até o Lower East Side. Não vou me afastar do trabalho por sua causa...

- Agradecido...

- Vai me agradecer muito, depois - retrucou Effie. - Há um restaurante, o Phillies, na Segunda Avenida, entre as ruas 3 e 4. Estarei lá às 13 h, e você paga a conta.

- Nos vemos lá - repliquei.

Pus o fone de volta ao gancho, saí da cabine, e fiz sinal para um táxi que passava.

- Vamos para o Lower East Side, Segunda Avenida com rua 4 - informei ao motorista.

[Continua em "Cornicello"]

- [04-06-2019]