Possuída- Parte I

Ainda me recordo perfeitamente de seus olhos opacos que remetiam o vislumbre de seus temores. Seu rosto jovial, digno de aquecer e acalentar corações de muitos pretendentes que lançavam aos ventos poesias sobre sua perfeição encontrava-se agora petrificado e em estase. Seu estado catatônico fizera com que seus pais viessem até mim ansiando por alguma cura milagrosa ou fontes terapêuticas que a tirassem daquela casca vazia onde jazia agora apenas o que restava de suas memórias, e talvez de sua alma.

Puseram-na sentada de frente para uma penteadeira no canto de seu quarto quando eu fui chamado para visitá-la pela primeira vez. Não fui capaz de deixar de notar o ar frio que circundava os arredores do cômodo escuro, pois mesmo com todas as janelas fechadas e cobertas, um frio espectral parecia gelar-me os pés quando caminhei até ela. Mal consegui ver o reflexo da garota no espelho devido à escuridão do local, pois a luz solar de certa forma incomodava-a, mas pude notar que seu semblante apático e mórbido a fazia parecer um cadáver a espera de um sepultamento quando a iluminei com uma lamparina. Com cautela me aproximei dela e a chamei pelo nome de batismo: Clarisse. Não houve nenhum sinal em resposta ao meu chamado. Toquei seus cabelos negros e me aproximei de seus olhos acinzentados a fim de ver se havia algum sinal de anemia ou outra enfermidade que poderia estar causando tal estado na pobrezinha. Quando toquei em sua pálpebra ela sibilou como uma besta atroz e me empurrou. Corri os olhos para sua mãe que estava parada na porta do quarto e seu olhar indiferente conferiu-me que aquele comportamento nocivo da garota já não era mais surpreendente. Decidi me afastar e conversar a sós com a mãe de Clarisse.

Após alguns minutos de entrevista eu comecei a notar um certo aspecto quase sobrenatural que perpetuava por aquele casarão rústico. Meus conhecimentos em medicina pareciam não ser suficientes para tratar da garota moribunda, pois eu já não era o primeiro médico a visitá-la. Perguntei então o porquê de me chamarem mesmo depois de tantas outras tentativas inúteis de recorrer à medicina tradicional para tratar do caso, e eis que a resposta embaralhou meu cerne. A mãe, com os olhos inchados, provavelmente pela falta de sono devido à preocupação com sua única filha, dissera-me que rumores sobre meus estudos voltados para o mesmerismo e minha curiosidade por demonologia pairavam sobre a pequena vila de Ouro Branco.

Pedi então a mãe de Clarisse se eu poderia andar pelo casarão a fim de conhecer melhor os cômodos e buscar compreender a natureza da enfermidade da garota que naquele momento, a meu ver, já não era mais uma doença de corpo, mas sim de alma. A mãe assentiu e me seguiu pelos corredores amplos da grande casa. Passei pelo saguão principal, por todos os quartos vazios e os das criadas, pela cozinha e nada. Reparei então que havia um alçapão no fim do corredor principal indicando que havia um último cômodo a ser visitado.

O velho porão estava abarrotado de estantes de livros empoeirados e caixas cheias de tralhas e objetos antigos. Eu estava prestes a deixar o local quando algo me chamou a atenção. Eu não saberia explicar, mas era como se um véu mágico fosse rasgado e eu passasse a enxergar melhor os livros contidos na estante dominada por cupins a carunchos. E foi quando notei que dentre os livros comuns havia um em especial. Retirei-o de seu lugar e me espantei ao perceber que em minhas mãos havia um antigo grimório que parecia conter uma lista completa da hierarquia infernal além de símbolos ritualísticos para evocação de entidades sobrenaturais e feitiços de proteção e destruição. A capa do tomo estava marcada com as cicatrizes deixadas pelo que aparentavam ser correntes, indicando assim que o livro no passado era lacrado e supostamente não poderia ser violado sem supervisão de seu dono e usuário.

Não posso negar o fato de sentir medo ao tocar naquele livro ocultista, então sem pestanejar perguntei a mãe de Clarisse de quem era aquele grimório e como um objeto tão peculiar fora repousar em uma estante velha de um porão de tralhas. A mãe balançou a cabeça negativamente com a expressão de confusão que comprovara minhas expectativas prévias de seu comportamento enquanto eu avaliava o manuscrito. Ela de nada sabia sobre aquilo. Perguntei então do pai da garota. Fausto era o seu nome e ele se encontrava em uma viagem pelas antigas estradas reais de Minas Gerais.

Decidi então subir as escadas e tentar uma nova empreitada ao descobrimento da enfermidade que adornava a alma de Clarisse. Dirigi-me a ela com cautela e retirei do meu bolso o amuleto que eu usava em minhas práticas de mesmerismo com a minha outra mão agarrada ao estranho livro. Eu ainda estava aprendendo com o meu tutor, que se encontrava fora do Brasil naquele momento e tornava a sua ajuda incabível, mas resolvi aplicar a técnica na garota mesmo assim: “Clarisse”, chamei-a enquanto dava cada passo como se estivesse em um campo repleto de estrepes: “Eu gostaria que fixasse o olhar neste amuleto enquanto tente buscar em suas memórias o que poderia estar te afligindo neste momento”. Um cheiro forte de enxofre inundou o local e fez com que minhas narinas queimassem como se houvessem pequenas brasas vulcânicas pairando no ar seco. “Clarisse!”, repeti. E eis que ela virou seu pescoço em minha direção me perfurando com um olhar de desdém antes de fascinar-se com objeto oculto que eu segurava em minha outra mão: “Clarisse, olhe fixamente para o amuleto e deixe o sono pesar sobre seu corpo. Feche seus olhos!”. Estranhamente ela obedeceu, e ao dirigir os olhos para o amuleto repousou as pálpebras ainda sentada na cadeira de frente para a penteadeira e suspirou profundamente prendendo o ar em seus pulmões. Poucos segundos depois uma voz ampliada e gutural saiu do fundo de sua garganta: “O que procuras jovem médico Abadias? Espera que eu resolva teu enigma para ti, um mero expectador do acaso que se acha capaz de confrontar-me diretamente? Não devias possuir tal objeto como este que carregas em sua mão. Espero que não seja tolo o suficiente para estudá-lo sem conseguir perder a sua sanidade. Saibas que o corpo da garota me pertence assim como logo sua alma também será minha por tentar enfrentar forças que nenhum humano é capaz de suportar” E dito isso a criatura gargalhou. Seus olhos logo se avermelharam e eu me arrepiei quando vi sangue vívido saindo de seus olhos malignos e escorrendo pelas maçãs de seu rosto. Então ela levantou-se num sobressalto e cuspiu em minha face me distraindo de um soco certeiro em meu abdômen que me arremessou contra a parede. Após este feito sobrenatural a garota mudou sua expressão e com um olhar vago e cansado dirigiu-se à cama e adormeceu profundamente e instantaneamente, mas sem antes deixar de choramingar como uma vítima indefesa à mercê de um inimigo oculto que a destruía de forma vagarosa por dentro. A mãe da garota ajudou-me a levantar do chão e eu notei novamente que seu olhar continuava apático, como se tudo aquilo já não fosse mais surpresa para ela.

A Matriz de Santo Antônio em Ouro Branco estava finalmente finalizada e o arcebispo Mouro Delaruna comandava e gerenciava todos os negócios envolvidos, desde a construção da bela obra arquitetônica até os estudos ministrados aos jovens sacerdotes que aspiravam um dia serem padres em ofício. Mouro era um grande amigo meu e seus conhecimentos em demonologia eram diretamente trocados comigo quando nos encontrávamos na pequena biblioteca da antiga diocese da vila. Por isso após presenciar tudo aquilo resolvi contatá-lo. Deixei Clarisse sobre os cuidados de Liliana, a mãe da moribunda, e com as outras criadas da casa prometendo que voltaria para ajudar a menina. Pedi para que Liliana permitisse que eu lavasse comigo o grimório em minha rápida viagem e ela assentiu com certa indiferença: “Acredito que sua filha esteja possuída por alguma entidade demoníaca, pois em nenhum momento eu citei meu nome para ela e mesmo assim eu pude ouvi-lo de sua garganta. Isso vai além da ciência tradicional. Preciso me aconselhar com um grande amigo de confiança e logo voltarei para ajuda-la”. A mãe nada disse, apenas me encarou de forma despretensiosa. Aconselhei-a rezar para Deus e amarrar os braços e pernas da garota na cama para que assim ela não se machucasse durante suas crises convulsivas anormais e abruptas que se seguiam intermitentemente. Parti ainda de noite pelas ruas da pequena vila em expansão e me abracei para poder defender-me do frio invernal que me cercava. Olhei para trás e vi Liliane na janela do quarto de Clarisse a me observar como um cão observa seu dono ir embora sem saber se de fato este voltará a vê-lo no dia seguinte. Aquilo tudo deixou meu estômago embrulhado e uma ardência percorria por minhas entranhas, por isso apressei meus passos e rumei para a nova Matriz onde residia Delaruna.

O arcebispo ainda dormia quando bati na porta de seu quarto improvisado no fundo da igreja: “Mouro, sei que o sol ainda não raiou, mas preciso de sua ajuda o mais rápido possível!”. Com a voz rouca e sonolenta ele me respondeu ao abrir a porta: “Espero que seja realmente importante, já faz algumas noites que eu durmo como uma andorinha agitada na madrugada e só agora consegui pegar no sono”. Reparei em suas olheiras profundas e me preocupei com sua saúde. Pensei em perguntar se ele poderia sentar-se comigo para podermos conversar quando seus olhos enrugados pela senescência de seus sessenta anos arregalaram-se ao notar a ponta do livro que saltava do bolso lateral de meu grande casaco de inverno: “Onde achou esta coisa diabólica Abadias? Estes livros são perigosos para aqueles que desejam fazer o bem e seguir o caminho da santíssima trindade!” E dito isso ele fez o sinal da cruz e me encarou com medo. Em resposta sussurrei: “Precisamos conversar, acredito que uma garota da vila esteja possuída por um demônio da Goétia..."

Continua.

(Guilherme Henrique)

PássaroAzul
Enviado por PássaroAzul em 02/06/2019
Reeditado em 02/06/2019
Código do texto: T6662983
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