O medo era tamanho que lhe dilatava as pupilas. Seus pés descalços – que era como gostava de andar, apesar das muitas reclamações da mãe – amorteciam, de tantas topadas nos tocos, pedras e raízes do carreiro.  Os espinhos de inhapindá, cruéis, arrancavam pedaços do surrado vestido de chita, provocando riscões de sangue em sua pele. Não era a primeira vez que Arlete corria como se o próprio diabo estivesse em seu encalço.
          O pai, vendo-a chegar correndo e ir postar-se de cócoras à beira do pequeno riacho, perto de onde arava, bradou ao fiel cavalo, que, tão suado quanto ele, puxava o arado manual com o qual feria a terra em sulcos regulares, como ondas desenhadas na lomba do terreno:
          Oooa.
          O animal ­- obediente - parou no ato.  Antônio, tirando da cabeça o velho chapéu de abas caídas, foi até o riacho, onde Arlete, ofegante e com o olhar parado, observava a água correr.
          Minha filha, o que houve?
          Nada, pai! Não quero falar.
          — Você não tinha ido buscar os bezerros?
          Arlete levantou e, resmungando alguma coisa que o pai não compreendeu, pegou o carreiro rumo a casa.
          Como já anoitecia, Antônio desatrelou o arado, soltou o cavalo e seguiu com ele pelo mesmo caminho. Estava preocupado; era mais uma crise da doença que o médico havia chamado de esquizofrenia, mas que ele, em conversas com o farmacêutico da vila, já sabia que nada mais era que um nome complicado para loucura. Sua filha estava louca! Ouvia vozes    que a apavoravam.
           Os afazeres de final de tarde, invariáveis a todo pequeno sitiante, como ordenhar as vacas, alimentar os porcos e galinhas, e juntar um pouco de lenha para aquecer a casa do frio da noite, foram concluídos por Antônio e pela esposa com uma densa e garoenta neblina a lhes molhar as costas. Arlete não havia mais saído do quarto, nem mesmo para o frugal jantar, preparado com as sobras do almoço.
         — Você acha que o remédio não está sendo suficiente? – perguntou Catarina enquanto enxugava as louças do jantar.
         — Não sei; o doutor disse que ela melhoraria, não disse? Tentei falar com ela na roça, mas não se abriu, disse apenas que não queria falar sobre isso.
         — Ela me contou que ouviu de novo aquele homem chamar lá perto da grota do Perau Branco.
         — E eu escutei mesmo! – gritou Arlete que, sem ser percebida, já estava na porta da cozinha havia algum tempo. – Quando vão acreditar em mim? Não tenho doença nenhuma, é esse maldito que vive me atormentando.
Chorando de forma compulsiva voltou ao quarto, deixando os pais se entreolhando, mudos, sem saber como reagir.



             Passava longe da meia-noite, horário restritivo para quem labuta nas lidas do campo estar acordado, e Antônio ainda rolava na cama, tentando conciliar o sono sem nenhum sucesso. Catarina ressonava havia muito tempo. O ruído da porta que dava para o quintal soou intenso no silêncio da madrugada, fazendo com que o sitiante, sobressaltado, pulasse da cama imediatamente. Parado na escuridão do quarto, ficou indeciso entre sair imediatamente, acender a lamparina, ou chamar a esposa. Não que tivesse medo, porém na vila muito se comentava sobre as incursões de ladrões que haviam assaltado várias casas na vizinha comunidade de Rio da Anta.
Tateando no escuro, encontrou o velho facão que repousava entre outras quinquilharias, numa prateleira de tábuas brutas pregada na parede. Saiu pé ante pé até a sala; a mão crispada no cabo da arma, bem a tempo de ver a porta entreaberta e um vulto branco desaparecendo por entre a capoeira, na trilha que levava para os lados do Perau Branco. Lembrando-se da filha, foi rápido ao quarto dela; vendo a cama vazia, a coberta no chão e o lençol faltando, intuiu imediatamente que o vulto era a filha enrolada no lençol.
            O nevoeiro noturno, típico dos invernos do sul, amarelado pela luz da lua cheia, encoberta por uma fina camada de nuvens, dava um aspecto surreal e lúgubre à paisagem. Antônio seguiu pelo mesmo carreiro. A lama gelada encobria-lhe os pés descalços, amortecendo os dedos.  Na pressa de alcançar a filha nem teve a prudência de pegar a lamparina, mesmo porque isso haveria de sobressaltar a esposa, já com os nervos debilitados pelos constantes delírios da menina nos últimos tempos.
          Seguiu com a rapidez que a pouca luminosidade e a precariedade do caminho lhe permitiam, mas não conseguiu mais ver o vulto à sua frente. Pelos relatos anteriores da menina, imaginou que ela estava indo para a grota do Perau Branco, bem nos fundos do terreno – um grotão de mais ou menos dez metros de profundidade, com um pequeno riacho ao fundo, que ficava seco a maior parte do ano, avolumando uma aguinha apenas nas épocas de grandes chuvaradas.
          O lençol branco sobre os ombros adquiria tons amarelados com a luz embaçada do luar, esvoaçando levemente, quando Antônio a viu, estática, diante da escarpa. Aproximou-se devagar, com medo de que sua interrupção pudesse fazê-la se atirar no vazio. Teve a impressão de que a filha estava mais alta do que realmente era. Olhou os pés da menina e um calafrio percorreu lhe a espinha. Sua filha flutuava no ar, cerca de trinta centímetros acima do chão. Um tremor compulsivo tomou conta de seu corpo. Transpirava um medo ancestral, próprio de quem crescera ouvindo histórias sobrenaturais à beira das fogueiras do interior. Sentiu todas as suas certezas se tornarem etéreas, como aquela névoa que o cercava.  Arlete pairava no ar, com a cabeça levemente inclinada para trás, o corpo ereto, como uma estátua.   Com as pernas amolecidas pelo medo, Antônio não conseguiu esboçar nenhuma reação, até ver Arlete sendo arrastada para o abismo. Apesar do torpor, o instinto de pai falou mais alto e, num salto, agarrou-se à filha, puxando-a para si. Um grito fino e angustiado saiu da garganta da moça, que se agarrou a ele cravando-lhe as unhas nas costas.
          — Minha filha! – Foi só o que conseguiu dizer; pegando-a no colo, correu com uma velocidade que em circunstancias normais jamais teria.
          Quase no final do carreiro, já saindo da mata, encontrou Catarina, que vinha com uma lamparina à mão, escolhendo com cuidado onde pisar. Explicou-lhe apenas que tinha encontrado Arlete no meio do caminho, sem falar nada sobre o acontecido
O dia amanheceu limpo e ensolarado. Antônio levantou-se vendo as coisas de outra maneira. Uma certeza havia se estabelecido em sua cabeça: Arlete não era louca; tinha realmente alguma coisa muito estranha acontecendo com ela.
           Se havia alguém que poderia orientá-lo naquela situação era o velho Matias, curador que morava como um ermitão numa furna lá para as bandas da Serra das Mulas. Comentava-se que o velho sabia tudo sobre feitiços, mandingas e outras coisas sobrenaturais. Diziam as más línguas, inclusive, que o velho também as praticava se a paga fosse boa. Antônio deu como desculpa à Catarina que ia atender ao pedido de uns dois dias de serviço de um vizinho distante. Recomendou que não deixasse Arlete sozinha nem por um instante, especialmente à noite; selou o cavalo e partiu a galope.
          Sombras de grandes árvores formavam estranhos desenhos no estreito e lamacento caminho salpicado de pedras, anunciando o crepúsculo, quando Antônio finalmente chegou aos contrafortes da Serra. Decidido, penetrou numa trilha ainda mais estreita que serpenteava ao lado de um riacho de águas amareladas. Era uma furna escura, ladeada por altas montanhas. O lusco-fusco, escuro e triste, lhe causava uma profunda angústia, porém nada neste mundo o faria voltar atrás; estava em jogo a sanidade de sua filha e a dele própria. Precisava encontrar respostas para o fato ocorrido na noite anterior.
         
          Já estava escuro quando avistou, na encosta de uma pequena elevação, do outro lado do riacho, uma casinha que deixava escapar acanhados feixes de luz pelas frestas das tábuas. Não havia ponte para atravessar o riacho, somente uma pinguela, nome comumente usado para descrever um tronco de árvore achatado em um dos lados, que se deita de um barranco a outro, por onde pode se atravessar somente a pé.
          Antônio, deixando o cavalo solto, atravessou a pinguela com cuidado, usando o isqueiro para iluminar o caminho. Um cachorro veio rosnando, desconfiado, adquirindo mais coragem quando a porta da cabana se abriu. De dentro saiu um brado alto:
          — Nero! Fique quieto! Quem está aí?
          — Chame o cachorro, Seu Matias, meu nome é Antônio, venho lá da comunidade de Cedro Seco; preciso ter uma prosa com o senhor!
          — Venha meu filho, não tenha medo – disse ralhando de novo com o cachorro.
          A casa era pequena, porém muito limpa e organizada. Dois cômodos apenas; uma cozinha com um belo fogão a lenha encaixado finamente em tijolos recobertos por uma cerâmica com desenhos em tons azulados. O restante do mobiliário compunha-se de um pequeno armário, uma mesa, quatro cadeiras e dois bancos. Apesar de não serem suntuosos, os móveis eram trabalhados com detalhes primorosos de marcenaria, tudo parecendo muito antigo. O outro cômodo deveria ser o quarto, cuja entrada não tinha porta, apenas uma grossa cortina de algodão cru.
          — Então, você é das bandas de Cedro Seco? Sente-se e me conte: como anda o povo por lá?  
O velho Matias nem de leve se parecia com aquela figura alta, de grandes barbas e modos acaboclados que sua imaginação havia criado. Era bem velho, com idade para ser seu avô. Baixo, magro e calvo, com grossas sobrancelhas emoldurando irrequietos olhos azuis. Apesar da figura miúda, seu jeito e sua voz grave e forte, expressando a fala de modo correto, passavam a imagem de uma pessoa intensa, dotada de personalidade forte.
          — Tudo certo por lá, Seu Matias, o problema é com minha filha, sabe? A menina de uns tempos pra cá...
          — Espere! – interrompeu o velho. — Você deve estar com fome, eu ia mesmo jantar, vou pôr mais um prato e vamos comer primeiro, depois você me conta o problema.
          Um cozido, que certamente deveria ser carne de caça; algumas fatias de pão de milho e um café forte foram postos à mesa, enquanto Antônio voltava ao outro lado do rio para desarrear o cavalo e trazer a sela e os pelegos para dentro da casa. Após jantarem, Antônio voltou ao assunto, contando os problemas de Arlete, finalizando com o acontecido na noite anterior, no Perau Branco.
          — Seu Matias, eu nunca poderia imaginar uma coisa daquelas. A menina estava paradinha no ar e foi sendo puxada para o penhasco; não fosse eu ter pulado nela, não sei o que haveria de acontecer. Estou muito confuso, o que significa tudo isso?
           O velho já havia recolhido as sobras do jantar e lavado numa bacia de alumínio as parcas louças; enquanto enrolava um cigarro de palha, perguntou:
          — Antônio, de que família você é? Quem são seus pais?
          — Meu pai chamava-se Arlindo Bondeniak e minha mãe Steffania Bondeniak.
          — Você lembra de que família era a sua avó materna?
          — Ela era da família Haneiko; pelo que eu soube por minha mãe, minha avó veio muito pequena para o Brasil, junto com os pais.
          — Antônio, você não deve saber, porém eu conheci muito bem a sua família, em especial a família da sua mãe. Você ainda mora no mesmo terreno de seus pais, certo? Que foi deixado de herança por seus avós maternos. Eu sei exatamente onde é o Perau Branco.
          Aquela afirmação deixou Antônio perplexo, jamais imaginaria que o tão falado “Velho” Matias teria morado em Cedro Seco. Acendendo o “palheiro”, o velho deu uma longa tragada, exalou a fumaça e continuou:
          — A família de sua avó chegou a Cedro Seco por volta de 1916, ela devia ter mais ou menos seis ou sete anos; junto com eles, vieram outras famílias ucranianas, algumas ficaram em outros lugares, principalmente em colônias no estado do Paraná.  Também veio um casal de russos, com um jovem de doze anos chamado Alexei. Nessa época, minha família morava em Cedro Seco. Meus pais eram romenos e logo estabeleceram laços com a família russa. Meu irmão mais velho, Dorin, então com dez anos de idade, ficou amigo de Alexei. Esse menino trazia consigo um grande segredo que, aos poucos, Dorin foi descobrindo, nas muitas conversas em meio às brincadeiras. Ele dizia que não era filho daquele casal, contando que seus pais moravam em um palácio cercado de muitos serviçais e que sua mãe verdadeira chamava-se Alexandra. Alguns anos mais tarde, quando ambos já eram rapazes, o pai adotivo de Alexei entregou-lhe um baú, dizendo ser uma herança deixada pelo seu verdadeiro pai. Como eram amigos inseparáveis, Alexei convidou Dorin a acompanhar a abertura do pequeno baú. Uma extensa carta esclarecia a origem do rapaz, trazendo um terrível segredo.
          — Que segredo, seu Matias? – perguntou Antônio, boquiaberto com a história.
          — Alexei era filho de Alexandra Feodorovna, czarina da Rússia. Porém seu pai não era o Czar Nicolau II. A carta fora escrita pelo mago Grigori Rasputin, que revelava ser seu verdadeiro pai. O garoto era fruto de uma relação secreta entre o mago e a Czarina. A carta esclarecia que Alexei fora retirado da corte aos dois anos de idade e substituído por outro menino, doentio, mas muito parecido com ele. O motivo era uma profecia do próprio Rasputin, que previra a morte de toda a família do Czar, fato que realmente aconteceu em 1918.  
           Abrindo a janela e jogando a bituca de cigarro fora, o velho continuou:
         — Na mesma carta, Rasputin conclamava o filho a seguir seu ministério de mago das artes arcanas. Além da carta, havia no baú vários livros de magia antiga, alguns amuletos mágicos e diversas instruções, sobre as quais os dois rapazes se debruçaram com interesse fervoroso.
          — Mas esse negócio de magia funciona mesmo, Seu Matias? Com o perdão da sinceridade, para mim isso é só pra engabelar os tolos; nunca acreditei nisso, não.
          — Você consegue explicar o que viu no Perau Branco, Antônio? Tem muitas coisas que as pessoas não conseguem explicar neste mundo e preferem ignorar. Deixe-me contar o resto e depois pode tirar as suas conclusões. Como eu dizia, depois de algum tempo Dorin notou uma grande mudança no comportamento de Alexei. Aquele menino doce e amigo transformava-se muito rápido. Sua personalidade meiga e afetuosa, a cada dia mudava para pior. Tornou-se introspectivo, arredio e cruel; a cada dia mais obcecado pelos livros de seu pai. Dorin, tendo participado de diversas experiências com o amigo, de certo ponto em diante afastou-se com medo dos experimentos tenebrosos praticados na maioria das vezes no meio da floresta, à luz de fogueiras, envolvendo sacrifícios de sangue com pequenos animais, cruelmente queimados ou esquartejados, normalmente quando ainda estavam vivos. O povo do lugar, sabendo daquelas coisas, também o temia; porém seus pais adotivos pareciam ignorar os fatos, incentivando e elogiando seu progresso.



— Nossa! – disse Antônio, apalermado. – Quando eu era pequeno, ouvi algumas histórias em volta das fogueiras, contadas pelos mais velhos na época das secagens de fumo em galpão, sobre esse rapaz feiticeiro, mas nunca pensei que fossem verdadeiras.
          — No fundo das suas terras deve haver uma tapera, ou pelo menos resquícios de uma construção bem antiga.
          — Sim, há um lugar onde velhas pedras formam o que parece ter sido a fundação de uma casa, mas o mato tomou conta daquele lugar.
         — Ali morava o casal de russos, que adquiriu aquele pedaço de terra na mesma época que seu avô comprou o terreno que agora é seu. Eu ainda nem era nascido, meus pais moravam mais ao fundo; eram empregados naquela fazendo que hoje pertence a uma companhia de reflorestamento, mas naquela época era de um grande fazendeiro. Pois bem, esse fazendeiro morava em Curitiba e vinha passar longas estadias na fazenda. Algumas vezes trazia junto sua esposa e sua filha, uma garotinha de mais ou menos doze anos. Um dia, a menina, que costumava brincar nos arredores da sede da fazenda, desapareceu.
          — Sim, eu ouvi falar desse caso, os mais velhos comentavam que foi uma desgraceira o que aconteceu – disse Antônio, relembrando as conversas ao redor das fogueiras.
 
          — Pois então você deve ter escutado que, procurada em todos os cantos da propriedade e pelas propriedades vizinhas, somente depois de dois dias a menina foi encontrada nos fundos do terreno do seu avô, debruçada sobre uma rocha, na ravina do Perau Branco. Havia em seu corpo sinais de tortura e de violência sexual, além de vários cortes em forma de estranhos sinais.  Foi o que bastou para que todos culpassem de imediato o jovem bruxo. O pai da menina, cego de dor, juntou-se ao meu pai e ao seu avô, indo à procura de Alexei. 
          — Pelo que você me contou, seu irmão Dorin, mesmo tendo se afastado de Alexei, não teve nenhuma desavença com ele. Como ele reagiu a isso tudo?
          Matias demorou a responder, como se procurasse lembrar. Por fim disse:
          — Meu irmão havia saído alguns dias para trabalhar com um vizinho. Você bem sabe que, nas lidas de lavoura, os vizinhos trocam dias de trabalho. Isso não é comum até hoje?
          — Sim, claro – disse Antônio.
O velho prosseguiu:
— Os pais adotivos de Alexei, alertas para a possibilidade de ele ser acusado, quando ouviram os homens chegando, fizeram com que ele fugisse para o meio da floresta. Não encontrando o rapaz, o velho fazendeiro, em seu instinto de vingança, propôs torturarem o casal de velhos a fim de que contassem onde seu protegido havia se escondido. Seu avô e meu pai, deixando-se levar pela insânia do momento, amarraram os russos em uma árvore, torturando-os cruelmente até confessarem que o rapaz havia fugido para o meio do mato. As diversas estocadas de punhal, socos e pontapés foram demais para os infelizes, que já tinham idade avançada. Ambos morreram logo em seguida.
          — Não consigo acreditar que meu avô tenha se prestado a tal crueldade – disse Antônio.
          — Muitas vezes até o mais pacífico dos homens pode tomar atitudes completamente fora do normal. Não foi o primeiro caso nem será o último. A influência do fazendeiro e a crueldade com que a menina fora assassinada com certeza contribuíram para isso. Logo após a morte do casal, os três, percebendo seu erro e, tendo consciência dos problemas que haveriam de enfrentar, resolveram ocultar os corpos. O melhor lugar para isso era exatamente o penhasco do Perau Branco, para onde levaram os macabros fardos, escondendo-os provisoriamente. Alexei, que não havia se embrenhado muito na floresta, escutando os gritos dos pais adotivos, voltou furtivamente aos arredores da casa. Quando chegou, os dois corpos já estavam sendo desamarrados e carregados nas costas de uma mula. Indo até a casa, muniu-se de uma foice e seguiu o funesto trio, até ver o triste destino de seus pais adotivos. Uma fúria vingativa deve ter tomado conta dele, fazendo com que atacasse os homens de forma insana.  Experientes e em maior número, os três facilmente subjugaram o rapaz, tomando-lhe a foice.
          — Desculpe Seu Matias, mas como o senhor sabe de todos esses detalhes?
          — Meu pai contou tudo a meu irmão, que, anos depois me contou. Agora posso continuar? – disse sorrindo de forma cortês.
          — Claro, me desculpe, eu fico interrompendo a toda hora.
          — Bem, o aparecimento do rapaz, com toda aquela fúria, reavivou o instinto sanguinário daqueles homens, que, esquecendo o remorso pela morte dos velhos, levaram Alexei até o fundo do Perau Branco, amarrando-o numa árvore. O velho fazendeiro, olhando o rapaz com um fogo sanguinário nos olhos, disse:
“Você! Maldito assassino de crianças, sabe como se castigavam os bruxos na velha Europa?”  Logo em seguida começou a juntar galhos secos em volta do prisioneiro, sendo imitado pelos outros dois homens. O fogo ardeu fácil em volta da vítima, que se contorcia em dores implorando por piedade, dizendo-se inocente. Quando percebeu que de nada adiantaria, amaldiçoou aqueles homens, prometendo voltar da morte e se vingar deles e de todos os seus parentes, antes de ser consumido pelas chamas em gritos e gemidos apavorantes.


          — O senhor acha, então, que é ele que está assombrando minha filha?
          O velho deu um tímido sorriso e continuou:
          — Caro Antônio, gostaria que me deixasse concluir a história, então chegaremos juntos a uma conclusão; combinado?
          — Opa! Desculpe-me de novo, Seu Matias, é que estou ansioso para saber sua opinião.
          — Depois do fato consumado, os três homens, emudecidos pelos acontecimentos, enterraram os corpos no fundo do Perau e foram para casa, não sem antes jurarem entre eles que aqueles fatos ficariam em absoluto segredo. Ao povo do lugar, disseram que os russos, com medo de serem acusados pela morte da menina, haviam fugido. A sua casa, depois de alguns meses de abandono, foi misteriosamente incendiada numa noite quente de verão.
          — Desculpe se interrompo de novo, mas fiquei intrigado: o senhor sabe da história em detalhes... Se meu avô e aqueles homens fizeram uma jura de silêncio, como seu irmão Dorin poderia saber da história toda?
          — Meu irmão me contou que pressionou o nosso pai sobre o destino dos russos, pois sabia que Alexei não fugiria assim sem ao menos deixar-lhe uma mensagem. Alexei ainda o considerava praticamente como um irmão. Meu pai, temendo que Dorin saísse ao mundo à procura do amigo, acabou contando tudo. Dorin ficou bastante revoltado, e, mesmo tendo ficado ainda alguns anos em casa, um dia acabou ganhando estrada e dele nunca mais ouvimos falar. Meus pais morreram tristes, sem saber mais notícias do filho.
          — E o senhor? Como aprendeu a curar e prever o futuro?
          O velho sorriu, dizendo:
          — Eu não prevejo o futuro, Antônio; só a Deus compete isso. O povo inventa muita coisa a meu respeito. Meu irmão Dorin me ensinou muitas das coisas que hoje sei; ele sabia bem mais do que admitia.  Após a morte de Alexei, sua visão sobre a magia se alterou; de uma época em diante começou a praticar alguns rituais estranhos, aqueles mesmos que abominava em Alexei. Eu mesmo presenciei e até participei de alguns, bem amedrontadores.
          Aproximando-se do fogão, Antônio pôs mais algumas achas de lenha no fogo e disse:
         — Uma coisa me intriga: sendo seu irmão da mesma época de Alexei, isso quer dizer que em 1916 ele já deveria ter uns dez ou doze anos, certo? O Senhor não é tão velho assim, a diferença de idade entre vocês deveria ser bem grande.
          — Meu irmão nasceu em 1906 e eu em 1926.
          Antônio surpreendeu-se. Matias era bem mais velho do que aparentava.
          — A convivência com meu irmão foi normal até os meus doze anos; a partir dessa idade ele iniciou-me nos mistérios da magia. Durante quatro anos, até ele sumir de casa, pude escavar os escuros e tortuosos caminhos do mundo espiritual. Confesso que fui um aluno aplicado. Depois de sua partida continuei praticando, porém sem um mestre, não evoluí muito. Adquirindo a maioridade, viajei para  bastante longe, onde busquei pessoas que me ajudaram a aperfeiçoar meus conhecimentos. Foi onde entendi que as práticas de Dorin, assim como as de Alexei e as minhas próprias, eram voltadas para as piores portas da magia.  Quando voltei para cá, meus pais já haviam morrido. Sozinho no mundo, decidi recolher-me ao silencio deste canto ermo, buscando a paz de uma vida puramente contemplativa. Tenho muitas dívidas espirituais por conta dos excessos arcanos cometidos na minha juventude, as quais só poderei pagar silenciando meu interior. O povo das redondezas, sabendo de minha presença, começou a vir em busca de auxílio para os mais diferentes problemas. Eu não aprecio essas interferências na minha solidão, porém não posso negar ajuda a quem recorre a mim. Uma das maiores expiações, talvez a que mais eleve o espírito, é justamente a caridade ao próximo. Os exageros e as maledicências, deixo-as ao encargo do povo; francamente não me importo!
          Antônio, não entendendo bem aquele palavreado complicado, ficou desconfortável e preferiu mudar o rumo da conversa para onde realmente lhe interessava:
          — O Senhor acha que os problemas de minha filha podem ter alguma coisa a ver com essa história de Alexei?
          O velho levantou-se, foi até o fogão e arrastou uma velha chaleira até o centro da chapa; colocou mais dois pedaços de lenha no fogo e voltando a sentar-se, disse:
          — O mundo espiritual é muito complexo, Antônio. Não tenho nenhuma pretensão de que você acredite ou entenda; algumas pessoas cultivam a maldade dentro de si com tanta energia que, mesmo após a morte, sua presença nociva continua exalando o mal sobre a terra. São aqueles que, em vida, buscaram satisfazer os instintos mais baixos de sua natureza humana, usando para isso todos os instrumentos que tinham à mão, entre eles a magia. Esta, especialmente se usada de forma ambiciosa e irresponsável, pode, no momento da morte, prender o desencarnado entre dois planos espirituais, não permitindo que vá além, nem que volte ao plano anterior. Nessa espécie de limbo, sua alma fica acorrentada e seu ódio cresce tanto que seu magnetismo maldoso às vezes alcança as pessoas mais sensíveis a essas influências.
          — E o senhor acha que é a alma de Alexei que está importunando minha filha?
          — Não posso afirmar com certeza, porém uma coisa é certa: sua filha corre perigo.
          — O senhor pode me ajudar?
          — Apesar de não ficar nem um pouco animado com a possibilidade de mexer novamente com este tipo de magia, eu sei que preciso ajudá-lo, Antônio; partiremos amanhã bem cedo para sua casa.
          A friagem cortante da madrugada acompanhava os dois cavaleiros que, ao romper do sol, já haviam percorrido uma boa dezena de quilômetros.
          Ao final da tarde, Arlete, avistando a fina nuvem de poeira que os dois viajantes levantavam ao longe, na estrada de terra, correu para dentro de casa; era sempre assim. Se algum estranho chegava, mesmo que acompanhado do pai ou de alguém da família, ela se escondia no quarto ou ia para o meio do mato.
          A presença do velho Matias não deixou outra opção a Antônio senão chamar a esposa à parte e contar tudo. Para surpresa do marido, Catarina não se surpreendeu.
          — Nunca acreditei muito nesta coisa de loucura, Antônio, nossa filha sempre foi uma menina normal. Isso me deixa de certa forma mais aliviada. A loucura não teria remédio, já essa coisa maldita pode acabar. Eu acredito que este velho pode nos ajudar, gosto do seu jeito, do seu olhar; acho que podemos confiar nele.
          Antônio ficou feliz; sabia que a esposa tinha um talento especial para conhecer o caráter das pessoas. Ele, na verdade, também havia tido uma ótima impressão a respeito do velho feiticeiro. Resolveu chamar a filha para conhecê-lo.
          — Esta é minha filha, Seu Matias.
          O velho olhou silenciosamente a menina que, desviando o olhar para o chão, também ficou em silêncio, até que o pai a cutucou:
          — Cumprimente o Seu Matias, minha filha! Não lhe ensinei boas maneiras?
          — Bom dia, Seu Matias, disse a moça, sem olhá-lo.
          — Bom dia, Arlete; seu pai falou muito de você. É uma moça muito bonita – disse com um sorriso meigo, enquanto tocava uma mecha de seus cabelos loiros. – Eu vim com o seu pai para que, juntos, possamos pôr um fim na maldição que tem atormentado você. Quer falar sobre isso?
          A moça acenou com a cabeça que não e timidamente saiu da sala. Antônio chamou-a de volta de forma áspera:
          — Arlete, minha filha! Volte aqui, que falta de....
          — Deixe-a Antônio – falou o velho –, tenhamos paciência com a menina. Imagine o quanto deve ser assustadora essa situação para ela. Mais tarde vou tentar fazer com que ela se abra comigo. É importante que eu consiga fazê-la falar, mas forçá-la pode desencadear uma crise histérica que, nesta altura, seria muito danoso. O que quer que a esteja provocando pode se aproveitar da sua debilidade para controlá-la definitivamente.
          Após a janta, por sugestão de Matias, Catarina fez um chá com algumas ervas que o velho lhe entregou e o ofereceu a Arlete. Depois de alguns minutos, fosse por estar mais familiarizada com o velho, ou pela influência da bebida, a menina acabou contando como sentia a presença maligna incomodá-la:
          — Ele me chama com uma voz maldita, voz de sem-vergonha, me falando bobagens e rindo.
          — Que tipo de bobagens, minha filha? – perguntou Antônio.
          — Bobagens, ué! Besteiras daquelas que não se deve falar – disse corando e desviando o olhar para o assoalho. 
          — Querida, é importante que seja mais clara; eu quero te ajudar, mas você precisa me dizer exatamente o que ele te fala, não tenha vergonha, pois aqui só estamos eu e seus pais.
          — Ele diz que quer tocar meu corpo, que adora o meu cheiro e outras coisas ainda piores que não vou falar! E me chama a ir até ele. Nunca me disse, mas eu sinto que ele mora no Perau Branco. Agora chega, vou para o meu quarto. – Chorando baixinho, saiu de cabeça baixa.
          Os três se entreolharam, mudos; Matias comentou que parecia mesmo ser o fantasma de Alexei que estava importunando a menina; e fez lembrar o caso da filha do fazendeiro, brutalmente seviciada tantos anos atrás.
          — O senhor não sabe que houve outros dois problemas como esse, aqui em Cedro Seco, Seu Matias? – disse Catarina. – Um deles aconteceu há mais de vinte anos; eu ainda era solteira. Uma menina de quatorze anos, filha de um casal de meeiros, após sumir por um dia inteiro foi achada na estrada geral, aqui perto, com a roupa em frangalhos, completamente abalada. Dizem que nunca mais falou coisa com coisa. Outro caso foi o de Mariane, uma mocinha de dezessete anos, que, depois de dias desaparecida, apareceu completamente atordoada, vindo a se matar dias depois; isso foi há mais de dez anos.
          — Isso confirma que Arlete corre perigo; amanhã iremos preparar algumas coisas que precisarei para combatermos este mal. Por hoje só resta irmos descansar, mas é melhor ficarmos de olho em Arlete. Aconselho a senhora a dormir com ela, dona Catarina.
          Mal terminou de falar, uma forte rajada de vento fez rangerem as tábuas da casa. Os móveis tremeram, como se um pequeno terremoto estive acontecendo. A lâmpada da cozinha espocou, derramando uma chuva de pequenos cacos de vidro sobre o assoalho. Antônio, tateando, foi até a sala contígua e acendeu a luz. Tudo acabou tão rápido como começou. Catarina correu ao quarto de Arlete, sendo seguida pelos dois homens. A menina encontrava-se com uma perna sobre a janela, já quase saindo.
          — Minha filha! – gritaram quase juntos, pai e mãe.
          Arlete, com a cabeça para fora da janela, voltou-se, girando o pescoço mais do que um ser humano pode suportar. Num olhar pavoroso, mostrando apenas o branco dos olhos e rangendo os dentes, desprendeu uma voz inumana, cavernosa, guinchando sons ininteligíveis.
          — Ela está possuída! – disse Matias, e voltou rápido até onde havia deixado sua velha mala de couro. Abrindo-a, tirou uma estranha cruz em forma de X e um saquinho de lona. Retornou ao quarto, abriu o pequeno saco e atirou um pouco do pó que havia no mesmo sobre Arlete e, mostrando a cruz, disse:
          — Pela poderosa Crux Decussata e pelas cinzas do sagrado lenho de Santo André, retira-te, criatura do mal!  Assim ordena aquele que já cruzou as sete portas do abismo e vislumbrou o espelho negro conhecendo a palavra proibida. Retira-te!
          Arlete desmaiou e caiu para fora da janela; ao mesmo tempo, Catarina soltou um grito. Antônio, pulando a janela, segurou a filha desmaiada, até que Matias veio em sua ajuda e ambos levaram a menina para dentro.
          — Ela tem que descansar agora; é melhor que vocês dois durmam com ela. Fiquem com a Crux Decussata e deixem-na o tempo todo junto à Arlete; ela é muito poderosa e a protegerá de novas investidas desse demônio. Estarei dormindo na sala; qualquer coisa estranha me chamem. Amanhã cedo lhes explicarei melhor o que aconteceu – disse Matias.
         Antônio e Catarina, apesar de deitados com a menina, não conseguiam pregar o olho.  O velho, ao contrário, logo ressonava tranquilamente, o que acabou transmitindo segurança ao casal. Horas depois, vencidos pelo cansaço, acabaram adormecendo. O restante da noite transcorreu sem incidentes.
          O novo dia decorreu sem maiores novidades, com Antônio e Catarina cuidando dos afazeres da propriedade, enquanto Matias preparava seus misteriosos elementos, sempre com Arlete por perto. À tarde convidou Antônio para que fossem até o Perau Branco; queria fazer um reconhecimento do local. Antes perguntou a Catarina se havia alguma galinha chocando; a mulher respondeu que sim.
         — Muito bem, vamos precisar de alguns ovos em choco, mas só vamos retirá-los do ninho no momento certo.
          Chegando ao Perau Branco, Matias indagou se havia alguma forma de descer ao fundo do barranco.  Antônio respondeu que havia uma velha picada costeando a taipa e, caso fossem descer, deveriam ter muito cuidado. Desceram devagar, abrindo o mato a golpes de facão, preparando o terreno para que pudessem voltar mais tarde com Arlete. Antônio arrepiou-se de saber que deveriam vir ali à noite; ainda mais trazendo a filha.
          — É preciso, Antônio. O maldito ficará vulnerável ao tentar se apossar da menina. Não se preocupe! Estaremos preparados para ele.
          O sol já havia sumido totalmente quando retornaram para a casa; fizeram um lanche frugal e se prepararam para voltar ao Perau Branco. O velho recomendou à Catarina que ficasse em casa, levariam apenas Arlete; uma pessoa a mais para ficar de olho no momento crucial poderia pôr tudo a perder. Antes de partir, pediu à Catarina que lhe trouxesse os ovos em choco, perguntando quantos dias faltavam para nascerem os pintinhos.
          — Falta mais ou menos uma semana, seu Matias.
          — Ótimo! – disse enquanto pegava os três ovos, acariciando-os um por um até escolher um deles. – Catarina, você costuma pintar pêssankas?
          — Sim, seu Matias, é uma de nossas tradições ucranianas pintar os ovos para a páscoa.
          — Muito bem, quero que pinte este ovo completamente de preto, deixando apenas estes símbolos em branco. – Entregou-lhe um pequeno pedaço de papel amarelado com alguns desenhos estranhos. – Faça isso rapidamente, não se importe se o trabalho não ficar muito bom; o importante é que faça isso mantendo o ovo morno de forma que o pintinho aí dentro não morra. Depois o enrole em um pano aquecido para que, dentro de minha bolsa, ele continue vivo até chegarmos ao Perau Branco.         
           Após o estranho pedido concluído, já na escuridão completa, seguiram. Antônio ia à frente, iluminando o carreiro, seguido por Arlete e pelo velho. A menina ia choramingando baixinho, aterrorizada.
          — Calma, Arlete, eu sei exatamente o que fazer para te proteger. Ele não conseguirá te fazer mal; lembra-se de como o expulsei ontem à noite? – dizia Matias tentando tranquilizar filha e pai.
         Passava das dez da noite quando chegaram à picada que descia ao fundo do perau. 
          A mata fechada, iluminada pela fraca luz da lanterna de pilhas, dava a impressão de que a trilha por onde desceriam era uma grande e escura bocarra que os engoliria para nunca mais devolver.
          Chegando ao fundo da ravina, fizeram uma pequena fogueira. Arlete sentou-se numa pedra; encolhida, tremia, olhando de forma compulsiva para todos os lados.  
           O nevoeiro estava tão denso que parecia tocar nos seus rostos, mal delineados pela fraca luz da fogueira. Uma brisa gelada caiu sobre os três, ficando cada vez mais forte, fazendo com que Arlete batesse o queixo.  Antônio aproximou-se da menina e, sentando na mesma pedra, abraçou-a.
          — Arlete – disse o velho curador –, qualquer coisa que sinta, fale-me logo!
          A resposta veio na forma de uma gargalhada gutural e debochada, desproporcional à voz meiga e delicada da menina. Antônio, de um salto, levantou-se da pedra, pondo-se à frente da moça sem saber o que fazer. Arlete, com o olhar chispante, os cabelos desgrenhados, corpo estático, voltou-se para Matias com um sorriso de escárnio maligno:
          — Matias...Matias...acha mesmo que pode me enfrentar? Velho maldito! Não sabe com que forças está lidando!
          — Alexei Rasputin, sei exatamente qual o tamanho das suas forças. Deixe essa menina em paz e desça definitivamente ao obscuro mundo de onde nunca deveria ter retornado — disse o velho com uma voz firme e segura.
          Uma nova gargalhada diabólica saiu da boca da pequena:
          — Tolo! Você nem mesmo sabe quem eu sou!
          A menina, agora, levitava a um metro do chão com a cabeça arqueada para trás, os olhos fechados e os cabelos eriçados.  Pedras do tamanho de um punho fechado, folhas, galhos e tocos, precipitaram-se do solo e dos barrancos com força sobre os dois homens, jogando-os ao chão. A fogueira apagou-se numa forte ventania, deixando o capoeirão iluminado apenas pela aura esverdeada que bruxuleava em volta de Arlete.  Matias, ao tentar levantar-se, se apoiando em uma das mãos enquanto com a outra protegia a cabeça, viu um espectro luminoso ir em direção à Arlete e rodopiar em volta do corpo da menina. Ela contorceu-se num espasmo de dor e, gritando uma injúria na mesma voz cavernosa de antes, desabou ao solo.  Imediatamente o ataque dos detritos cessou, permitindo que os dois homens pudessem se levantar, agora completamente no escuro; a luz esverdeada havia sumido.
         Matias, recuperando a lanterna, apanhou o embornal de couro que estava a alguns metros; retirou de dentro a cruz em forma de X e entregou-a a Antônio.
         — Abrace sua filha e segure este objeto com força!
          O pai de Arlete obedeceu de pronto, ao mesmo tempo em que a lanterna se apagava. Antônio viu na penumbra Matias retirar mais alguma coisa da sacola e depositar sobre uma pedra, recitando um encantamento numa língua vagamente familiar. Parecia ucraniano, mas não dava para entender. Ao final da cantilena, o objeto adquiriu uma fraca luminosidade, quase imperceptível, mas na escuridão total em que se encontravam, delineava seus contornos e os desenhos que continha. Era o ovo que Catarina lhe entregara. Os símbolos desenhados na casca ficavam cada vez mais brilhantes. Alguma coisa, como que uma fumaça dançando em volta dele, penetrou-lhe pela casca. Foi o tempo exato para que Matias, dando um grito, desferisse um murro sobre a pedra, despedaçando o ovo, que teve uma explosão brilhante, porém sem som algum.
          — Pode levantar sua filha, Antônio, o perigo passou – anunciou o velho enquanto juntava os gravetos para acender de novo a fogueira.
          — O que aconteceu, seu Matias?
          — Não sei quem, ou o que nos ajudou, Antônio, mas aquele vulto luminoso era outra entidade. Ela neutralizou o poder do maligno, me dando tempo para executar o encantamento que atraiu o espirito do mal para dentro do ovo.
          — Quer dizer que a alma dele entrou no ovo e o senhor a destruiu?
          — Destruir não existe no plano espiritual, meu filho, apenas destruí o invólucro terreno em que ele penetrou, enviando sua essência a outro plano dimensional. O ovo continha um pequeno ser vivo em seu interior, o pintinho, no qual já havia uma centelha de vida. O encanto que eu recitei, somado aos símbolos mágicos, atraiu o espirito maligno assim como uma mariposa é atraída pela luz. Quando ele penetrou no corpo do pintinho e este foi destruído, seu espírito foi arremessado a outra dimensão.
          Antônio, ainda que assustado, argumentou:
         — Mas esse espirito maligno estava morando aqui, mesmo seu corpo tendo sido destruído na fogueira tantos anos atrás?
           — Lembra-se do que eu lhe disse naquela noite, em minha casa? Em raras ocasiões, como foi o caso dessa alma negra, o espírito pode ficar preso entre as duas dimensões, mas desta vez, porém, o poder contido no encantamento e nos símbolos desenhados na casca do ovo não permitiu que ele ficasse em nosso plano.
          — Seu Matias, não adianta me explicar essas coisas. Tudo é muito difícil de entender, só quero saber se minha filha estará em paz daqui por diante.
           Nesse momento, a fogueira crepitou forte e apagou-se por completo. Antônio abraçou Arlete, que acabara de despertar. O velho Matias murmurou algumas palavras que os dois não entenderam. Uma silhueta iluminada, meio disforme, apareceu diante dos três, tomando a forma etérea de um corpo humano. Levantou um dos braços e sem nada dizer apontou para uma direção, sugerindo que o seguissem. Matias tomou a dianteira, fazendo sinal para que pai e filha o seguissem. Embrenhando-se no grosso capoeirão, ladeado pelos altos barrancos da ravina, caminharam por cinco minutos. Chegando a um lugar onde os barrancos se estreitavam, avistaram a silhueta de uma pequena construção já em ruínas. O espectro evanesceu-se, tão silencioso como chegara. Matias disse:
         — Vamos embora, não é o momento de entrarmos aí; com essa escuridão nada acharíamos. Amanhã voltamos aqui.
Em silêncio, rapidamente voltaram; Matias seguiu na frente, iluminando o caminho com a lanterna. Chegaram a casa por volta de uma da manhã, encontrando Catarina à sua espera, ansiosa. Dadas vagas explicações à mulher, foram dormir. Antônio e Catarina dormiram junto à Arlete.
          No dia seguinte, Antônio e Matias voltaram a descer até o ponto onde, na noite anterior, o espectro havia lhes mostrado a cabana. Era uma construção rústica, cujas paredes eram feitas de troncos encostados uns nos outros. O teto também era de troncos, cujas junções haviam sido vedadas com barro, onde crescia uma grama selvagem que parecia ter sido plantada para dar consistência ao conjunto. Na verdade, não fosse construída bem junto ao paredão rochoso, cuja taipa formava uma gruta que encobria quase toda a casinha, aquele telhado não teria aguentado o peso dos anos.
          A porta, composta por duas grossas tábuas de cerne, não havia apodrecido; à guisa de fechadura, apenas um buraco por onde passava um pedaço de corrente, cujos elos das pontas estavam unidos por um arame já apodrecido. Retirada a corrente, Antônio forçou a porta para dentro e teve de segurá-la para que não caísse, uma vez que as dobradiças eram apenas três pedaços de couro pregados nos troncos, que se romperam ao menor esforço. Os dois homens encostaram a porta na parede, pelo lado de fora, e entraram na cabana. Era apenas um cômodo. Um catre de varas brutas, palha e alguns trapos empoeirados formavam o que havia sido uma rústica cama.  Restos de uma fogueira ao centro, com uma trempe enferrujada, de onde pendia uma velha panela de ferro, tudo ladeado por pedras, formavam o que devia ter sido o fogão. Uma mesa meio apodrecida, sobre a qual estavam parcos utensílios de cozinha e um cepo como cadeira, formavam tudo o que havia servido ao desconhecido morador. Além disso, bem encostado à parede do fundo, repousando sobre uma pedra achatada, um velho baú decorado com fino trabalho de marchetaria e bronze.
          — Antônio, traga este baú para fora – falou o velho com entusiasmo.
Apesar de ter uma fechadura, o baú estava destrancado. Dentro havia uma caixa, forrada em veludo carmim, onde estavam cuidadosamente acondicionados vários objetos estranhos, alguns em metal, outros em madeira e em pedra polida. Havia também vários livros muito antigos, alguns com escritas e desenhos incompreensíveis para Antônio. Matias não demonstrou nenhuma curiosidade pelos mesmos, interessando-se por um caderno com folhas amareladas pelo tempo, cuja capa era impressa com o desenho de alguns escoteiros correndo com a bandeira brasileira sob a palavra “Avante” em letras vermelhas. Obviamente devia ser de algumas décadas atrás.
          As revelações ali escritas a lápis deixaram os dois boquiabertos: tratava-se de uma espécie de diário de Dorin, irmão mais velho de Matias. Ele revelava ser o responsável pelo assassinato da filha do fazendeiro, tantos anos atrás. Com detalhes sórdidos, que evidenciavam sua predileção sexual por jovens meninas, ele descrevia como havia sido fácil raptar e, depois de satisfeitos seus vis desejos, marcar o corpo da pobre criatura com símbolos ocultistas para que a culpa naturalmente recaísse sobre o jovem Alexei. O caderno era um misto de diário, anotações de bruxarias e fórmulas mágicas. Nele, Dorin contava como, escondido na mata, havia presenciado o assassinato de Alexei e seus pais. Contava também que após esses fatos, havia roubado o baú de Alexei e incendiado a casa.
          — Por isso ele sabia de tudo com tantos detalhes – disse Matias  com a face lívida de desgosto. Esta cabana deve ter sido seu esconderijo nos anos em que aperfeiçoou seus poderes. Agora está claro porque sumia por diversos dias naqueles tempos em que morávamos em nossa velha casa. Maldito!
           Passando os olhos rapidamente pelo restante do conteúdo do caderno, Matias, ao chegar à última página demonstrou tamanha surpresa que foi interpelado por Antônio:
         — O que foi seu Matias?
         — Ouça – disse o velho, lendo a página:
“Hoje tive uma surpresa: O desgraçado do meu pai apareceu aqui; deve ter me seguido, o maldito! Teve a petulância de me pedir para parar com meus estudos de magia; com uma paciência irritante, veio com uma conversa mole sobre religião, Deus, bondade. Logo ele, desgraçado assassino; mas joguei tudo na cara dele; caso continue com essa história, irei às autoridades e contarei como assassinaram Alexei e seus pais. Não que eu me importe, aquele bruxo de meia-pataca merecia o destino que teve”.
          — Meu Deus! Jamais pensei que meu irmão fosse tão cruel. Ele estava obcecado com a magia, mas em casa tratava meus pais e a mim de forma normal. Esta é a última página; por que não escreveu mais nada? Por que depois que sumiu de casa para sempre ele não levou este baú? Por que deixou este caderno com uma confissão que poderia levá-lo à cadeia?
          A réplica de Antônio às indagações de Matias morreu em sua boca. Um véu rubro desceu sobre os olhos dos dois homens, catalisando todas as coisas em volta deles. De repente, estavam em outro mundo, de formas, cores e perspectivas anômalas. Na verdade, não havia como descrever, pois os sentidos humanos de nada serviam naquele lugar. Tudo se modificava a cada segundo, até que, petrificaram-se diante de uma colossal mesa, sobre a qual repousavam cabeças decapitadas de homens, mulheres e crianças de todas as raças, cujos olhos, mesmo vazados, deixavam escapar fios de uma luz violácea. Coisas amorfas contorciam-se, emitindo sons que apenas podiam ser percebidos com os ouvidos da alma, deixando um luminescente rastro gosmento sobre os crânios por onde rastejavam. Numa das cabeceiras, sentado em uma cadeira de grandes espaldares, uma figura sombria, cuja face estava envolta na penumbra.
          — Bem-vindos ao Abissal do Desespero, à Seara da Dor, à Fissura dos Proscritos da Alma!
          — Senhor do Desespero, eu suponho – respondeu Matias, imperturbável àquela saudação.
          — Ora, ora, um mortal com conhecimento dos círculos infernais; você me surpreende!  Não me apresenta seu amigo?
          — Ele nunca irá pertencer a este lugar; está aqui comigo por acidente. Aliás, nem eu mesmo sei por que estou aqui! Por que estamos aqui, Senhor do Desespero?
          Uma grande gargalhada reverberou pelo antro. As coisas que se arrastavam por cima da mesa encolheram-se sibilando gritos de agonia. O espectro levantou-se. Mesmo não sendo possível ver sua face, um brilho maligno faiscou onde eram seus olhos.
          — Alguém que me serviu muito bem em vida, e mais ainda quando morto, recentemente veio morar conosco e solicitou esta audiência.
          — Meu irmão Dorin?
          Nova gargalhada e novamente as coisas gosmentas lamentaram-se, como se a risada do espectro lhes provocasse uma dor lancinante.
          — Irmão? Como vocês, em seu estado mortal, se apegam à temporária condição de sangue, no curto período em que habitam o invólucro carnal... Irmãos não existem; pais não existem; mães não existem. São meras coincidências; uma piada cósmica, como um jogo de dados. Quando sua essência se faz carne, o acaso faz com que caiam no meio de outros, que reconhecem por família. Mas são apenas outras almas, cuja bondade ou maldade é anterior a essa patética formação terrena chamada família.
          — Não cederei à tentação de ficar discutindo a essencialidade humana com um ser do inferno, cuja visão é deturpada pela maldade. Foi ou não Dorin a provocar nossa vinda aqui?
          — Sim, aquele que você chama de irmão é um demônio muito mais antigo, que já encarnou diversas vezes no passado. Sua sede bestial pela depravação e maldade encheu de orgulho seus mestre infernais.
          — Obrigado, mestre! É muito bom escutar um elogio. – A voz veio de lugar nenhum e de todos os lugares.
Antônio, tremendo feito vara verde, olhou para todos os lados murmurando:
         — É ele, seu Matias, é o maldito!
          — Calma Antônio; ele pode ameaçar, mas não nos fazer mal. Aqui os vivos não podem ser tocados.
          — Quem disse que não? Você ainda é um mero aprendiz, meu “irmão” – disse num tom sarcástico a mesma voz, que agora saía da boca de uma figura jovem que Matias imediatamente reconheceu como sendo seu irmão.
          — Dorin! — disse Matias. – Acabou! Já que escolheu o caminho do inferno, fique aqui e deixe-nos ir em paz. Peço em nome do que tenha restado da suas lembranças da época em que vivemos juntos na casa de nossos pais.
         — Não acabou ainda. Tenho uma última coisa a fazer na terra; nunca deixo uma escolhida sem ter provado as delícias de seu corpo e alma. Com a ajuda do mestre, voltarei lá e terminarei o que comecei há tempos com a querida Arlete, hahahahaha!
         — Deixe minha filha em paz, seu maldito! – disse Antônio saltando à frente de Matias.
          Quase ao mesmo tempo Matias vociferou:
          — Monstro maldito! Não se eu puder evitar! – E retirou de dentro da camisa um objeto preso em seu pescoço por uma corrente. Tratava-se de uma estranha cruz, não como a Crux Decussata, já vista antes por Antônio. Era um cruzeiro, cujas três hastes inferiores eram normais, porém a parte superior formava um arco ovalado.
          O demônio, sentado em sua cadeira, que até o momento havia ficado em silêncio, arregalou os olhos:
          — Um Anakh! Como ousa trazer este símbolo à minha presença?
          — Sim – disse o velho curador –, que este sagrado símbolo da vida que já serviu a tantas legiões do bem, nos sirva neste momento. – E recitou um encantamento em voz baixa, olhos fixos nos dois demônios. Os dois seres infernais juntaram as mãos, conjurando uma maldição.
          — Se eu conseguisse tocá-los com o sagrado Anakh, poderia anular seu poder temporariamente, nos permitindo escapar deste vórtice infernal – murmurou o velho a Antônio.
          Antônio lembrou-se de sua filha, tão meiga, tão pura! Não permitiria que tamanha maldade profanasse sua pequena. Deu um grito com todas as forças que seus pulmões permitiram:
          — Senhor meu Deus, dai-me forças! – E arrancando o objeto das mãos de Matias, com um safanão fez a corrente estourar. Num salto desesperado foi de encontro aos demônios, o Anakh à frente; esmurrou com o objeto a face do primeiro demônio, justamente o que queria molestar sua filha. Uma grande explosão ecoou, abafando os grunhidos dos dois demônios, que se fizeram em pedaços, junto com o heroico rapaz.



 Um espectro de luz surgiu, dando uma das mãos a Matias e, evanescendo, reapareceram onde estava a cabana.
          — Matias — disse o ser iluminado –, eu sou Alexei. A intervenção de Antônio me permitiu adentrar no reino maligno do Senhor do Desespero e resgatar você.
          — E Antônio? – perguntou o velho, já prevendo a resposta.
          — Infelizmente seu amigo não conseguiu escapar com vida, mas seu espírito está em paz; cumpriu sua missão, salvando a própria filha, como era seu desejo.
          — Pelo menos os demônios morreram.
          — Não, meu amigo, infelizmente naquela dimensão não podem ser destruídos totalmente, mas por muitos anos terrestres estarão se recuperando do contato com o Anakh sagrado. Quando as energias do bem e do mal se chocam daquela forma, a liberação de poder gera ondas tão grandes que abalam até as fundações do próprio inferno.
          — Não consigo entender sua presença, nem sua ajuda. Você era praticante de magia negra, como se transformou num anjo?
          — Tive a ajuda de algumas entidades após minha morte, entre eles a interferência de meu pai, o mago Rasputin, que, expiando seus muitos pecados, conseguiu atingir a iluminação espiritual. Ele me indicou o verdadeiro caminho.
          — Como meu irmão pôde tornar-se tão monstruoso?
          — Você ouviu a explicação do Senhor do Desespero: o mal dentro de seu irmão era muito antigo; as práticas de magia negra somente despertaram o que já estava dentro dele. Todos nós temos o bem e o mal dentro de nossa alma; cresce mais aquele que mais alimentamos. Quando seu irmão foi morto de forma violenta, a maldade dentro dele ficou tão incontrolável que se recusou a partir. Ao permanecer neste local, deu continuidade a seus bestiais instintos.
         — Como ele foi morto?
          — Seu pai, Matias; foi ele que assassinou seu irmão.             Quando se sentiu ameaçado, entrou em desespero e voltou à cabana, matando seu irmão. Agora tenho que ir, disse, e apontando para o chão, concluiu:
          — Olhe, ali está o Anakh; deixe-o com Arlete; ele contém uma pequena parte da essência de Antônio, que a protegerá no futuro –dizendo isso, desapareceu.
          O velho juntou o objeto, ainda quente, guardou-o na velha bolsa de couro e seguiu pela picada, sentindo uma grande angústia. A vitória tinha o gosto amargo da derrota.      



FIM
Laucio Evaristo
Enviado por Laucio Evaristo em 01/06/2019
Reeditado em 01/06/2019
Código do texto: T6662572
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