Aceitação
O ar condicionado estava quebrado, e o sol ardente do meio dia não dava a mínima pra isso. A estrada continuava infinitamente e Owen imaginava se não conseguiria pelo menos um bronzeado daquela situação toda. No rádio de seu Datsun 240z a voz de um cantor gospel vibrava de emoção enquanto dizia refrões sobre salvação e vida eterna ao lado do grande ser lá em cima.
Maravilhoso e irônico para um homem que dirigia para assistir à execução de seu próprio pai.
Mas o pensamento do homem ao volante vagava longe, talvez no friozinho confortável de um ar condicionado ou na piscina de sua aconchegante casa tão distante. Não percebia o quão rápido as imponentes montanhas, os aglomeramentos de árvores e os mortos pastos passavam por seu carro, e somente quando uma grande placa verde com um nome muito familiar passou como um raio ele percebeu que o velocímetro de seu 240z já apontava 120 km por hora. Assustou-se por um segundo e olhou no retrovisor por sinais de luzes vermelhas ou algum carro ao longe. Já havia mais de uma hora desde sua última parada em um posto vagabundo para tirar água do joelho. Estava com fome também, mas ao ver o aspecto do atendente decidiu ficar apenas com a gasolina, e mesmo assim ainda um pouco desconfiado. O último carro que vira estava estacionado na beira da estrada, um velho e quase inidentificável Superbird sem rodas e com a lataria toda enferrujada que provavelmente ficaria por lá até os fins dos tempos.
Mas tudo isso não fazia mal, quanto menos se demorasse na estrada melhor, seus olhos já ardiam e suas mãos suavam por todo o volante. Sua camisa tinha grandes marcas escuras abaixo do pescoço, da nuca e das axilas. O sol era impiedoso e castigava qualquer um que ousasse ficar mais de uma hora em seu caminho. Owen Timbers não deveria estar se consumindo em suor dentro daquele forno ambulante com o ar condicionado quebrado, se a vida tivesse seguido seu rumo natural a essa altura ele estaria nadando em um lago qualquer ou tirando um cochilo na velha poltrona na sacada de seu sogro, talvez até mesmo numa refrescante sombra no último suspiro antes de disparar seu rifle e abater um veado para o jantar.
Sim, ele também já havia caçado com seu velho, o grande homem barbudo que beijava molhado demais suas pequenas bochechas, o homem que rira de seu primeiro tombo de bicicleta, o homem que encontrara suas playboys escondidas entre os quadrinhos debaixo da cama. Owen combatia as memórias com pensamentos levianos, não poderia e nem queria compreender a forma na qual tudo terminara. Um bronzeado, uma música gospel, algumas contas atrasadas, o vestido de formatura de Kelly.
Sua mente não compreende, ou não deseja compreender, e foge do luto como um gato foge d’água.
O motivo por trás da mente de seu pai ele podia compreender. Quase completamente. Evan Timbers sempre teve uma inevitável queda pela honestidade e o altruísmo. Pregava em ocasionais sermões para seu filho sobre o quão importante era a verdade e a vontade de ajudar aqueles que precisam, e na maior parte do tempo mantinha-se fiel ao seu discurso, sendo muitas vezes tomado como um homem rude e inconveniente, mas ao mesmo tempo admirado como alguém extremamente prestativo por aqueles que o conheciam. Foi um chef muito apreciado por aproximadamente 40 anos de sua vida, dos quais 30 acompanhado de Fanny Delange, posteriormente conhecida como Fanny Timbers, ou mamãe, para Owen.
A vida transcorreu tranquilamente. Traquinagens do pequeno Owen, alguns pequenos exageros na bebida por parte de Evan e orações de Fanny por trás disso tudo. Uma pequena inclinação para ciências exatas, criações de novas receitas, churrascos no grande quintal para toda família. Ensino médio, bodas de seda, beijos ainda apaixonados. Faculdade para Owen e talk shows acompanhados de toda sorte de chás para o casal Timbers. A vida transcorria.
E então de um momento para o outro a vida começou a escorrer.
Câncer.
Tumor cerebral.
A destruição de dentro pra fora. A fórmula do desmoronamento.
Fanny não estava bem, e de acordo com os médicos isso iria mudar. Owen passou a visitar os pais todos os finais de semana, Evan largou o emprego para apoiar seu amor em tempo integral. Fanny melhoraria, diziam os meros homens em divinos jalecos brancos. Novos tratamentos, nova pílulas, novas esperanças. Owen e Evan se abraçando em silêncio na cozinha, compartilhando uma estranha certeza enterrada no fundo de seus corações aparentemente calmos.
***
- Ah, vamos lá, Owen! Você consegue algo melhor que isso.
- Mas, pai, eu não sou como você. Por que as cenouras devem ser partidas dessa maneira?
- Filho, um prato precisa ser tão gostoso aos olhos quanto à boca. Nós temos que fazer algo especial para sua mãe, algo digno dessa data tão especial.
- Mas, pai...
- Shh, chega de reclamações. Nós temos uma agenda para cumprir e não posso fazer isso tudo sozinho. Posso contar com você?
Owen baixou os olhos para o serviço mal feito que fazia e suspirou.
- Tudo bem.
Fanny havia saído com suas amigas para o bingo de quarta feira, e pai e filho haviam agido como se houvessem esquecido seu aniversário. Evan havia criado algo especial para a ocasião, e de acordo com ele seria a refeição mais gostosa do mundo. E Owen acreditava piamente nessas palavras. Com seus oito anos as palavras de seu pai eram sagradas, e até onde se lembrava não havia se arrependido de ter acreditado.
Por volta das 18h Fanny retornou, encontrando a casa completamente escura e silenciosa.
- Rapazes? – perguntou hesitante.
Deu alguns passos e acendeu as luzes da sala de estar. Ouviu um pequeno ruído na cozinha e um pequeno sorriso brotou dos cantos de seus lábios. Aquela risadinha era inconfundível, seus garotos estavam aprontando alguma.
- Oh, meu deus! Como eles puderam esquecer? – disse Fanny com um toque excessivamente dramático na voz.
Outro ruído na cozinha. Ela colocou a bolsa pesadamente sobre a mesa no meio da sala.
- Aqueles dois... só me resta uma opção. Pedir uma pizza e comer sozinha no meu próprio aniversário.
Barulho de passos apressados.
- Mamãe, não!
Owen estava parado no batente da porta com uma expressão aterrorizada.
- Nós não esquecemos, era só uma surpresa...
Fanny riu alto e Owen se encolheu, meio confuso, meio encabulado.
- Eu sei, meu querido, venha aqui dar um abraço em sua mãe.
O menino sorriu como toda criança deve sorrir e correu para algo que não podia esperar mais. Abraçou apertado enquanto seus ombros se sacudiam levemente sem poder conter o choro. Ele nunca esqueceria o aniversário de sua mãe, e a ideia de que ela não soubesse disso o assustou. Fanny deu um sorriso cúmplice para Evan, agora parado olhando tudo com os braços cruzados.
- Papai preparou algo especial para você – Owen disse se afastando do pescoço molhado de sua mãe.
- Não, meu rapaz. Nós preparamos.
***
18 anos depois Owen sorria em seu carro lembrando-se da ocasião. Todo aquele amor, toda aquela perfeição. Ele não sabia o suficiente, mas Deus era um sacana incompreensível. Homens corruptos explorando necessitados, assassinos caminhando livres pelo mundo, pedófilos ativos e observadores em todas as praças, presídios lotados de homens cheios de saúde e o tal onipotente negligenciaria uma mulher inocente como Fanny? Uma mãe, uma esposa, um ser sem igual. Permitiria uma massa negra e dolorosa como o inferno crescer em seu interior e se espalhar por todo o resto? Permitiria a loucura se embrenhar como erva daninha num bom homem como Evan?
De fato, era incompreensível. O cantor gospel era o real louco. O padre compartilhando o pão estava com os parafusos soltos. Deus estava bem. Deus não possuía câncer. Deus não passava fome. Deus não chorava. Deus não via seus amores desaparecerem como uma chuva de verão.
Deus não existia.
A estrada estava deserta, e a única distração por vários minutos havia sido um cachorro morto rodeado de urubus na beira da estrada. Sim, eventualmente Owen alcançaria seu destino, mas intimamente era algo que desejava tanto quanto esquecer o aniversário de sua falecida mãe.
A voz saída do rádio tornou-se irritante demais para os ouvidos de Owen. Era como ouvir um audiobook com as piores piadas do mundo. Esticou a mão para trocar de estação e felizmente encontrou coisas muito melhores. Numa delas Axl Rose cantava November Rain em seu auge e Slash fazia milagres com as seis cordas de sua guitarra. Ainda assim continuou procurando e na próxima havia música clássica, coincidentemente uma de suas preferidas. Pavane, por Gabriel Fauré. Owen sorriu pela primeira vez desde que havia começado essa maldita viagem. A vida não poderia ser tão ruim assim, poderia? Não com tanta beleza por aí.
Tiopentato de sódio. Brometo de pancurônio. Cloreto de potássio. Indução à inconsciência. Paralisação dos músculos. Parada cardíaca.
E nada depois. A voz de seu pai desapareceria para sempre, seus profundos olhos negros seriam devorados por vermes. Suas mãos hábeis para sempre entrelaçadas em um peito estático.
O sorriso desapareceu. Owen havia feito pesquisas. Sabia como seria o procedimento. Seria silencioso, mas todos aqueles anos de memórias e amor gritariam como loucos em sua mente por muitos anos, ecoando lentamente, escorrendo em formas de lágrimas nos momentos solitários. Como as coisas terminaram assim? Como seu pai havia se tornado um assassino de crianças? Como um homem tão bom encontraria seu fim num ritual obsceno ministrado por loucos e assistido por pessoas de coração partido?
Owen demorou a compreender o que era aquele objeto vermelho colocado sobre o acostamento. Alguns metros depois constatou ser um triângulo, objeto usado para sinalizar algum tipo de acidente. Diminuiu a velocidade e observou o carro verde musgo parado com três pessoas ao seu redor. Dois adultos conversavam de maneira aparentemente acalorada e uma adolescente com roupas curtas encostava-se na parte lateral bebericando de uma garrafa d’água. Mais a frente o capô estava aberto e uma grande quantidade de fumaça era cuspida de lá. Nada bom.
Owen precisava levar sua mente para outro lugar. Deu seta e encostou logo à frente. Puxou o freio de mão, desligou o rádio e saiu do Datsun. Os três já olhavam enquanto Owen caminhava em direção a eles.
- Tarde difícil? – ele perguntou.
- Oh, jovem. Você não imagina o quanto.
O homem parecia ser simpático. Possuía cabelos brancos molhados de suor e um óculos com lentes muito grossas. Usava jeans e uma camisa social branca. Sua voz era suave e tão calma quanto a situação permitia.
- Se o senhor quiser posso dar uma olhada. Sou engenheiro e sei uma coisa ou outra sobre máquinas.
- Isso seria ótimo, se não for muito incômodo.
- Incômodo nenhum.
O homem estendeu a mão:
- Allan Rymer.
Owen retribuiu o gesto.
- Owen Timbers.
Allan olhou para trás:
- Aquelas são minha esposa Odessa e minha filha Ericka.
Owen deu um aceno tímido para as duas. Recebeu no máximo um movimento de cabeça da adolescente lá atrás. A esposa não se dignou nem a olhar enquanto voltava bruscamente para o carro.
- Desculpe por isso. Estávamos discutindo pouco antes de você chegar. E você sabe... mulheres.
Owen sorriu.
- Não se preocupe. Também sou casado – Owen olhou para o capô - Vamos dar uma olhada no problema?
- Por favor.
Pela quantidade de fumaça Owen já possuía uma ideia do que poderia ser. Muito provavelmente um radiador estragado. Já havia visto isso antes, e ao olhar para o dispositivo não teve mais dúvidas. Já havia visto isso acontecer antes com um de seus projetos na faculdade.
- Bem, as notícias não são muito boas, senhor Rymer. Seu radiador pifou.
- Oh, droga. Era só o que faltava!
O homem levou a mão na parte de trás da cabeça parecendo refletir rapidamente.
- Existe algo a ser feito? Pode ser consertado aqui mesmo?
- Receio que não. E se continuar a rodar com ele assim com toda certeza fundirá o motor.
Allan chutou o pneu da frente.
- Lata velha!
- Eu disse, mas você nunca escuta! – veio uma voz de dentro do carro – Você deveria ter vendido essa porcaria há muito tempo! Velho teimoso!
Allan abaixou a cabeça e massageou os olhos enquanto respirava fundo.
Era uma situação constrangedora, e Owen por pouco não riu do tom exasperado da mulher dentro do carro. Aquele era o momento de fazer algo por aquele pessoal.
- Se vocês quiserem posso levá-los até San Rafael. Está a poucos quilômetros daqui e meu carro está vazio. Lá vocês poderiam conseguir ajuda.
Allan olhou diretamente em seus olhos.
- Eu não sei. Não gostaria nem um pouco de arrastá-lo para uma viagem de uma hora ouvindo as reclamações de Odessa.
Pela primeira vez a adolescente falou:
- Com esse sol eu não fico aqui de jeito nenhum!
Sua voz era arrogante e autoritária como a da mãe.
Pobre Allan.
Ele olhou rapidamente da filha para a esposa e depois para Owen.
- Tudo bem, amigo, aceitaremos sua carona.
Owen sorriu e acenou com a cabeça.
- E por favor, me chame de Allan.
***
Owen sabia que aquilo não poderia ser nada bom. Uma ligação de seu pai no meio da semana perguntando se ele podia ir para casa? No momento em que ouviu a voz rouca do outro lado da linha imaginou o pior: alguém havia morrido. Talvez o tio Nelson ou um de seus filhos Kurt e Max. Talvez até mesmo sua mãe. Largou seus livros, seus projetos, seus namoricos, tudo de uma vez e rapidamente estava em um ônibus de Corvallis até Portland, com toda a certeza a pior viagem de sua vida. Seu pai havia sido sucinto demais, havia se negado a dizer a natureza real do problema, havia limitado-se a dizer que “havia algo errado e precisavam dele em casa”.
Quando desembarcou foi a pé da rodoviária até em casa, estava quebrado e seu pai não possuía licença para dirigir. Quando virou a esquina e viu o que havia sido seu lar por vinte anos seu estômago se remexeu e quase imediatamente uma queimação surgiu em seu interior. Obviamente não havia nenhuma razão real para isso, mas de um momento para o outro a casa pareceu estranhamente escura, estranhamente triste envolta do suave sibilar dos ventos e dos sussurros das árvores ao redor. Ele havia voltado da escola infinita vezes em sua bicicleta naquela mesma rua, havia quase sido atropelado enquanto jogava bola com os amigos, havia visto a casa milhares de vezes, mas ela nunca lhe parecera estranha como parecia agora. O silêncio, a ausência de qualquer pessoa por perto. “É tudo bobeira da sua mente, tudo uma besteira psicológica, Owen. Pare com isso. Pare com isso agora”, ele pensava sem parar, mas sua voz soava pouco convincente. Havia alguém morto naquele lugar. Ele tinha certeza.
Subiu as escadas do velho alpendre e vislumbrou rapidamente duas cadeiras viradas para a rua. Era ali onde passavam a maior parte do dia, rindo do passado e bebericando chá. Oh, Deus, essa era havia passado?
Enfiou a chave na fechadura depois de dois meses seguidos em Corvallis e deixou a porta se arrastar lentamente. Não houve rangido algum, na sala o tapete verde era iluminado fracamente por uma lamparina na extremidade do cômodo e as cortinas se balançavam de acordo com as ordens do vento.
- Pai? – Owen perguntou hesitante.
Imediatamente ouviu um barulho vindo do segundo andar. Enquanto ele se virou para trancar a porta ouviu os passos na escada e viu seu pai surgir de cabelos molhados e usando um roupão. Sorriu um sorriso cansado, mas ainda assim bonito.
- Olá, filho – disse Evan estendendo os braços.
- Pai.
Depois de Owen largar as malas no chão os dois homens se abraçaram e ficaram assim por alguns segundos. Filho sentindo nostalgia enquanto a barba grossa o espetava na nuca e pai segurando lágrimas enquanto ainda podia.
A noite seria longa.
- Onde está mamãe? – perguntou Owen se afastando.
- Está lá em cima, dormindo.
- Ela não sabia que eu viria hoje? Ela sempre me espera acordada.
- Não hoje, Owen. Não hoje. – disse Evan olhando para o chão.
- Pai – Owen começou – o que está acontecendo?
- Contarei tudo, espere apenas eu me trocar...
- Não! Chega de esperar! Não agüento mais isso. Nós vamos nos sentar agora naquelas poltronas logo ali e você vai me explicar o motivo pelo qual me chamou aqui.
Evan suspirou.
- Tudo bem, você está certo. Eu não podia lhe explicar por telefone, sua mãe não queria que você soubesse. Ainda.
Os dois homens caminharam e se sentaram frente a frente. Ambos temerosos, ambos nervosos.
- Vou explicar-lhe do início e sem rodeios. Duas semanas atrás fui até o mercadinho para comprar alguns ingredientes para o jantar. Não demorei mais do que meia hora e quando saí sua mãe calmamente lia um livro exatamente onde você está sentado agora. Não me lembro o título. “O que teremos para o jantar hoje, querido?” ela me perguntou sem levantar os olhos de seu romance. “Algo especial, meu amor.” Sua mãe sorriu e finalmente levantou os olhos do livro: “E não é em todos os dias algo especial?” Foi minha vez de sorrir. “Sim, Fanny, todo dia algo especial.”
“E então saí, comprei tudo o que precisava: peito de frango, molho de soja, caldo de galinha... bem, isso não vem ao caso. Mas me lembro, eu estava feliz. Tudo corria bem, sua mãe ainda era tudo para mim, você estava bem na faculdade, progredindo e usando todo o talento que Deus lhe deu. Esse era o perfeito humor para se cozinhar, a refeição ficaria divina.”
Evan sorria enquanto falava. Seus cabelos castanhos penteados para trás começavam a secar e uns fios teimosos cismavam em cair em sua testa enfeitada com algumas rugas colocadas lá pelo tempo.
- Mas esta foi uma refeição que nunca ficou pronta. Quando retornei sua mãe não estava mais sentada lendo. O livro havia sido colocado no criado e quando continuei a caminhar encontrei-a caída na escada, a meio caminho da sala para o banheiro. Havia um pequeno sangramento em seu nariz, e quando ela voltou a si não tinha a menor ideia de onde estava. “Evan, querido, por que estamos deitados na escada?” Eu não pude responder. Eu não sabia.
“Mas no dia seguinte fomos ao médico e depois de alguns exames ele possuía a resposta para a pergunta de Fanny. ‘Sra. Timbers, há uma pequena massa negra em seu cérebro, um tumor’. Eu ouvi pouca coisa a partir daí, minha audição captava apenas ruídos ocasionais enquanto aquela maldita palavra circulava como um verme maligno em minha mente. Tumor. Tumor.”
Evan parecia ter entrado na história e não percebia a expressão do filho, pois olhava diretamente para o chão. Leva-se um tempo para apreender uma notícia desse tipo, pelo menos tudo o que ela representa. Mas Owen com certeza pulou vários estágios de reflexão enquanto ouvia seu pai murmurar tristemente.
- Quanto tempo? – Owen perguntou com a voz embargada.
Evan finalmente olhou para cima.
- Seis meses. Um ano no máximo.
O silêncio estendeu sua mortalha sobre os dois homens abatidos na sala mal iluminada. Owen se levantou lentamente utilizando os encostos da poltrona. Sua mente estava em um estado estranho, cinza ou chuvosa, ele poderia descrever.
- Owen.
- Não se preocupe, pai. Eu estou bem. Apenas preciso de um tempo sozinho para pensar.
- Tudo bem, filho. Seu quarto continua lá para você.
Quando Owen passou seu pai novamente o embalou em um abraço, mas dessa vez não foi correspondido. Não havia problema. Ele compreendia. Ele havia ficado da mesma maneira no dia da consulta com o maldito médico, continuava basicamente do mesmo jeito, mas faria de tudo para não demonstrar desânimo diante de seu filho, e principalmente de sua esposa. Eles precisavam de ajuda, e ele faria seu melhor para tornar o pior em suportável. E ele conseguiria, precisava conseguir.
Evan abriu os braços, permitindo Owen partir. Seus passos ao subir as escadas foram lentos, a porta se fechando em seu quarto foi silenciosa. Depois pai seguiu o filho e quando se deitou olhou para sua esposa deitada encolhida e sua expressão tão calma enquanto respirava vagarosamente. Era hora das orações, era hora de confiar em alguém, era hora de finalmente deixar as lágrimas rolarem.
***
Estava calor demais. A viagem estava demorando demais. O banco era desconfortável. O som estava alto demais. Estava ventando demais.
Allan não havia mentido. 40 minutos de reclamações. 40 minutos de uma voz extremamente aguda penetrando nos ouvidos como agulhas. 40 minutos no maldito inferno. A paciência de Owen estava por um fio, e este fio era a visão de Allan a seu lado, com os dedos forçando os olhos, uma extremidade da boca tremendo levemente. Pobre homem.
- Realmente, Owen, desculpe-me por isso.
- De verdade, Allan, não tem problema. Falta no máximo meia hora para chegarmos a San Rafael.
- O que vocês estão murmurando aí na frente? – veio a voz de Odessa lá de trás.
- Oh, mãe, pelo amor de Deus! Não pode parar de reclamar por um minuto? – Ericka interveio.
- Quem é a mãe e quem é a filha aqui? Eu não agüento mais essa viagem idiota. E é tudo culpa do seu pai! Não faz sentido nenhum estarmos aqui.
Ericka se calou. Allan parecia observar algo muito interessante pela janela do passageiro. Odessa estalou a língua, cruzou os braços sobre seu longo vestido rosa e se virou para encarar a estrada.
- Pode pelo menos abaixar um pouco esse som? – disse como quem não quer nada.
Allan finalmente se mexeu e virou-se para trás num ímpeto impressionante.
- Escute aqui...
Owen colocou a mão em seu ombro.
- Não se preocupe, Allan, não é nada demais. Estamos quase lá.
Allan continuou olhando para trás, respirando sonoramente. Odessa continuava olhando para fora, como se nada daquilo tivesse a ver com ela. A música soava baixinha e o som do motor trabalhando arduamente preenchia todo o carro, trazendo algo parecido com a tensão quase imperceptível que se sente antes de uma tempestade. Owen esperava apenas o primeiro trovão ecoar. Se em quarenta minutos ele já pensava em enfiar sua meia na boca da mulher imagine então Allan com seus sabe-se lá quantos anos de casado.
No fim ele voltou a sua posição inicial, olhando para a frente e respirando pesadamente. Owen podia ver gotículas de suor espalhadas por toda sua testa e podia apostar o dinheiro guardado para a faculdade de Kelly que o coração do homem batia tão acelerado quanto o de um maratonista. Ele mesmo já estivera naquela situação. Que homem casado nunca esteve? Mas somente em suas piores crises durante a TPM sua esposa, Melisa, chegava ao nível de Odessa no quesito reclamações.
Pela intervenção divina o silêncio reinou no Datsun vermelho e Owen finalmente teve um pouco de paz e de paciência restaurada. O vento penetrando por entre as janelas era o único som audível no veículo, pois para o bem de todos, ele havia desligado o rádio. Claro, Owen sabia que eventualmente haveria uma nova reclamação, por isso de minuto a minuto olhava o retrovisor, para vislumbrar a postura de Odessa e se preparar para a nova leva de infelicidade derramada de sua boca. “Ora, agora você está sendo maldoso, Owen. Tenha um pouco mais de compreensão com a pobre senhora” ele pensou enquanto encarava o pequeno vidro quadrado.
Voltou os olhos para a estrada, a boa e velha linha escura que parecia nunca terminar. O céu estava completamente limpo, nenhum sinal de branco em sua imensidão. O asfalto quente refratava o ar, trazendo uma pequena distorção logo acima de sua negritude. “Podemos fritar alguns ovos no capô, talvez até fazermos um piquenique à beira da estrada para acalmar os nervos de Odessa” Owen pensou com um sorrisinho nos lábios. Isso sim seria hilário.
Ao olhar novamente para o retrovisor viu algo mais que os cachos castanhos e rugas de Odessa com o rosto virado para a paisagem lá fora. Ericka havia tirado os óculos escuros e tinha os olhos azuis fixos nos de Owen. Como era profundo e intenso aquele olhar. Ela deveria deixar os jovenzinhos de sua idade loucos para explorar os cantos mais escuros de suas curvas. Owen se sentia mal por isso, mas ela estava com roupas curtas demais para que ele não reparasse em suas belas pernas e seios. Calculava a idade da menina pouco acima dos 17, e, amigo, ele realmente se sentia mal por algumas coisas que tinha imaginado. Tinha uma filha quase da mesma idade. Não podia ter certeza, mas ela parecia sorrir para ele um sorriso cheio de significados. Owen começou a suar um pouco mais.
- Diga-me, Allan, para onde seguirão viagem depois de San Rafael?
- Oh, bem, para nenhum lugar. Estávamos justamente indo para lá visitar um velho amigo.
Sua voz soou estranha, despreocupada e firme ao mesmo tempo.
- Entendo – respondeu Owen, preferindo não forçar a barra.
- E você? O que o trás a essa estrada quente como a boca do demônio?
- Bem, tenho alguns projetos pendentes em Larkspur e preciso o mais rápido possível...
- Pai, preciso ir ao banheiro.
Allan virou-se para olhar Ericka.
- Falta pouco, querida. Não dá pra segurar?
- Não, já estou segurando por tempo demais. Acabamos de passar por uma placa dizendo que há um restaurante logo à frente. Prometo não demorar.
Allan olhou para Owen. Este deu de ombros:
- Por mim tudo bem.
Ericka sorriu lá trás:
- Obrigada!
***
Owen estava sentado numa cadeira de estofado verde claro, escutando bipe interminável do aparelho ao lado da cama de sua mãe, observando o lento vai e vem de seu peito magro e pálido. Ela não abria os olhos fazia tempo demais, e Owen pensava com horror que talvez nunca mais dissesse palavra. Poucos minutos atrás seu pai desmoronara de forma assustadora, vertendo grandes lágrimas e contorcendo todos os músculos de seu rosto em uma expressão horrenda, refletindo toda a tristeza dos últimos meses. Ele não dissera nada, simplesmente se levantara e deixara o quarto, um homem morrendo aos poucos, não com um tumor no cérebro, mas com a noção de que um buraco era aberto em sua alma, um buraco que nunca mais seria preenchido.
Owen continuava lá, sem saber a razão de sua aparente calma. Fanny, mamãe, estava ali, moribunda, esperando o abraço aconchegante da morte, e ainda assim não vertera lágrima alguma. Com uma dor terrível ele cedia a seus próprios pensamentos, já era hora, não havia motivos para se continuar com aquilo. Tanta dor, tantas lágrimas, tantas esperanças falsas destroçadas dia após dia. Aquilo era demais, e o rosto de seu pai refletira tudo aquilo.
Passara os últimos dias em Portland sem se importar muito com a faculdade, aquilo era pequeno agora, além do mais ele facilmente recuperaria o conteúdo perdido. Metade do seu dia era em casa, deixando as coisas em ordem e se ocupando de outros afazeres menores. A outra metade do dia era no hospital, observando sua mãe lentamente desvanecer, diminuir, desacelerar. A morfina fazia o possível, mas parecia não ajudar tanto quanto o esperado. Uma massa faminta a devorava impetuosamente por dentro, sem se importar com um homem perdendo sua sanidade e outro compreendendo lentamente o horror de morte tão dolorosa.
De repente Fanny abriu os olhos e olhou para seu filho sentado desconfortavelmente a seu lado. Owen se assustou, ela parecia sóbria, coisa que não estivera por pelo menos duas semanas.
- Owen, querido?
- Oh, Deus... Mamãe. Vou procurar meu pai.
Owen tencionou a levantar-se.
- Filho, espere. Não há tempo, eu sei disso agora. Evan entenderá. Por favor, me dê sua mão.
Owen assim o fez.
- Meu filho querido – sua mãe iniciou olhando para o teto branco como se visse algo mais – enquanto estive dormindo sonhei com tantas coisas. Tantos detalhes. Você se lembra daquela camisa xadrez que lhe dei de aniversário e você a usou por um mês seguido antes de não suportar seu próprio cheiro com ela?
Fanny deu um riso fraco.
- Lembra-se do dia que roncou durante o sermão do padre... qual era o nome dele mesmo?
- Padre Feingold.
Sua mãe sorriu novamente.
- Isso, isso. Padre Feingold.
Ela se remexeu na cama.
- Owen, eu sei o quanto as coisas ficarão difíceis para seu pai. Eu sei que você passará por cima disso, seguirá com a vida maravilhosa que o espera lá na frente. Você é jovem. Mas tenho muito medo por Evan. Ele é um homem forte, um homem de fé, mas não consegue deixar nada passar. Ele ama demais, e o peso em seu peito será eterno, pesado como é neste exato momento. Eu preciso que você cuide dele, Owen, meu querido. Não o deixe fazer nenhuma besteira. Fique de olho nele, ele é um homem bom demais para esse mundo, e você sabe como os bons homens terminam.
Sua mãe fez uma careta.
- Por favor, Owen. Por favor.
Sua mãe fechou os olhos por alguns minutos. Owen olhou de perto e vendo o movimento lento de seu peito resolveu perguntar algo que girava em sua mente durante todo esse tempo.
- Mãe, a senhora tem medo da morte?
Cinco minutos se passaram e Fanny parecia não ter condições para responder mais nada. Ele esticou o braço até o aparelho para chamar as enfermeiras e apertou o botão.
- Sim, Owen. Estou morrendo de medo. Mas por favor, nunca diga isso ao seu pai. Diga que parti sorrindo, com a memória de nosso primeiro toque, nosso primeiro beijo. Diga que parti lembrando do primeiro sorriso de nosso precioso Owen. Entenda, meu filho, nada disso é mentira, mas a cada segundo tudo fica mais frio e minha fé vacila diante do medo da escuridão eterna.
Fanny fechou os olhos ao mesmo tempo em que a enfermeira irrompia na porta, seguida de seu pai. Owen soube então, aqueles olhos não se abririam nunca mais.
Owen e Evan se sentaram-se à mesa de jantar horas mais tarde, com duas refeições congeladas recém saídas do microondas intocadas sobre a toalha vermelha quadriculada. Seu pai tinha os olhos vermelhos e as lágrimas continuavam caindo, molhando sua camisa bege.
- Pai, mamãe disse algumas coisas antes de partir e quero que saiba quais foram.
Evan não se mexeu, continuava encarando a lasanha fumegante à sua frente.
Owen repetiu tudo, palavra por palavra, omitindo apenas a parte do medo da morte, assim como sua mãe havia pedido. O fluxo de lágrimas aumentou vigorosamente, e agora o peito de Evan se remexia enquanto gemidos deixavam sua garganta vindos direto de seu coração estraçalhado. Owen se levantou e caminhou até ele.
- Papai.
Evan colocou uma mão em seu peito. Em meio a tantos soluços conseguiu apenas dizer.
- Obrigado, Owen, mas, por favor. Deixe-me sozinho. Pelo menos por hoje. Seus olhos... é como se ela estivesse olhando para mim nesse exato momento, e isso é muito mais do que posso suportar por agora. Por favor, por favor.
Owen aquiesceu e se virou para subir a escada. Aquela visão, seu pai, um gigante derrotado, inclinado sobre a mesa, chorando como se não houvesse nada mais na vida. Aquela imagem nunca deixaria a mente do jovem Owen, assim como as palavras de sua mãe no leito de morte.
Ele se deitou em sua velha cama e não fechou os olhos por um minuto. A partir desse dia desenvolveria um caso sério de insônia que o acompanharia pelo resto de sua vida.
***
Owen fechou a porta de metal do banheiro com o coração martelando furiosamente dentro de seu peito suado. Virou-se, encostou-se e deixou-se cair no chão branco encardido do lugar. Enquanto a adrenalina abandonava sua corrente sanguínea começou a perceber o cheiro e o aspecto deploráveis que o cercavam. Passou as mãos na testa e elas vieram molhadas demais, fechou seus olhos anteriormente arregalados e pôs-se a recordar o que acontecera instantes atrás.
Ericka havia estado ali, e suas mãos...
As cabines.
As malditas cabines.
Poderia haver alguém lá. Alguém poderia ter visto.
Owen se levantou com o coração novamente acelerado. Caminhou até as cabines e com um empurrão abriu cada uma delas, apenas para verificar que nada havia lá além de baratas e manchas repugnantes de eras atrás. Aquilo não estava certo. Aquilo não deveria ter acontecido.
Com a mão no peito caminhou até o espelho rachado e abriu uma das torneiras. Inicialmente a água saiu amarelada e com um cheiro estranho, mas depois se tornou novamente incolor e indolor, como deveria ser. Molhou as mãos, os cabelos, as mãos e a nuca e ficou a encarar sua cara pálida e assustada refletida. Suas feições demonstravam tudo aquilo que era: culpado. Ele deveria ter parado aquilo. Não passava de um filho da puta aproveitador.
Ele e os Rymer haviam descido do carro no estacionamento de um restaurante vagabundo de beira de estrada. Owen nem se preocupara em olhar o nome do lugar. Ele se dirigira ao banheiro masculino, Ericka banheiro feminino e seus pais para o restaurante.
Pensava em seu pai enquanto seus sapatos faziam novas marcas no chão de terra e o calor expandia tudo ao seu redor. Ideias indesejadas sobre a morte pairavam em sua mente entorpecida enquanto a porta com uma pequena plaquinha se aproximava cada vez mais. Chegou até ela, torceu a maçaneta e já pensava em como era bom estar fora do sol quando algo impediu que a fechasse. Owen não compreendeu de imediato o que acontecia, talvez um defeito na porta ou algo do gênero, e então viu o pequeno tênis All Star com listras rosas impedindo a porta de tocar no batente. Owen então largou a maçaneta e já abria a boca para perguntar quem era quando esse alguém forçou a porta pra dentro com força, fazendo-o saltar para trás para não ser atingido. Mesmo com a visão ofuscada momentaneamente pelo sol Owen compreendeu de quem se tratava.
Ericka, com seus longos cabelos negros, profundos olhos azuis, um decote perfeito e curtíssimos shorts jeans, carregando dentro de si grandes pernas brancas e cheias de curvas.
Owen ficou completamente atordoado. O que seria isso, o que ela poderia querer? Mas isso foi por apenas um instante. O sorriso malicioso da garota já dizia tudo. Ela rapidamente encostou-se à porta e girou o trinco. Andou agilmente na direção de Owen, agarrou se pênis de maneira agressiva e o obrigou a girar, deixando-o na posição em que ela estava anteriormente. Ela então se aproximou e disse ao seu ouvido:
- Eu vi você me olhando lá no carro.
Ela lambeu seu pescoço e fez mais pressão em seu membro.
- Do que... do que está falando? Está louca?
- Não minta pra mim. Eu sei o que você quer.
A voz e o hálito quente da garota tornaram-se irresistivelmente eróticos e Owen não pôde esconder sua excitação.
Ericka riu alto e rapidamente.
- Viu? Seu corpo não mente.
Aquilo era loucura. Parecia algum tipo de fantasia completamente surreal imaginada por um adolescente cheio de hormônios. Não havia dúvidas, a garota era linda, provocante e exalava sexo de todos seus poros, mas seus pais estavam lá fora, a menos de vinte metros, comendo hambúrgueres ou algo de gênero. Allan havia sido muito gentil, apesar da mulher horrível que possuía. Ele não deveria estar fazendo aquilo, muito menos deveria estar excitado ao toque da garota. Owen possuía uma filha praticamente da mesma idade.
Ele tentou empurrá-la.
- Pare, Ericka. Isto não é certo. Seu pai...
Ela abriu o zíper.
- Shhh. Apenas relaxe.
A bem da verdade havia anos que Owen não ficava com tanto tesão. A pele da garota era sedosa, sua mão habilidosa, e quando ela enfiou a língua em sua boca ele não pode mais resistir. Os movimentos eram ritmados, lentos, prazerosos. Ela parecia saber exatamente o que deixava o pobre homem excitado. Apertava onde era preciso apertar, mordia onde era preciso morder. Sem perceber Owen pousou uma mão em sua nuca e agarrou sua nádega com força, trazendo-a para perto de si. A partir daí a dança foi curta, e quando Owen se contorceu no clímax todo o contato se desfez.
Ericka deu um sorriso travesso, abriu a porta empurrando Owen e partiu sem dizer palavra.
Após um segundo Owen percebeu com clareza o que tinha acontecido. Desespero circundou sua mente como um exército obstinado. Ele era louco. Louco como o pai.
Fechou a torneira e puxou alguns lenços de papel, tentando recompor-se da melhor maneira possível. Provavelmente já o esperavam lá fora.
Caminhou de volta para a porta onde tudo acontecera, o resultado daquele ato proibido ainda estava no chão, uma grande quantidade de um líquido viscoso e esbranquiçado espalhado por um chão que um dia fora claro. Ver aquilo fez o estômago de Owen se revirar.
Já colocava a mão na maçaneta quando viu algo estranho e dourado no chão. Agachou-se, apanhou o pequeno colar e o examinou com a mente momentaneamente esquecida do episódio de minutos atrás. Se bem recordava ele tinha estado no pescoço de Ericka, caindo sensualmente entre seus seios perfeitos. Pendurado no cordão havia um pequeno botão que se abria e revelava a foto de um garoto sardento usando um boné de beisebol que sorria como apenas as crianças sabiam sorrir: sem saber o que era de fato viver. Colocou então o objeto no bolso e partiu de volta para o sol e para o que mais houvesse lá fora.
***
Logo após a morte de Fanny, Evan desenvolveu um hábito peculiar, pelo menos para ele, um homem que nunca aguara uma planta na vida. Ia até a biblioteca pública todos os dias e gastava horas sentado naquelas cadeiras duras e desconfortáveis. Aprendeu a maior parte do que se havia para aprender sobre jardinagem em pouco menos de um mês e não demorou a iniciar seu próprio canto colorido no quintal onde o filho tantas vezes brincara com o pai. Owen ouvia tudo indiretamente por telefone através de seu tio Steve que visitava o pai todo dia. De acordo com ele não havia nenhuma mudança significativa no comportamento de Evan além desse novo hábito. Ele continuava a trabalhar no restaurante e sentava-se todo dia na poltrona à varanda, contemplando o eterno e imutável céu cheio de estrelas. Ele agora preparava o próprio chá e não movera a antiga cadeira de Fanny do lugar. Além disso, contratara uma empregada doméstica três vezes por semana, mas não permitia que ela entrasse em seu quarto. As roupas, joias, estojo de maquiagem, chinelos... tudo de Fanny ainda continuava lá, talvez como uma forma de recusa ou protesto ao veredicto do Todo Poderoso.
Ainda de acordo com seu tio parecia haver até algumas melhoras, além de jardinagem Evan pesquisava novas receitas, caminhava algumas vezes por semana para conversar com os vizinhos. Dizia até mesmo estar interessado em arrumar um novo emprego, adquirir alguma experiência, aproveitar o resto de vida que ainda havia em si. Mas ocasionalmente reclamava da ausência de Owen, e isso partia o coração do rapaz. Ele se sentia fraco, impotente, sem palavras para confortar e confuso quanto a como se comportar diante da tragédia. Ele fugia. Descaradamente fugia e se sentia muito mal por isso. Várias vezes procurou conforto no álcool e em companhias efêmeras que desapareciam à primeira luz do dia. Acordava encarando o teto, sentindo um cheiro completamente estranho em seu travesseiro, um cheio que absurdamente parecera agradável algum momento no passado. Era tudo muito confuso. Owen não se lembraria muito bem desse período, seria sempre uma linha borrada na trama de sua existência.
Mas houve, sim, um dia. Um dia no qual entrara no ônibus depois de uma bebedeira tão pesada que ainda continuava bêbado depois de ter dormido seis horas. Passou a viagem toda pensando no que faria se precisasse vomitar, não havia qualquer recipiente por perto. A mochila talvez? Felizmente conseguiu manter dentro do estômago qualquer conteúdo repugnante que lá estivesse, mas não conseguiu pregar os olhos nem por um segundo. Sentiu algo estranho ao ver as longas montanhas de sua cidade ao longe, e o que elas guardavam. Eram como uma muralha, mas ela impedia a tristeza de sair ou de entrar?
Owen entrou sorrateiramente e foi encontrar seu velho no jardim, agachado cuidadosamente entre suas plantas e assoviando uma antiga música que adorava, chamada Scarborough Fair. Ouvir aquilo trouxe uma nostalgia nada bem vinda, lágrimas ameaçaram surgir e Owen precisou de bastante esforço para mantê-las escondidas. Mal havia chegado e já choraria?
- Pai?
Evan virou a cabeça e sorriu levemente sem demonstrar qualquer surpresa ao ver o filho. Depois voltou a olhar para frente, esfregou as luvas nas calças e respirou fundo, olhando a profusão de cores estendida a seus pés.
- Sabia que foram encontrados fósseis de rosas de mais de 25 milhões de anos de idade? – disse com sua voz de barítono.
Owen não soube o que responder a isso. Caminhou alguns passos para frente para ver melhor enquanto seu pai voltava a falar:
- Então fico aqui, por horas e horas, tentando inutilmente imaginar as milhares de outras cores que podem ter existido nesse mundo.
Evan olhou para o Owen novamente.
- Não é maravilhoso e triste ao mesmo tempo, filho? Provavelmente todas as flores que hoje existem não são metade das que já desapareceram para sempre.
O homem estava absorto, não necessitava realmente de uma resposta. Continuou remexendo na terra com uma pequena pá e não voltou a cantarolar. Continuava a dizer aquelas palavras estranhas, com alguma profundidade que escapava aos ouvidos limitados do filho. Owen era um cego e um tolo e seria assim para sempre, não importando quantas estações se passassem e quantas rosas morressem.
Evan riu.
- É estranho. Vê essa pequena rosa, meu filho? Mais morta que viva. Mas olhe de perto. Exatamente por isso sua cor também é única, e se me perguntassem, eu diria que é a mais bela nesse jardim.
Evan pegou uma pequena tesoura e cortou o caule da planta.
- Uma pena que ela também tenha que desaparecer.
Guardou a rosa moribunda e as luvas nos bolsos de seu grande macacão verde. Sorriu novamente para Owen, colocou a mão em seu ombro e disse:
- Venha, vamos tomar um chá.
***
Na manhã em que a notícia chegou, Owen havia acordado cedo demais para sua primeira aula do dia. Havia tomado banho, café da manhã, escovado os dentes, pegado a mochila e, só então, ao olhar o visor de seu Casio, percebeu que estava meia hora adiantado. Levava no máximo dez minutos até o campus, e de repente se viu em dúvida sobre o que fazer.
As coisas andavam razoavelmente bem. As memórias de sua mãe desapareciam em silêncio depois de um ano e meio de sua ausência e Evan continuava com sua vida, cuidado de seu jardim, cozinhando e trabalhando duas vezes por semana no Hospital Geral de Portland, aparentemente apenas para matar o tempo livre e ocupar a mente com alguma coisa. Era o último período de Owen na faculdade, e ele não estava muito satisfeito com isso. O alto nível de competição que agora precisaria enfrentar não o agradava e quando pensava no tanto que precisaria trabalhar para conseguir algum conforto seu ânimo desabava. Visitava seu pai duas vezes por mês e isso também estava bem.
Então, olhando a poeira que brilhava ao sol, largou sua mochila e sentou-se na poltrona velha no meio da sala de estar. A manhã estava quieta e podia-se ouvir os roncos de seu companheiro de quarto, Matt, e resolveu não perturbar essa quietude ligando a TV. Fechou, então, os olhos e simplesmente esperou.
Quando abriu os olhos novamente tudo parecia estar no mesmo lugar e o silêncio permanecia. A única diferença eram os números em seu relógio. Estava dez minutos atrasado para a aula. Praguejando, levantou desajeitadamente e correu para a porta. Quando tocou a maçaneta percebeu que havia esquecido a mochila. Deu um risinho diante do absurdo cômico da situação e correu pela sala: primeiro em direção à mochila de e de volta à porta. Abriu-a com um puxão e não havia nada à sua frente, pisou no vazio escuro e caiu gritando por alguns segundos antes de abrir os olhos novamente.
Seu coração pulsava violentamente quando percebeu que tudo não passava de um sonho. No mundo real haviam-se passado apenas dois minutos. Seus olhos ainda pesavam de sono e, mesmo diante do susto proporcionado pela queda, ele adormeceu.
Dessa vez despertou no momento certo, tinha onze minutos para chegar ao campus. Com a mochila nas costas novamente girou a maçaneta, como em seu sonho pouco tempo atrás. Desta vez a porta se recusou a se abrir, estava trancada, obviamente. Owen deixava sempre sua chave num cestinho próximo e lá estava ela, apagada, triste e abandonada como um cadáver indesejável. Como o cadáver de sua mãe. Fechou a mão sobre ela e ao tentar introduzi-la no buraco destinado às seus ângulos milimétricos todo o metal se envergou como se fosse simplesmente borracha. Soube imediatamente que mais uma vez sonhava. Subitamente tudo escureceu e se tornou estranhamente irreal. Owen abria e fechava os olhos com força na esperança de despertar, mas era tudo em vão. Estava aprisionado, e o pânico cresceu sombria e rapidamente em seu coração. Poderia passar anos preso naquela ilusão, enquanto lá fora apenas alguns minutos transcorreriam. Preso naquele pesadelo contorcido em ângulos impossíveis apenas com seus pensamentos e desespero.
Olhou em volta em busca de qualquer coisa, mas já não havia cenário para se olhar, as direções pareciam não mais fazerem sentido, como se estivesse afogando num mar completamente escuro. Sentiu vontade de gritar, mas nenhum som saía de sua garganta. Fechou os olhos com força, e não mais conseguia abri-los por conta própria. Enfiou os dedos por entre as pálpebras e com um rugido puxou-as em busca da realidade.
Acordou gritando e completamente apavorado. Lembrou-se rapidamente de tudo que havia se passado e somente depois de alguns segundos percebeu que o telefone tocava. O barulho irritante penetrou bem vindo em seus ouvidos, como um sinal indubitável de realidade, e ainda assim ele ficou alguns momentos olhando estupidamente para o aparelho. Deus, o que havia sido aquele sonho? Por quanto tempo teria ficado lá se não fosse o maldito telefone?
O barulho cessou por alguns segundos para logo depois recomeçar a soar.
- Alô?
- Owen, é o seu tio Nelson. Estava dormindo?
- Não. – Owen ainda estava confuso. – Aconteceu algo?
- Sim.
Um silêncio estranho se estendeu por tempo demais. “O que pode ser dessa vez?”
O sonho havia sido esquecido.
- O que foi, tio?
- Seu pai foi preso.
- O quê? Por quê?
Outro silêncio.
- Tio?
- Desculpe, Owen. Seu pai foi acusado de assassinato. Você precisa vir imediatamente.
- Assassinato? Não entendo. Quem ele matou?
- Venha de uma vez, Owen, aqui lhe explicarei melhor.
- Quem?! – Owen berrou.
- Seu pai matou sete crianças, filho.
***
- No fim, filho, tudo se tratou de uma questão de ponderação.
Owen estava sentado numa sala muito iluminada, olhando para o rosto velho de seu pai, com suas sobrancelhas grossas demais, seus olhos lacrimejantes demais, sua voz grossa demais. Havia uma mesa entre eles, seu pai possuía as mãos grandes algemadas. Mãos que um dia o jovem Owen segurara, mãos que um dia afagaram seus cabelos, mãos que um dia o abraçaram. Ele estava em silêncio, esperando apenas por algum conjunto improvável de palavras que pudessem de alguma forma criar um sentido para tudo aquilo.
“Você viu, assim como eu vi. Pode ter passado despercebido a você, filho, sempre absorto em algum projeto, sempre procurando por alguma coisa frenética e sem sentido para tirar de seus pensamentos das certezas assustadoras sobre a vida. Mas sua voz enfraqueceu, você caminha curvado como um velho, você olha e nada vê. A morte da sua mãe foi uma lição indesejada para ambos, Owen, e você não é mais nada senão meu filho. Aprendeu bem, e isso causou sérias consequências em todo o resto."
"Foi apenas uma questão de sentido. Ou se preferir, uma questão de senso de justiça. Use o que quiser para justificar, filho, pois eu não preciso de tais coisas. Conversarei sobre isso apenas com você, e só posso prometer honestidade. Aceitarei de bom grado qualquer julgamento, cadeia, ou o que vier a partir desse ponto, mas quero que você saiba. Fiz o que fiz e não me arrependo nem me envergonho. Sou causa de muitas lágrimas, sei muito bem, mas também sou razão da ausência de muitas outras."
"Fazia sentido esperar? Fazia sentido observar aqueles olhos inocentes se apagarem em dor e gritarem por socorro? Algo já estava errado com eles, Owen, e simplesmente proporcionei a única saída real para toda aquela tragédia."
"Eu vesti meu macacão, peguei meu esfregão, cumprimentei médicos, enfermeiras, pacientes, mães, pais, filhos, irmãos. Sorria, pois sabia no bem que faria naquele dia. Havia feito minhas pesquisas e roubei o que precisava do hospital. Sim, disso sou culpado, admito. Cumpri meus deveres como faxineiro, como sempre o fiz, e quando terminei fui até a ala dos doentes terminais com câncer. Veja bem, Owen, eu presenciei o sofrimento. Senti seu gosto amargo na minha boca, o cheiro doce saindo dos lábios de sua mãe. Eu senti a dor emanando de seu pobre corpo e meu coração nunca foi tão dilacerado."
"Chamam-me de louco. Sim, talvez."
"Mas não seriam eles os loucos? Mentindo e sorrindo com seus discursos doces como a porra de um pêssego apodrecendo. Eles continuam se afogando num lamaçal de hipocrisia e agem como se fosse o mais lindo espetáculo da terra. Veja bem, eu não ligo pra essa merda toda. Você sabe, filho, humanos são lixo puro, são o erro em sua mais perfeita forma de expressão. Assim como câncer. Mas aquelas crianças não eram lixo. Elas ainda possuíam a real beleza da inocência em si, ainda não contaminadas pelas mentiras e pelo eterno ciclo sem sentido da vida. Mas possuíam câncer, e não mereciam de forma alguma destino tão cruel. Não lhes foi dada uma oportunidade, apenas dor e uma existência tristonha e fugaz."
"E eu lhes dei alívio, assim como gostaria de ter feito com sua mãe. Qualquer coisa era melhor do que se deitar naquele quarto, passar pelos tratamentos agressivos e dolorosos, derramar lágrimas e esperar a luz se apagar. Eles não tinham salvação, mas eu lhes dei uma."
"Eu não tinha o direito? Um político não tem o direito de aumentar os impostos e matar famílias de fome a não ser aquele dado a ele pelo próprio homem tão cheio de moral e julgamento. Assim, eu me dei o direito. Fiz, e faria de novo, pois eu chorei, eu vi e eu sei."
"Simples, não, Owen?"
"É você também um dos homens cheios de julgamento?”
***
Owen sentou-se e apenas alguns minutos depois viu seu pai sendo conduzido até a estranha plataforma na qual fecharia para sempre seus olhos. Era um estranho aparato de estofado verde claro, com várias tiras para amarrar o futuro defunto, provavelmente para o caso do homem decidir pela vida no último minuto, cercado por paredes muito brancas e várias janelas para que os convidados pudessem ter a melhor vista do macabro espetáculo. Os quepes dos policiais em suas belas fardas azuis escureciam seus olhos, dando a impressão de que seus rostos eram exatamente iguais. Eles se mexiam metodicamente, retirando as algemas e, muito gentilmente, conduzindo Evan para seu leito de morte. Este possuía um medo profundo nos olhos, mas Owen não viu nada de arrependimento lá. Diante do escuro todas as pernas de todos os homens fraquejam, sejam inocentes ou culpados.
Evan vestia um macacão branco impecável, o cabelo grisalho penteado elegantemente para trás e a barba meticulosamente aparada. Calçava dois pequenos chinelos da mesma cor, e Owen nunca saberia dizer o porquê, mas aquilo disparou algum mecanismo adormecido em seu coração e de repente seu pai pareceu alguém tão vulnerável e indefeso que as lágrimas vieram sorrateiras e pingaram em sua calça de linho marrom. Teve vontade de entrar na sala para um último abraço, ou poder simplesmente dizer que aquilo que fizera não tinha importância, que eles sairiam dali de mãos dadas para encontrar Fanny no estacionamento. E eles lhe perguntariam sobre a escola, ou sobre garotas, ou sobre nada, simplesmente sentariam na sala juntos, com a TV ligada e rindo de coisas sem importância alguma.
Mas havia um relógio logo acima do leito e sua mensagem era clara: os caminhos haviam sido traçados, percorridos, lamentados, mas no fim os caminhantes alcançaram seu destino. Aquilo não mudaria, os passos continuariam a ser dados, pelo menos por Owen. Seu pai sairia da estrada logo, o único que realmente havia caminhado junto com o filho e sabia quem era a esposa. Lembrar-se é uma tarefa solitária, e Owen não saberia lidar com a responsabilidade de simplesmente se esquecer. Era como acordar de um sonho especialmente vívido e agradável, triste por saber que ao fim do dia ele teria desaparecido como uma chuva de verão.
Não havia alternativa, assim como não havia aceitação.
Ao entrar na sala Owen havia visto os Rymer sentados em um dos cantos escuros, todos com os rostos pesados de dor, olhando fixamente para frente, sem trocarem palavra. Owen tirou um pequeno colar do bolso, foi até Ericka e pegou sua mão. Seus pais olharam e reconheceram de imediato o homem, mas ninguém disse nada, talvez espantados demais por vê-lo em tal lugar. Ele depositou o pequeno objeto na pequena mão que o havia masturbado e saiu em direção a qualquer assento longe deles. Não queria se justificar e muito menos ouvir qualquer justificativa. Não que alguma fosse necessária, com toda a certeza o pequeno menino sorridente da foto havia sido um dos assassinados por seu pai.
Ainda sem qualquer alternativa, ainda sem qualquer aceitação.
A verdade é que uma grande força é necessária para se reconhecer a própria fraqueza, mas aceitá-la de fato está em um nível completamente diferente. Apresente um homem que grita, que se recusa a aceitar e que procura alternativas e alguém lhe dará um tapa no ombro, um sorriso acolhedor e talvez até tomem sua causa como verdadeira. Mas apresente um homem calmo e cabisbaixo, um homem que recebe o soco sem se mover, um homem que reconhece seu próprio lugar: completamente solto na interminável e indiferente correnteza das coisas sem sentido no mundo, e aí sim, alguém terá apresentado um homem de verdade. Apresente um homem que lambe seu sangue da parede, o homem que inspira a fumaça de todas as engrenagens enferrujadas das coisas do mundo. Apresente a sensatez do abandono, apresente a insensatez da esperança. E aí sim, teremos a verdade.
Owen ouviu alguém dizer algo sobre últimas palavras, mas Evan não se manifestou: seus olhos faziam isso muito bem por ele. Ele calmamente se deitou, deixou-se ser amarrado olhando fixamente para o tento. A agulha do soro foi introduzida, e a hora do sono se aproximava. As janelas eram espelhadas, o pobre homem não poderia nem mesmo ter um último vislumbre de seu filho. Os três tubos cheios de líquidos transparentes desceram implacáveis como a fúria de uma mulher. Tiopentato de sódio. Brometo de pancurônio. Cloreto de potássio.
A partir daí tudo transcorreu de maneira muito silenciosa e até bela. Os olhos se fecharam com alguma última lembrança flutuando agradavelmente em lágrimas e foi só. Terminou. Evan estava morto, e Owen ponderou sobre como seria caminhar ao seu lado nessa nova estrada. Mas a existência de uma estrada seria misericordiosa demais, e todos sabem que não há misericórdia nas coisas do mundo.
No dia seguinte Owen entrou em sua casa belamente iluminada pelo sol moribundo no horizonte. Colocou sua chave no cestinho ao lado da porta, como sempre fazia, desde a faculdade e jogou displicentemente seu casaco no sofá preto no meio da sala. Caminhou até a cozinha e parou na porta, ouvindo suas garotas conversarem alegremente sobre as coisas do mundo, completamente alheias ao homem que sorria com as mãos levemente encostadas na branquíssima parede. Mas uma percepção sólida cruzou sua mente abalada, o sorriso morreu, e a partir daí apenas uma pergunta ecoou:
“E se um dia elas tivessem câncer?”