O fim de minha história
O homicídio sempre me incomodou, mesmo em meus quatorze anos como policial. As pessoas gostam de imaginar a morte como algo rápido, suave como um suspiro. Toda aquela história da luz deixar os olhos de um ser humano. Bem, talvez para os poetas e para aqueles que a temem isso seja verdade. Mas para aqueles que a encaram constantemente a impressão é outra. Não existe tal luz em olho algum. Não existe um último belo sorriso antes de sua alma ir para o além, ou para onde você quiser acreditar. Geralmente as pessoas morrem em meios a gritos, engasgos, remexendo-se em seus próprios fluídos corporais, seja sangue, lágrimas ou suor. E, deus, a espera, a demora. Como de maneira impressionante o tempo encontra uma maneira de se esticar, de transformar um minuto em trinta.
Imagino que isso incomodaria qualquer pessoa sã. Meu pai, também um policial, muito mais condecorado que eu, sabia desta realidade. Quando resolvi seguir seus passos ele foi estritamente contra. Ele sabia que eu era sensível demais, inteligente demais, jovem demais. Sua carreira durou mais de trinta anos, e a cada dia enquanto sua morte se aproximava seus cabelos se tornavam brancos demais, caíam rápido demais. Com cinquenta anos de idade meu velho pai se tornara um homem taciturno de olhos negros sempre movendo-se de um lado para o outro, como se esperando algo acontecer. Em seu leito de morte, após um ataque cardíaco silencioso, parecia um homem de oitenta anos. A realidade tem esta incrível capacidade, talvez seja até mesmo sua função, de retirar a cortina vermelha que cobre o indescritível horror da existência humana. As pessoas normais evitam até mesmo pensar que tal coisa existe e somente assim elas conseguem se aventurar nesta terra onde ninguém de fato observa.
Minha família foi obrigada a assistir o espetáculo cedo demais. Minha filha e minha esposa. Uma morta por mim e a outra pela corda. Não faz tanto tempo assim, menos de uma semana, apesar de o tempo ter se transformado em uma massa disforme onde estou aprisionado e me afogando, sem qualquer visão da superfície. Estas palavras soam como um testamento, mas não há nada aqui a ser oferecido a ninguém além das verdades de um assassino sem qualquer arrependimento no coração.
O homicídio sempre me incomodou, mas como consegui assassinar sete pessoas sem que um momento de hesitação parasse meu dedo no gatilho? Acho que não seria difícil explicar, mas seria necessário retirar um pouco da cortina vermelha para quem ler este relato, e se você ainda não se sente pronto para tal coisa, não se sinta mal. Pare de ler agora, ligue sua tevê em algum programa feliz de entrevista, assista a uma novela, veja um filme feliz. Pois neste conjunto de palavras a felicidade não encontra asilo, assim como toda a corrente de fatos que as colocaram em conjunto.
Quando minha filha nasceu e pela primeira vez encarei seus pequeninos olhos azuis eu tinha absoluta certeza de que a felicidade daquele momento duraria para sempre. Eu a veria crescer, ter irmãos, ir à escola, se apaixonar. Desfrutar de todas as coisas que podem seriam oferecidas a ela. A expressão no rosto cansado de minha mulher transmitia a mesma felicidade, mesmo depois de um longo parto. O choro de minha garota era estridente e potente, mas não incomodava os ouvidos do mais novo pai naquela sala, muito pelo contrário. Eu sabia que aquele era um daqueles momentos que seriam lembrados quando as coisas não estivessem bem ou quando as coisas estivessem maravilhosas. Mas nem mesmo se eu tivesse o poder da onisciência eu acreditaria no que seria dito sobre os anos a se seguir. Não havia futuro naquele instante. Apenas o instante. Apenas o presente.
Quando tudo isto aconteceu minha esposa e eu já estávamos com a vida praticamente resolvida, mesmo sendo tão jovens, ambos com 26 anos. Eu já havia sido promovido a detetive e ela era a melhor cirurgiã cardíaca do estado, uma das melhores do país.
No início tudo correu como deveria correr. Todos os planos pareciam ocorrer da maneira como haviam sido concebidos, e apesar de alguns dias ruins, como normalmente é a vida, risos e o brilho do sol na cozinha é a maior parte do que me lembro destes dias. É de fato estranho. O sol na cozinha, uma coisa tão comum. Imagino que assim seja nossa memória: pequenos fatos para grandes sentimentos.
Obviamente em um determinado ponto o trem descarrilou, mas não foi de maneira repentina como soa. Os sintomas de sua doença foram se manifestando aos poucos. Ataques de agressividade, confusão, perda de memória. Na terceira vez na qual minha filha agrediu um colega de classe resolvemos tomar uma atitude. Ela possuía onze anos na época.
Como minha esposa já havia suspeitado, o neurologista confirmou, juntamente com o psiquiatra que consultamos: esquizofrenia. O choque sofrido não pode ser descrito. Não tenho a habilidade literária para isso, pois apesar de ser sensível e inteligente, como meu pai gostava de afirmar em seus bons dias, sou, ou costumava ser, um policial e o maior número de palavras que escrevi encontra-se no arquivo de relatórios da delegacia.
Aquele foi um mês tenebroso. Minha esposa e eu discutíamos como lidaríamos com a situação e ouvíamos a opções de tratamento, nenhuma delas agradável, desde medicação para a vida inteira e internação. Durante este período fui afastado de meu emprego, pois havia me transformado em outro homem. Agredi outro policial apenas por se aproximar e dizer: "sinto muito". Quando ouvi aquelas palavras algo aconteceu, talvez pelo fato de já ter ouvido tantas vezes antes. Nada daquela baboseira de visão escurecer ou tudo se tornar vermelho. Meu punho foi mais rápido que um piscar de olhos, assim como a decisão de meu superior de me afastar até que tudo estivesse resolvido. Não o culpo, e se pudesse pediria desculpas ao meu colega de trabalho. Não que isto importe mais, na verdade.
E nossos planos? E a vida do meu querido bebê? Bem, como esperado a decisão covarde me dominou e enquanto via os sintomas de minha filha piorarem as garrafas em meu escritório aumentavam. Pouco lembro deste período, somente que o pior aconteceu. A doença se agravou tanto que nunca mais ouvi uma palavra de minha filha, nenhuma expressão de reconhecimento. Nem o esboço de sorriso de canto de boca. Ela mergulhou em um estado de catatonia total. Não fazia nada por conta própria e eu não suportava o sofrimento de assistir minha esposa vesti-la, banhá-la, enquanto os lindos olhos de minha garota fitavam o vazio completamente alheios do que ocorria a seu redor.
No fim terminamos por interná-la na melhor instituição que encontramos e minha melhor parte foi junto com seu corpo sem vontade própria. As palavras de amor com minha esposa se foram. Meu trabalho era feito, mas de maneira robótica, não havia mais interesse em investigar nada. Deus nunca fora nada para mim, então não havia momentos de raiva nos quais esbravejava contra ele. Imagino que neste momento meus olhos tenham adquirido o mesmo aspecto dos de minha filha, e eu não fazia questão alguma de sair daquele buraco. Minha esposa tentara, tentara me convencer de era reversível. Nada podia ser afirmado com certeza. Poderíamos ouvir sua voz novamente, sentir o calor de seus braços ao nosso redor. Chegara até mesmo a propor termos outro filho, mas eu não suportaria de modo algum mesmo pensar sobre passar pela mesma situação, apesar de extremamente improvável de que aquilo se repetisse com outra criança. Quando minha filha foi internada ela tinha doze anos. Apenas três foram necessários para encontrar minha esposa pendurada na sala de estar com um nó mal feito em uma corda, indo para a esquerda e para a direita como o pêndulo de um relógio antigo. Eu a retirei de lá observando a roxidão e sua língua para fora. Chamei uma ambulância e quando todos se foram, deixando-me finalmente sozinho, sentei-me em minha confortável cadeira no escritório. Após uma garrafa de uísque peguei meu taco de beisebol e destruí em minutos tudo aquilo que representava milhares de sonhos moribundos. Um terremoto parecia ter atingido o lugar e os vizinhos chamaram a polícia, mas os despachei sem problemas. Queimei todas, todas as fotos guardadas nos armários e espalhadas pela casa. Não havia mais estrada a ser percorrida, sonhos a serem perseguidos ou memórias para serem revividas. Provavelmente a maioria de vocês não entenderia a fúria que me habitava naquele momento e não espero que entendam. Mas ainda chegaremos lá.
Pois esta não é a pior parte da história.
Passei a visitar minha filha todos os dias. Ela sempre estava linda, com seus cabelos castanhos espalhados pelo travesseiro. Havia uma enfermeira muito gentil, que sempre me oferecia café durante as longas horas que passava sentado na poltrona bege do lugar. Sim. Bege. Sinto vontade de rir ao lembrar de tal detalhe.
Certo dia, quando cheguei, havia uma grande mancha vermelha no lençol. Assustado gritei por ajuda, mas antes que ela pudesse chegar imaginei que fosse sua primeira menstruação. Que coisa sem sentido. O que aquele corpo inútil pensava que fazia mantendo viva uma pessoa que não possuía pensamentos ou a capacidade de expressá-los? Mas de qualquer maneira tudo foi retirado e substituído e passei algumas horas encarando meu sonho aniquilado.
Imagino que ela tenha enviado o cd a dois dias atrás.
Eram horas, dias de gravação. Na tela de meu computador via minha filha deitada encarando o teto como sempre. A qualidade não era tão boa, mas para quem havia estado tantas vezes naquele lugar a situação era óbvia. Acelerei o vídeo ficando cada vez mais curioso, e por volta de uma hora de gravação houve uma mudança. Eu entrei no quarto. Passei a mão no seu rosto e me sentei, como sempre fazia. Não sabia o qual magro estava, como parecia doente. Adiantei mais duas horas e meu eu do passado se retirou do quarto. Os número da gravação indicavam duas e trinta e dois da manhã. Sim, eu podia visitar minha filha em qualquer horário, um privilégio adquirido desde que minha esposa estava viva. Continuei adiantando, e cerca de meia hora depois de minha partida outra pessoa entrou na sala. Um enfermeiro. Usava as típicas roupas roxas da instituição enquanto verificava o soro e injetava algo mais com uma grande seringa. Virou-se para sair da sala e quando eu estava prestes a adiantar mais o vídeo ele parou de repente. Olhou para minha filha estendida, depois para a câmera, diretamente para mim. Provavelmente o controlador da vigilância também assistia àquilo. O homem era alto e barbado, mas ainda assim possuía o rosto gentil. Mas sua expressão se modificou ao levantar ao polegar para a câmera e sorrir de maneira perversa. Era como se um outro homem habitasse sem corpo, um homem muito mau. Ele lentamente retirou seu uniforme. Subiu na cama onde minha filha estava. Jogou o cobertor para o lado.
Não desejo contar o resto. Vocês já sabem o resto.
O resto. O resto. O resto. Meu deus. Meus dentes se fecharam de tal maneira que minha mandíbula começou a latejar. Minha cabeça latejava. Meu corpo começou a tremer. Era como assistir... não consigo encontrar algo comparável. Passei uma noite inteira assistindo àquilo e pude perceber que não apenas o enfermeiro barbudo praticou "o resto" em minha filha. Cinco outros enfermeiros fizeram o mesmo. As vezes dois faziam ao mesmo tempo e sempre terminavam sujando minha filha, para depois cuidadosamente lavá-la para quando eu fosse lá não desconfiasse de nada. Fizeram um bom trabalho. Quando terminei de assistir tudo o dia já nascia e meu corpo parara de tremer. Havia uma garrafa de Jack Daniels fechada ao lado do computador. Ela permaneceu desta maneira. O que foi aberto foi uma das gavetas da mesa, da onde tirei minha Glock 9mm e a examinei. Não seria apenas o sangue de minha filha que seria derramado.
Neste momento utilizo o computador do Diretor para digitar o que vocês leem agora. O hospital está uma completa bagunça. Todos os enfermeiros mortos, juntamente com minha filha e o responsável pelo monitoramento das câmeras. Decidi encerrar sua agonia. Esta é minha história tão resumida pois tentam arrombar a porta neste momento. Gostaria de poder-lhes contar mais, pois também há partes felizes. Mas imagino que o fim é o que importa, correto? E qual o fim da história vocês gostariam de ler? Qual o final vocês gostariam que ocorresse? Não cabe a vocês decidir. Não cabe nem mesmo a vocês saberem nada além daquilo que disse no início. A cortina é vermelha e bela. Não a deixem cair. Mas se por algum inoportuno acaso o deixarem, descobrirão o final de minha história.