DESTINOS AO ACASO

Há um consenso entre os que ousam escrever -- nem me atrevo a chamar de escritores -- de que o conto (ao contrário do romance) tem seu desfecho ignorado pelo autor. Por vezes até o "entremeio" da estória vai surgindo enquanto a caneta "tinta sêca" -- nome antigo dessas pequenas maravilhas -- percorre a planície branca do papel, no meu caso sem linhas, detesto folha de caderno, as "trilhas" tolhem minha criatividade... coisa de escritor.

Os 2 breves contos a seguir têm entre si um "espaço" de quase 40 ANOS... um enredo "sonhei" nesta bela tarde de domingo sem chuva, 19 de maio de 2019, singelo "pedaço de imagem", nada mais. A outra estória foi criada a partir de minhas leituras de contos policiais na juventude, publicados principalmente na coleção MMEQ - Mistério Magazine Ellery Queen. Se houver algum "sebo" ou jornaleiro com livros velhos perto de você, compre todas as revistas. Era miniconto completo, do qual não lembro uma frase sequer... "perdeu-se" por aí, não guardava meus rascunhos, como só agora faço. Reescrevo hoje, sem o mesmo brilho do antigo "nascimento". Vamos a êles !

DESTINOS AO ACASO

O belo baile do "hight society" da cidadezinha americana foi interrompido quando um ricaço que valsava com uma das muitas damas "caiu duro" no salão. No alvoroço que se seguiu a diretoria optou por liberar a todos, conhecia cada casal do lugar e tinha seus nomes no liro de entrada. Para todos os efeitos, o antipático comerciante, dono de meia cidade, um grosseirão detestado, morrera de morte natural. Chamaram famoso detetive em visita ao lugarejo. Tempos de fraque e cartola, luvas de pelica e bengalas encastoadas com pedrarias. Foi recebido pelo porteiro negro "meio enfeitado" naqueles trajes de época, vistosas luvas branquíssimas avistadas à distância. Entregou-ljhe somente o chapéu panamá, casacão e bengala, em seu "metier" luvas eram exigência número 1.

Examinando o cadáver encontro pingos de sangue coagulado no impecável colarinho... retirou potente lupa da inseparável maletinha. Entre os fartos cabelos minúsculos buracos, no final da nuca e atrás de uma das orelhas. Conclusão fácil e lógica: ninguém atirou do salão lotado, portanto o projétil veio de cima. Explicaram-lhe: mezaninos nas laterais do salão mantinham mesas de carteado à esquerda e, no outro lado, sala de tiro ao alvo, com dardos, ora trocados por "chumbinho". Subiram, o detetive jogou misterioso pó sobre as 4 ou 5 espingardas, assoprou e com a lupa examinou coronha e gatilho de cada uma.

-- "LIMPAS, todas limpas... chamem o porteiro, já sei quem é o assassino" !

(E você, caro leitor, ilustre leitora... também já sabe quem matou o maior corretor de imóveis de Gainsville" ?!

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Meu irmão descia a rua íngreme, eu o seguia uns 3 ou 4 metros atrás... de repente, um baixinho gordo e careca se aproxima dele, pela esquerda, "puxando conversa", enquanto jovem magrela e mal vestida encosta nele pelo lado oposto, mete a mão em seu bolso e foge com a carteira, com apenas 2 ou 3 documentos, cartões ! Pronto, findou aí meu sonho... o resto é por minha conta !

"Lili Cartucheira" era muito citado nos programas policiais nas Rádios de Belém dos anos 80... ao que parece, seria bastante eficiente no combate ao crime nas ruas, na época. Êle dá nome a personagem principal dessa outra estória, a partir do sonho narrado acima.

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Descia o velho Apolinário a Ladeira do Pelourinho, tarde chuvosa, ruas desertas, quando foi abordado por um senhor quarentão, forte e baixo, já meio careca. Perguntou-lhe qualquer coisa enquanto "Lili Cartucheira" se aproximava pelo lado oposto, apalpando seus bolsos traseiro e dianteiro. Tentou surrupiar-lhe a carteira, contudo o idoso percebeu a tempo, agarrando-a pelo braço e apertando eu pescoço. Magra, mal nutrida, não teve forças para desvencilhar-se, enquanto o comparsa fugia, "escafedendo-se", diriam naqueles tempos. Braço estendido atrás de si, ela ainda mantinha a carteira na mão esquálida.

-- "Devolva minha carteira, sua vigarista" !

-- "E o que é que eu ganho com isso" ?!, retruca "Lili".

-- "Se livra da polícia e da cadeia" !, ameaça Apolinário, num tom inconvincente, que ela percebe.

-- "Já conheço as 2, não me assustam" !

Entre dar uns tapas na mocinha abusada ou bradar por uma Polícia inexistente, "Popó" ficou no meio têrmo... propoz pagar pelo resgate da carteira:

-- "Eu pago pela carteira...diga quanto quer" !

-- "Que tal "cinquentinha" ?! É um valor razoável" !

-- "Aceito... passe lá em casa amanhã" !

-- "Ficou doido ? Quer "me enrolar, coroa"... pague logo, agora" !

-- "Não tem 1 centavo na carteira, menina... deixo celular dinheiro em casa" !

Conferiu... não tinha mesmo ! Aquela "papelada" não servia para nada " Devolveu ! Estava "na encruzilhada" da sua vida, mais uma ! Seria presa quando lá chegasse ?! Pegou o endereço com um gosto amargo na goela. Mas, foi... as pernas bambas e o coração "na boca" !

-- "Ah, é você ?! Entre, vamos conversar" !

Jogou os 50 reais sobre a mesma, com uma proposta: cama, comida, chuveiro, um teto sobre a cabeça e... PAZ, coisa que ela jamais teve ! Iria "comer o pão com o suor do rosto", porém a casa modesta não lhe exigiria tanto esforço ! Aceitou, já pensando num modo "de dar a volta" no velho e "se dar bem" no final da história. Passaram ambos a noite quase sem dormir... Apolinário achando que fizera grossa besteira e, ela, pesando os prós e os contras de jogar aquela chance de mudança pro alto. No café da manhã se entreolharam surpresos, analisando mentalmente o absurdo daquela situação toda.

-- "Mais tarde vamos a uma loja comprar roupas para você... não quero mendiga na minha casa. Não vai sair de graça, vou descontar do teu salário" !

Huuummm, a "coisa" começava a se complicar (pensou), sempre fôra livre, não aguentaria patrão e... TRABALHO ! (Sentiu um arrepio !) Por outro lado, lá fora só fome, frio, desprezo ! A vizinhança achou que "Popó" enlouquecera ! Botar dentro de casa uma "lambisgóia" daquele nível era um perigo ! O "clube das enjeitadas" poz-se de sobreaviso: será que o "sessentão" boa pinta fôra "fisgado" ?

O D.I.V.A - Depto de Informação da Vida Alheia também estava alerta... todo cuidado era pouco com essas "jovens modernas". A moça passou por manicure, "deu um trato" nos cabelos e pintou as unhas todas. Estava mudada em poucos dias... se pegou cantando Martinho da Vila, acompanhando o Rádio antigo, na casa:

-- "Não sei se vou, não sei se fico... / se eu fico aqui, se eu fico lá" ! (...) Um dia eu teno um aliado certo / na minha luta pra subsistir...", etc e tal !

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No que me diz respeito, a estória termina aqui ! O Acaso uniu os 2 Destino, resta saber até quando ! Ela "passará a perna" no velho, jogando tudo "pro alto"? "Popó" irá se engambelar pela "zinha", arrumando "um cobertor de orelha" e, quem sabe, belo problema ?! Não tenho as respostas "que estão indo com o vento", já diria Bob Dylan. Voltemos pois ao desfecho do conto inicial: o porteiro chega ao mezanino de olhos arregalados, lívido, muito nervoso.

-- "Você trancou o salão de jogos... também limpou as armas, estou certo" ?

-- "S-s-sim, senhor... fa-faço isso sempre, o salão é fechado para evitar os encontros íntimos durante o baile e as espingardas limpo toda noite" !

-- "Huumm, faz isso com luvas" ?!

-- "N-n-não, se-senhor... claro que não" !

-- "Então, porque não há impressão de deus dedos em nenhuma delas ?! Dê-me suas luvas, por favor" !

O porteiro mudou de cor, nitidamente apavorado... discreto cheiro de óleo para lustrar móveis exalava delas.

-- "Pode me dizer porque fez... aquilo" ?!, apontando o cadáver no andar abaixo deles.

-- "Era um homem mau, detestava gente de cor e poz minha família "na rua" quando atrasei o aluguel da casa" !

Os diretores lamentaram o destino do infeliz, a fôrca o esperava. Era excelente atirador, vencera vários torneios para o Clube. O Destino reunira ao acaso 3 homens... só um sobreviveu ao encontro !

"NATO" AZEVEDO (19-21/maio 2019)