A CAIXINHA VERMELHA

- Amor?

- Oi, querido. Já voltou? Está tudo bem?

- Graças a Deus sim, meu bem.

O casal se beija. O marido não solta. Depois de quase trinta segundos ela se afasta:

- Meu Deus, Antenor. O que aconteceu? Veio apaixonado é? Faz tempo que você não me beija assim tão demorado ao chegar em casa.

- Eu sei, querida. Eu te amo muito, Matilde.

- Eu também te amo, querido. Agora vá tomar um banho e trocar de roupa.

O marido deixou as sacolas de compras na sala e foi para o chuveiro.

Antenor era um homem de classe média, mas de hábitos humildes. Preferia guardar boa parte do dinheiro para um investimento com sua família do que ostentar o sofrido salário de corretor com coisas que apenas os de fora gostariam de ver, mas não de comprar.

Matilde, mulher do lar, porém muito inteligente em assuntos financeiros, era um pouco mais controlada em gastos, ao ponto de negar até um vaso caríssimo que seu marido havia comprado em seu aniversário, alegando que podiam pagar duas viagens com o dinheiro daquele vaso.

Enquanto Matilde organizava as compras que Antenor havia feito, reparou que dentro de uma sacola havia um embrulho pequeno. Após ter percebido que o chuveiro já estava ligado, deduziu que o marido já estava no banho e vagarosamente foi abrindo o embrulho; dentro dele continha uma caixinha vermelha retangular com um laço rosa. Embora sua curiosidade feminina aguçasse, imaginando que seria mais um presente desnecessário adquirido por Antenor, preferiu manter a caixinha fechada, guardar segredo e deixar essa conversa para o jantar.

No jantar, o silencio foi quebrado por Matilde:

- Amor?

- Sim meu bem?

- Você comprou alguma coisa para você?

- Ah sim! Uma gravata. Eu estava realmente precisando de uma.

- E pra mim? Trouxe algo?

- É claro. Estava no embrulho que você abriu quando fui buscar a toalha e deixei o chuveiro ligado.

Ela se engasgou com aquela fala de seu marido, pois suspeitava que ela vasculhasse as sacolas em busca de algo pra discutir, mesmo que num leve tom:

- Meu amor. Você sabe... estamos economizando para trocar de carro e...

- E nenhum tipo de coisa supérflua pode ser adquirido, correto Srta. Economia Excessiva?

- É que não é meu aniversário e nenhuma data romântica hoje e você comprou algo que eu não pedi.

- Eu realmente – disse limpando a boca com o guardanapo – não iria comprar nada, mas na volta pra casa passei perto de uma rua que tinha uma grande multidão. Pensei que algo havia acontecido, mas não. Era uma exposição de alguns bens que estavam à venda do falecido Sr. Wingledon.

- Wingledon? O magnata que dizem que enlouqueceu?

- Eu ouvi a história meio que por cima. Não conhecia direito. Eu também pensei que ele havia enlouquecido. E como ele morreu, os filhos quiseram vender os bens do pai pra ver se ganhavam alguma coisa em cima daquilo. Sabe como é, né?

- Tá bom. Mas o que tem a ver essa caixinha?

- Ela estava a venda. Passei lá e comprei.

A esposa colocou a caixinha sobre a mesa e estava fechada. Ela estava prestes a abrir quando o marido a interrompeu:

- Espera! Não abra ainda!

- Ué? Por que não? É uma bomba? – debochou a esposa.

- Não é isso, tolinha. É que eu queria te contar o motivo porque a comprei.

- Está certo. Quanto custou?

- R$ 1.200,00.

Matilde se levantou da mesa com feição enérgica:

- Mil e duzentos reais? Antenor, você é algum louco?

- Calma – ainda com expressão serena – senta aí.

- Agora era só o que me faltava. Gastar mil e duzentos reais de uma vez só. O que é que tem dentro dessa caixinha? Um colar caro? Uma joia? Uma aliança?

- Senta que eu conto.

Matilde se sentou com a cara fechada:

- Ok. Conta logo que eu já perdi o apetite.

- Tudo bem. – disse Antenor que se levantou, colocou o prato na pia e voltou para a mesa. Estendeu a mão e pedindo a caixinha, deixou-a perto dele.

‘Quando entrei na exposição, reparei que várias pessoas estavam interessadas em quadros, relógios e coisas do tipo. Eu entrei só pra ver mesmo. Os expositores contavam a história de cada daquelas quinquilharias e me lembrei da forma que eu tento convencer os clientes a fecharem negócio.

Nisto tinha um mostruário que ninguém foi e que nenhum atendente estava mencionando. Fui até ele. Chegando lá vi a caixinha vermelha aberta e ao olhar para o preço, por incrível que pareça, nem preço estabelecido tinha. Estranhei o porquê tamanho objeto sequer quiseram elencar valor financeiro naquilo.

Fui até um atendente que estava ansioso para vender algum móvel caro e ganhar comissão em cima daquilo e com muita má vontade ele veio até mim:

‘Posso ajudar, senhor?’

Perguntei quanto estava a caixinha e ele me disse que ela não possuía valor e que os filhos decidiram que o quanto a pessoa quisesse dar por aquilo, levaria. Questionei sobre o conteúdo e ele, impaciente, pediu que eu lesse o papel que estava numa pasta azul que o próprio dono do objeto havia redigido e assim eu teria melhores informações do produto. Ele me disse que qualquer coisa era só chama-lo e me pediu licença para atender outros possíveis compradores mais quistos do que eu.

Entre xingamentos mentais diversos decidi ver a famigerada carta. Ao olhar não era uma carta com descrições, mas sim vários papéis de relatórios de uma audiência judicial. Autos, propriamente dito. Fiquei sobremodo curioso do por que cargas d’água aquilo estava ali.

Isolado, comecei a folhear os documentos e tentar entender do que se tratava. Tratava-se realmente de relatos de um tribunal que um escrivão registrou. Comecei a ler:

‘Na presença do exmo. Juiz Dr. Cosme Guimarães da Fonseca se iniciou a audiência do julgamento do réu Sr. Wingledon Machado Pergalia.’

Notei enquanto lia que era referente a um assalto e que o conteúdo da caixinha vermelha não era do Sr. Wingledon, mas de uma advogada influente na época conhecida como Dra. Gouveia Costa. O inquérito iniciou-se com o relato do advogado de acusação informando que as câmeras de segurança da casa da sua cliente registrou um meliante no meio da noite que, não se sabe como, pulara o portão da casa da advogada e entrara em sua casa. Esgueirando-se pela janela como um espião profissional, adentrou sorrateiramente na calada da noite e adentrou pela janela aberta da advogada que, dormia calmamente. Segundo a sua cliente ela ouviu barulhos como se alguém mexesse nas suas gavetas particulares e, conforme a cliente alegou, ela costumava guardar altas quantias de dinheiro em suas gavetas onde continham peças intimas. Como morava sozinha, estranhou os ruídos e ao perceber que mais alguém estava lá, gritou desesperadamente na escuridão do quarto e o viu que o vulto fugiu correndo pela janela aberta levando alguma coisa e colocando dentro de uma caixinha que ele mesmo trouxera. Angustiada, ligou para a policia. Nas ruas em que a advogada morava haviam muitas câmeras de segurança, então através delas foram seguindo os passos do suspeito. Pela manhã ele já estava preso, próximo a uma praça, sentado, como se esperasse pelos agentes. Porém não estava com a caixinha e disse que só iria contar onde ela estava no dia da audiência.

A polícia investigou o local e a advogada informou que um cheque de R$ 900.000,00 tinha desaparecido e acusou o suspeito por roubo. O suspeito em todo o tempo estava calado.

Eu já estava com as mãos suadas querendo saber o final daquele julgamento. Cheguei na parte em que o acusado diria algo em sua defesa, já que ele não contratou advogado para se defender. Então os autos diziam:

***À todos os que me ouvem, meu nome é Wingledon Machado Pergalia. Não necessito de advogado por bem sei como funciona toda essa patuscada aqui. Sem delongar-me no meu discurso vos detalharei de modo simples e singelo minha vida. Fui casado com a ilma. Dra. Gouveia por quinze ótimos anos. E não me cora ver a expressão de vocês nesse tribunal mudarem da água para o vinho porque a vítima sequer imaginara que eu havia adentrado em sua residência. Pois bem; em primeiríssimo lugar ressalto que não peguei um mísero níquel da dona em questão, haja vista sou rico e não preciso de sequer uma migalha de seu dinheiro que com o tempo apodreceria. O estimado cheque que tanto me questionam está na mesma gaveta em que foi colocado. A diferença é que fiz questão de jogá-lo para detrás da gaveta e deixa-lo cair na retaguarda do guarda-roupa que, sabendo da ineficácia dos policiais em sua busca e do sentimento vermelho de raiva pela perda advindo da dona do mesmo, eles me levariam até aqui como suspeito. Embora tudo fosse planejado, corta-me o coração ver-vos aqui diante de um homem honrado como eu. Todavia é mister que isso aconteça para que saibais a verdade.

O amor. Sim, o amor. Esse sentimento róseo fez com que meu coração ensandecesse e me levasse a feito tal. Tudo o que eu roubei, pasmem senhores, foi Betty. Betty. Sim, Betty. A mulher que eu tanto amei. A mulher que eu me casei. A mulher que fez meu riso ser eterno. Apenas ela que eu queria e num desejo desesperado fui a sua captura.

Quando conheci Betty éramos adolescentes e logo nos apaixonamos. E por um breve momento tivemos que nos afastar por mudarmos de escola. Então ficamos por um tempo de dois anos trocando bilhetinhos e cartinhas amorosas, melosas e infantis como todo amor adolescente. Ela tinha sonho de ser escritora e eu também. Amávamos os mesmos autores e sempre que podíamos escrevíamos poemas nas nossas correspondências um para o outro. Depois que nos reencontramos iniciamos um relacionamento sério e sempre colocávamos bilhetinhos com poemas e declarações de amor um para o outro.

Casamo-nos. E como fomos felizes. Nossa condição não era boa como hoje, mas nos amávamos e muito. Continuamos escrevendo bilhetinhos. Ela trabalhava para pagar sua faculdade de Direito e eu, já formado em Letras, iniciei um negócio próprio que deu muito certo vendendo e comprando ações numa empresa que me contratou devido a minha verborragia. Sonhávamos com nosso primeiro livro publicado e tudo o mais era apenas pretexto ou contexto para financiamento de um plano literário futuro.

Betty se formou, passou na prova e virou advogada. Foi bem sucedida com vários casos e se tornou famosa e bem requisitada pelos clientes. Meu negócio de vendas deu tão certo que virei gerente daquela empresa. Mas ainda sim eu escrevia mensagens de amor para ela.

Entretanto o tempo foi passando e Betty foi se tornando amarga. Nosso relacionamento foi esfriando e toda aquela sensibilidade encontrada na Betty que tanto amei foi aos poucos esvaindo. Eu continuava a escrever bilhetes e poemas, mas ela disse que quando pudesse escreveria e que estava sem tempo, ou que aquilo era coisa de adolescente mimado que assiste a muitos filmes. Ignorei de principio, porém isso se intensificou.

Ela só pensava em ganhar dinheiro e nossos assuntos tornaram-se incompatíveis até para uma simples conversa num jantar. Minha alma não suportou isso por muito tempo e fui me entristecendo.

O dialogo morreu. O carinho morreu. Não possuíamos mais as mesmas aspirações e quanto mais dinheiro ganhávamos mais sede por dinheiro nos consumia. Nosso espírito enegreceu. Brigas, discussões, invejas, coisas “jogadas na cara” e gritarias agora eram nossos “bilhetes” constantes. Antes a morte do que viver mais um ano assim.

Depois de quinze anos ela me pediu o divórcio. Então foi que eu percebi que Betty não escrevia mais nem lia mais poesia. A divisão dos bens sequer me doeu. O que me doeu foi que vi em sua gaveta.

A caneta, meus senhores. Uma canetinha de gel e glitter rosa claro, com estampa de pôneis estava guardada naquela gaveta desde quando ela se formou. Por isso não escrevera mais. Por isso não se interessava mais por literatura.

Descobri então que Betty não era a mulher que eu amei, mas a caneta da hoje advogada, sra. Dra. BETANIA GOUVEIA COSTA, antes BETANIA GOUVEIA PERGALIA. Provavelmente enlouqueci e imaginei que a alma de Betty ficou aprisionada dentro da caneta de gel e glitter rosa.

Quando a saudade bateu forte demais e minha doença terminal já havia sido anunciada pelo meu médico, num ato de sandice tentei resgatar a doce Betty das mãos de Betânia. Consegui! E foi essa caneta que hoje vos apresento a única coisa que roubei daquela casa e coloquei na caixinha vermelha que está em minha residência.

Se me declarais culpado, nada mais me importa, pois já tenho a mulher da minha vida comigo outra vez.***

Naquela hora eu parei de ler aqueles documentos e decidi ver o veredito: INOCENTE

Fui até o atendente e lhe dei o dinheiro e comprei a caneta com a caixinha. Essa é a história dessa compra, meu amor. Pode abrir agora’

Matilde com lágrimas nos olhos abriu a caixinha: havia uma caneta antiga, com estampas amareladas de pôneis, mas sem tinta:

- Por que então você deu R$ 1.200,00 por esse objeto, amor?

- Porque era tudo o que eu tinha no bolso.

Matilde colocou a caneta na caixinha novamente e enxugou as lágrimas.

Antes de dormir, já deitados, ela olhou para seu esposo e disse:

- Amor?

- Sim meu bem?

- Faz um poema pra mim?

- Tudo bem querida. Mas por que você quer um poema meu essa hora? – perguntou Antenor.

- Não tem preço.

FIM.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 21/05/2019
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