Meus dois amigos
Infelizmente aquele não era um dia como qualquer outro. Bem, não completamente. Sentado em minha mesa eu desmontava minha arma e a montava novamente, cuidadosamente limpando e passando óleo onde necessário. Apenas um projétil encontrava-se ao canto, como se assistisse pacientemente, ansiosamente.
Minha pistola não fazia parte do padrão estabelecido pela Polícia Civil. Houve um alguns incômodos trâmites pelos quais tive que passar para carregá-la, mas no fim, como delegado do departamento de homicídios minha solicitação foi aceita. Obviamente possuía várias outras guardadas em um cofre, sólido, antigo; em um lugar especialmente escondido da casa. Mas minha Glock 19 possuía um propósito específico e por isso meu cuidado com ela era específico. Toda noite, o mesmo ritual.
Na mesa também havia uma garrafa de uísque, mas eu não bebia. Fazia parte do ritual. Ela, como o solitário projétil, apenas observava meu trabalho. Ambos eram silenciosos e taciturnos, o que eu apreciava de maneira indizível.
O que me traz ao por quê aquele dia, ou noite, não era como uma qualquer. Barulhos ocos, como se objetos estivessem sendo arremessados vinham de algum outro apartamento. Gritos. Alguém um pouco mais despercebido poderia achar que era uma briga comum entre casais, mas tendo duas ex-esposas em meu currículo eu poderia dizer o contrário. Aqueles gritos possuíam ódio em seu tom. Um ódio capaz de matar.
Sim. Eu sei. Minha função como policial era interferir. Mas eu não me importava, mesmo que soubesse de qual apartamento vinham aqueles gritos, pois eu ouvia a voz feminina. Luana, médica chefe da corporação da Polícia Civil de Brasília.
No fim das contas foi o inconfundível choro baixo. Sons altos não me assustam. Os baixos sim.
Lentamente me levantei com minha arma montada e pronta para a ação agora. O projétil e a garrafa pareceram desapontados pela mudança de rotina, assim como eu. Não se decepciona os amigos dessa forma.
Coloquei-a no coldre, meu distintivo e algemas no cinto. Continuava com o mesmo terno com o qual havia chegado do trabalho. Era sempre assim. Não havia tempo para mais nada, aquela mesa com meus companheiros era atrativa demais para o resto trivial de minha vida.
Meu caminhar pela sala de estar parecia o de um condenado à caminho da cadeira elétrica e quando abri a porta já havia uma plateia me esperando. Claro. Todos esperavam que eu fizesse algo. Nunca ocorrera a estes idiotas ligarem para o 190.
Alguma senhora de cabelos loiros embraçados se aproximou:
- Por favor, Danilo. Você precisa fazer alguma coisa.
Não respondi. O apartamento ficava a apenas três outras portas de distância.
Segundos antes de minha batida na porta eu ouvi um grito de puro horror. Depois apenas silêncio.
Eu sorri. Não pergunte porque.
Assim que bati um homem rapidamente abriu a porta, o suficiente apenas para me olhar. Havia arranhões em suas bochechas, seus olhos castanhos estavam injetados e enlouquecidos, seus cabelos desalinhados e molhados de suor. Ele respirava pesadamente. Usava também um terno com marcas de nas axilas. Uma bela gravata ele carregava, dourada, porém com uma estranha mancha vermelha.
- O que você quer, idiota?
Eu sorri novamente.
- Saber o que está acontecendo.
- E o que você tem a ver com isso?
- Qualquer coisa que você queira imaginar.
Com o ombro eu forcei a porta, dando espaço para colocar meu pé entre o batente.
- Filho da puta, eu sei quem você é. Você não pode entrar aqui.
Eu não sorria mais.
- Abra.
Ele tentava manter sua posição, mas aos poucos cedia. Seu hálito exalava álcool. Não havia nada que ele pudesse fazer para impedir minha entrada.
- Não!
- Então tenha a gentileza de chamar sua esposa até aqui.
- Ela não está! Provavelmente saiu com as amigas putas dela.
Não pude evitar. Sorri belamente para aquele sujeito deplorável.
- Deixe-me explicar uma coisa. Bem simples e rápida, adequada para um sujeito de mente igualmente simples.
Ele continuava forçando a porta.
- Eu posso simplesmente empurrar e sei que você vai cair para trás bêbado como está. Eu vejo sangue na sua gravata, o que me impele a continuar. Sua esposa foi ouvida minutos atrás. Provavelmente está caída em algum canto, sangrando, o que me impele mais ainda. Se você forçar esse método vai acabar machucado como ela, ou pior.
Dei o empurrão final.
- Então chega dessa brincadeira.
A porta se abriu bruscamente com o idiota caindo para trás como previsto. O apartamento era aparentemente idêntico ao meu. Quando andava em direção ao homem, por instinto, procurei minha mesa e meus amigos.
Ele resmungava. Com o joelho em suas costas e a mão em sua cara o algemei. Agora ele chorava. Havia catarro entre meus dedos. Luana se encontrava caída entre a sala e a cozinha com um corte na testa, sangrando profusamente.
Puxei meu celular, liguei para a polícia me identifiquei e logo haveria alguém à caminho.
Dei dois socos na cara do indivíduo. Não fazia ideia de seu nome. Mais dois socos. Forcei o joelho em suas costas. Talvez tenha ouvido meu próprio dente trincar enquanto os rangia. Lixo humano.
Ele gritava ameaças. Infinitas ameaças. Talvez fosse um advogado, um empresário rico, um médico. Mas ele também era um agressor. Batia em mulheres. Um alcoólatra. A sociedade não é gentil com esse tipo de gente.
Nem com o meu tipo. Alguém perguntaria sobre as agressões à ele, mas isso poderia ser contornado.
Caminhei até Luana. Coloquei um pano em sua testa para tentar parar o sangramento.
Ah, como sentia falta de minha mesa e meus amigos.
Ela aos poucos acordava, murmurando palavras sem sentido, Mais de perto pude ver outras lesões. Não havia como sorrir naquele momento. Chamei a plateia, que o tempo todo havia ficado do lado de fora, para entrar e ajudar. Como sempre, quando as coisas se acalmam todos estão dispostos a ajudar.
Agora havia assistência o suficiente. Saí sem esperar a cavalaria. Não demoraria, o pedido de um delegado acorda muitos soldados de suas camas.
Ninguém percebeu minha saída.
Mas sei que meus amigos perceberam minha volta quando me sentei, retirei minha arma e comecei a limpá-la novamente.