Atropelamento
Pedi que ela não corresse, mas foi em vão. Não deu tempo de o caminhão frear e eu vi minha filha ser arremessada longe. O impacto foi tão forte que ela bateu com a cabeça no asfalto, fazendo seu crânio se espatifar. Pedaços de cérebro ficaram esparramados, junto com muito sangue que escorria. Enquanto corria observei o motorista do caminhão em choque. Seus olhos não demonstravam reação alguma, mas lágrimas saiam deles.
Minha filha, de apenas seis anos estava no chão. Cabeça destroçada e corpo contorcido, além da cabeça os braços estavam torcidos, parecendo até um pano molhado quando a gente torce para tirar o excesso de água, mas aquilo infelizmente era sangue.
E uma multidão se juntou. Para que não vissem e muito menos tirassem foto dela tirei minha camiseta e cobri seu rosto. Populares desavisados foram em direção ao caminhão para bater no motorista, mas eu intervi dizendo que a culpa não era dele. Como ele adivinharia que uma garotinha de seis anos surgiria do nada na frente do caminhão?
Enquanto eu esperava a polícia chegar meu celular vibrava, era a minha esposa, coitada. Peguei a menina para um passeio rápido e acontece uma desgraça dessas. Mas ela insistiu tanto em ir à pracinha brincar. E eu absolvido de tanto trabalho mal consigo um tempo para ela e quando isso ocorre... Há não sei o que pensar. Como eu poderia falar de algo tão grave com ela, a minha mulher. Não posso atender ao telefone e dizer simplesmente que a nossa menininha saiu correndo e um caminhão a pegou em cheio. Que merda de vida!
Aquilo estava me deixando sem rumo. Enquanto a polícia mexia no corpo da menina eu ficava pensando na minha esposa, em casa, e sem ter noção do ocorrido. Então decidi ligar, afastei-me o suficiente para não ver o que eu não precisava mais ver. Disquei e em poucos segundos ela atendeu. Fui direto ao ponto e desabafei. Foi duro ouvir minha esposa soluçar do outro lado da linha. Foi mais duro quando ela me chamou de irresponsável. Foi mais duro ainda quando ela disse eu era um péssimo pai.
Desabei em lágrimas. O celular eu desliguei e o enfiei no bolso lateral da calça. Poucos minutos depois ela apareceu, acompanhada por uma vizinha, mais ao fundo o marido dessa vizinha, e eu, do outro lado da via, escondido entre carros e curiosos, com medo de enfrenta-la, de encara-la e de dizer que sentia muito, muito mesmo.
Um ano se passou e minha vida mudou completamente. Sem filha e sem esposa, sim, após a morte da minha menina minha mulher resolveu ir embora de casa. Precisava recomeçar e tentar escrever uma nova página na minha vida. Depois da morte repentina da minha filha tudo virou do avesso. Depois que elas se foram minha vida perdeu completamente o sentido. Comecei a frequentar bares, coisa que jamais havia feito em toda a minha vida até então. Além de vir regularmente passei a dormir na porta de alguns.
Em pouco tempo, por causa disso, tornei-me morador de rua. A casa que foi construída com muito suor eu a perdi. O carro, idem. Mas para mim isso pouco importava. O que eu mais desejava era ter as minhas mulheres de volta; a Cecília, minha filha seria impossível, mas a minha esposa eu precisava dar um jeito, mas como?
Os anos se passaram e eu continuo vivendo nas ruas. Aqui estou eu. Passando pela primeira vez pelo local onde minha filha fora atropelada e morta. Os sentimentos não são nada bons. Na cabeça passa um filme. Dela brincando no gramado, do barulho das outras crianças, das mães conversando em volume alto... E do caminhão se aproximando. Do seu ronco forte e amedrontador, de suas rodas grandes e assustadoras, da minha filha se levantando lentamente, do seu vestidinho azul com um cachorro desenhado no peito. Tentei me desvencilhar dessas lembranças, mas era impossível. Foi fechar meus olhos para vê-la correndo e eu gritando, do barulho da buzina do caminhão, meus passos apressados e atrapalhados, do caminhão atingindo ela em cheio e eu me ajoelhando, tomado pela amargura enquanto minha menininha voava sem vida rumo ao asfalto quente.