Picadilli - Entre Suor e Desespero
Oi. O meu nome é Augusto. Augusto Madilli. Eu tenho 34 anos. Hoje é o meu aniversário. Eu nunca achei que fosse passar dos 27. Eu acho que depois de 1971, todo mundo pensou isso em algum momento, né?
Eu... Eu matei 67 pessoas. Não hoje. A maioria faz tempo. Você já matou alguém? Não, certeza que não. É poderoso, sabia? Não é bom. Não me fez mais feliz. Mas trouxe uma falsa ilusão de poder. Eu acho que... Tudo o que não é necessário, tudo o que é falso, deve ser descartado, jogado no lixo. Tem que sumir, sabe? E todas essas 67 pessoas eram falsas, assim como a sensação de poder. A falsa sensação de poder que eu tive nas mãos em cada morte. Eu não quero mais ela. De que vale caminhar por aí mentindo?
E é por isso que eu quero confessar tudo a você. O meu nome é Augusto. Augusto Madilli. Eu matei 67 pessoas e hoje é o meu aniversário.
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Eu tinha 18 anos quando senti o poder da possibilidade da morte de alguém pelas minhas mãos. Eu trabalhava há uma semana como ascensorista num condomínio de classe média. O sétimo andar chamou o elevador. Quando chegou lá, as portas se abriram. Não havia ninguém no corredor. Apertei o botão do térreo e quando as portas estavam a três dedos de fechar, Ouvi passos rápidos e uma mão atravessou o minúsculo vão entre as portas e ela se abriu automaticamente. Um homem de expressão assustada e com o rosto suado ficou me encarando por alguns segundos. Retirou algo do bolso embrulhado num tecido empurrou sobre o meu colo. Tirou do outro bolso uma boa quantia em dinheiro e jogou sobre mim.
- Suma com isso, pelo amor de Deus. Por favor. Ele disse entre suor e desespero.
Ele voltou de onde tinha saído. Eu fechei as portas e travei o elevador. Eu fiquei alguns segundos em silêncio, só olhando para um ponto imaginário no chão. Esperei ouvir algum barulho ou grito. Silêncio. Eu não havia feito nada de errado. Mas foi impressionante como o medo e nervosismo dele fora transferido a mim no mesmo segundo em que o vi. Seja lá o que fosse, agora, eu era parte daquilo. As minhas mãos tremiam. Eu puxei um lado do lenço e voltei a embrulhar aquele revolver. Guardei no bolso da calça. Eu respirei fundo, destravei o elevador e tentei ser o mais cordial e simpático possível com os demais moradores que entraram em direção ao térreo. Mas a cada segundo, tudo o que eu pensava era na facilidade com que eu mataria cada uma daquelas pessoas com aquele revolver. Primeiro iriam os que nunca me olharam na cara. Depois os que só me olhavam quando precisavam de algo. Depois, mataria as poucas pessoas legais daquele prédio. Talvez só a Dona Cristina eu deixasse viva. Diziam que ela era famosa. Ela me tratava bem e era o que bastava. Uma vez até comprou um remédio pra gripe para mim. Felizmente já era a minha hora de ir embora. Eu me troquei e quando percebo, estou descendo a Rua Augusta. Eu não costumava beber, mas aquilo me fez ter uma repentina sede por álcool. Eu não lembro exatamente como eu cheguei em casa. Eu só me lembro de acordar no sofá com a televisão ligada. Ainda com a visão um pouco distorcida, ouvi que a TV estava no jornal e logo recobrei a visão total.
- A poetisa carioca Ana Cristina Cesar, supostamente se suicidou hoje, pulando da janela do sétimo andar deste prédio. Fãs, amigos e parentes fazem neste momento uma vigília na entrada do prédio, onde depositam flores, fotos e poemas.
Naquele mesmo segundo foi que eu me dei conta de que: PRIMEIRO - Eu possivelmente matei a única pessoa que me tratava bem. SEGUNDO - Eu não tinha sofá, muito menos uma TV.
Eu olhei para o teto e quando olhei em direção a porta do banheiro, um rosto me encarava de olhos penetrantes. A poça de sangue escuro ao redor do rosto daquela mulher fazia menos sentido Ainda. Eu não a conhecia. Eu não conhecia aquele lugar. Eu só queria que aquilo fosse um sonho ruim. Desliguei a TV e caminhei de meias até o banheiro. Mesmo morta, ela estava linda. Seja lá quem fosse. Eu olhei pela janela e parecia ser o primeiro ou segundo andar do prédio. Então decidi fazer o que qualquer pessoa sensata faria. Entre garrafas de álcool e destilados, encharquei paredes, teto e piso daquele apartamento. Pelas condições daquele prédio, eu esperava que dessem como início do incêndio, um curta-circuito ou algo do tipo.
Do outro lado da rua, alguns quarteirões dali, eu tocava o revolver no bolso da calça e observava o fogo consumindo completamente o prédio de 12 andares, que em alguns minutos se desfez como isopor. Eu não tinha como saber também que no andar de cima havia um reservatório de combustível ilegal.
Sessenta pessoas morreram. Você realmente achou que eu teria matado 67 pessoas com minhas mãos? Que absurdo. Foram apenas sete diretamente, mas esse bônus de sessenta pessoas eu coloquei na conta também. Afinal, entre suor e desespero, cada gota conta.