Crianças
Helena era uma mulher simples que se casou aos trinta anos logo após ter o seu primeiro filho. O segundo veio dois anos depois e, assim que a licença maternidade acabou, voltou a trabalhar mesmo com um aperto no coração. Ela era técnica de laboratório e recebia diversos alunos todas as semanas para dar aulas de anatomia. Em seu laboratório se encontravam várias partes do corpo humano preservados em formol, então ela sempre fazia uma aposta mental de quantos alunos iriam passar mal a cada visitação.
Quando o seu filho mais velho tinha cinco anos, ela descobriu sobre as traições de seu marido. Houve uma intensa luta entre largá-lo ou continuar com ele somente por causa dos seus filhos. Essa não é uma decisão fácil de tomar, mas somente porque ela achava que essa decisão poderia alterar de forma negativa a vida de seus filhos e isso entrava na cabeça dela principalmente porque era um dos argumentos mais fortes do seu marido. Mesmo assim, ela percebeu que a sua sanidade não valia a pena ser posta em jogo já que isso sim poderia destruir os filhos dela. Ela se divorciou do marido, mas ele não aceitava isso. Por causa de uma visão de amor hollywoodiana, ele acreditava que poderia reconquistá-la se fizesse um grande gesto de amor. Infelizmente, ele só tomava coragem de realizar isso quando estava bêbado. Logo após sair do bar, ia até a casa dela e começava a gritar como a amava. Todos os dias ela saia e o expulsava. Ela tinha medo que algum dia ele fizesse alguma coisa pior ao ser rejeitado além de esbravejar que um dia ela voltaria a ser dele. Assim, ela passou a ir expulsá-lo com uma faca escondida embaixo da blusa. No sexto dia seguido, após ele a xingar de diversos nomes, ela tirou a faca e prometeu que, se ele voltasse àquela casa, sairia em um caixão. Ele duvidou e perguntou se, covarde como ela era, teria coragem de usar uma faca para além de preparar o jantar. Essas últimas palavras ecoaram por sua mente e suas sobrancelhas tremiam de raiva. Ela inclinou levemente a sua cabeça para a direita e a sua mão que segurava a faca se movimentou lentamente em direção a barriga dele. A lâmina, afiada do jeito que estava, entrou sem resistência nenhuma e perfurou o estômago do seu ex-marido. Após o primeiro movimento lento, os seguintes foram rápidos. A sua grande satisfação foi ver a cara dele de incrédulo enquanto a sua boca se enchia de sangue sem nem conseguir gritar por socorro. Quando ele não tinha mais forças para se escorar nela, ele caiu e ela parou de esfaquear. Em sua antiga casa, ele morreu.
Ela sabia que não poderia chamar a polícia, pois, naquele momento, ele não representava ameaça real contra a vida dela, então ela teria que se livrar do corpo. Era mais fácil do que criar uma história elaborada para não ser presa, afinal ela só precisaria dizer que ele esteve lá, mas, assim como nos outros dias, ela o expulsou e ele foi embora. Se essa história desse certo, o preço de mercado da casa também não cairia. Porém, para isso, ela precisaria se livrar do corpo de alguma maneira. Demorou para que a melhor solução viesse a sua cabeça: o laboratório em que dava aulas. Ela aproveitou que os seus filhos estavam dormindo, pegou o corpo e passou toda a noite lá desossando e separando os órgãos. Substituiu tudo que podia das partes humanas que havia no laboratório pelas partes novas e colocou tudo que sobrou para dissolver em ácido como parte de um novo estudo seu. Voltou para casa perto do nascer do sol e dormiu as últimas horas que ainda podia.
Mesmo sendo poucas horas, ela se lembra de ter sonhado com tudo que havia ocorrido naquela noite. Ao contrário do que seria para muitos, para ela era um sonho bom e relaxante como se tivesse realizado um grande feito. Acordou com um sorriso no seu rosto e preparou os seus filhos para a creche com grande entusiasmo. A segunda noite, por outro lado, não foi tão boa. Ela não conseguia dormir e assim não podia reviver o seu momento. A raiva começou a se apossar dela a cada sono que não conseguia ter e a cada sonho que não era aquele que ela queria.
Certa noite, cansada de esperar que o sono viesse, decidiu por um fim no seu problema. Ela achava que tinha a solução perfeita, então escolheu por a prova. Saiu de casa enquanto os seus filhos estavam com a babá, pegou um carro e parou perto de uma ponte. Ficou esperando ali até achar a sua vítima perfeita. Foi então quando viu um homem de uns trinta anos aparentemente sobre efeito de drogas alucinógenas. Caminhou lentamente em direção a ele com a faca escondida na sua manga esquerda. O homem parecia nem perceber a sua presença enquanto balançava a cabeça para todos os lados freneticamente. Os olhos dela brilhavam enquanto ela percebia o que estava prestes a fazer, antecipando o prazer de se saciar a sua abstinência. Ela tirou a faca e a empunhou com a mão direita e o atingiu no peito repetidas vezes. Após terminar, o seu plano era jogá-lo da ponte, mas não tinha força o suficiente para isso. Então trouxe o carro para perto do corpo e o colocou no porta-malas. Levou para o laboratório e se livrou do corpo da mesma maneira que havia feito com o ex-marido. Quando terminou tudo, acabou dormindo lá mesmo e teve um sono perfeito que só foi interrompido pela babá ligando e avisando que já estava ficando tarde.
A partir daquela noite, ela só conseguia dormir bem no laboratório e nunca em casa. Ela sabia que o que tinha feito não era certo, mas não conseguia negar que era a melhor sensação que já tinha sentido em sua vida. Mesmo assim, entrou em um acordo consigo mesma de nunca mais matar para que assim os seus filhos não crescessem sem uma mãe. Se quisesse dormir em casa nos finais de semana, tinha que levar formol para recriar o cheiro dominante do seu laboratório. Isso dava mais do que certo. O cheiro passou a lembrá-la da sensação de ter matado e passou a substituir sensação. Por baixo de toda a tosse, espirros, lágrimas e dor que aquele cheiro tóxico causava, havia o prazer inebriante que superava tudo isso. Ela passou meses usando isso e aumentando as doses gradualmente. Inicialmente, ninguém desconfiava, mas depois passou a ser cada vez mais frequente as perguntas. Até que ela se trancou em sua casa com as crianças durante um mês inteiro. Segundo os e-mails que ela enviava, todos da casa haviam pego uma doença extremamente contagiosa e tinham que ficar de quarentena.
Os vizinhos desconfiavam e os gritos das crianças que imploravam para mãe não dar os seus remédios não ajudavam muito. Certa madrugada um deles não aguentou mais e chamou a polícia por causa desses gritos suspeitos. A polícia veio e ela não os deixou entrar, então os policiais começaram a tratar como um caso de sequestro e cárcere privado. Cercaram a casa e começaram a tentar algum tipo de diálogo, mas sem sucesso. Quando um policial chegou perto da porta principal para ver se conseguia enxergar alguma coisa pela janela, ele ouviu um grito de socorro do filho mais velho. Sem pensar duas vezes, arrombou a porta e entrou com a arma em punho na casa. Passando pela sala de estar, viu o filho mais novo deitado no sofá. Ao checar o seu pulso, viu que já estava morto. Mesmo tendo a sensação de que havia falhado, continuou a procurar o filho mais velho. Ele espiou lentamente por uma porta e viu a escada que dava acesso ao segundo andar. Ela era coberta por um carpete vermelho escuro e tinha dois lances separados por uma pequena área plana. Lá estava a mãe e o filho. Ela estava com um pano sobre o nariz e o transferindo a cada segundo para o nariz do filho. Quando ela o tirava de seu rosto, era possível ver a sua boca toda cheia de feridas assim como a do filho.
O policial havia ficado sem reação ao ver aquilo, mas logo caiu em si novamente. Saiu de seu esconderijo, apontou a arma e ordenou que ela largasse o menino. Com o pano sobre o nariz do filho, ela chorava. Implorava para que o policial fosse embora e explicava que ela estava impedindo que o filho ficasse igual a ela. Pelos olhos opacos dela, o policial já sabia que ela estava longe da sanidade e paranoica. No mesmo segundo em que o menino desmaiou, ele atirou em Helena. Embora tenha tentado todas as técnicas de ressuscitação, o filho dela, assim como toda a família, morreu naquela casa.