Vítimas de Si - versão completa

Gota a gota, a chuva parecia querer rasgar a terra naquela tarde. Mas Selina Castelão não se amedrontaria com nada, desembarcou do avião, no aeroporto de sua antiga cidade, esperou as malas, e sem molhar um só dedo de seu terninho de veludo lilás, ou seu par de scarpans, chamou um táxi. Adorava chuva, apesar dela esconder o sol, e ocultar o brilho de suas madeixas em inúmeros tons de amarelo e laranja, apreciar a água voltando a terra em tormentas fabulosas, era um capricho que sempre se dava, mas naquela ocasião era diferente, estava retornando após de dez anos fora do país, depois de ter uma vida de intensa luxúria, libido, promiscuidade, e crime total, retornava ao mundo dos ‘certos’... Não que fosse ser certa, mas sim que fosse fazer dos outros com certeza incertos!

Parou num café, o mais elegante, a fachada de letras de forma douradas foram admiradas solenemente por Selina. Era ponto novo, não conhecia, tinha de conhecer. Bebeu café com hortelão e gelo, mais distante o olhar da garçonete abismada pelo pedido, a respiração exorbitante em ver alguém beber daquela exótica combinação quase lhe fazia saltar a gravata xadrez do uniforme. Selina, no auge dos seus cinqüenta e um anos, mais do extremamente bela para sua idade, sem falar em atraente, sem falar no porção de sedução, sentou-se no balcão do estabelecimento, ao seu lado um homem de terno bebendo água com gás chorava aos soluços. Com uma inocência de virgem Maria, ela dirigiu a palavra:- Por que um homem tão bonito está chorando?

- Problemas. – respondeu com sutileza contendo o soluçar. – problemas pessoais.

- São coisas que todo mundo passa. – rebateu a embriagada de café com hortelã. – mas se os guardarmos, ficam bem mais impossíveis de se resolver.

Ela queria mais, aquele estranho merecia ser ouvido, uma boa crônica lhe interessava. Ele tomou ar para falar, os grandes olhos azuis dela vidrados nas pupilas inchadas e vermelhas, cacos de copos se estilhaçando aos fundos, de um possível acidente despertou sua atenção repentina, piscou rapidamente e fez de conta que nada era, e acompanhou as suaves palavras lhe escaparem dos lábios:- Eu vou ter que fazer uma coisa que eu não gostaria.

Estava cheio de mistérios e frases de filme do 007, só ele mesmo o ajudaria. Selina ignorou tudo qe ouvira, afinal, egoísmos a parte, o problema era dele! Pagou a conta, beijou-o na testa e saiu do café carregando sua mala, pronta a apanhar outro táxi a casa da irmã.

Quando chegava a mansão curtiu com lascívia a chuva traçar com suas gotas, efêmeras imagens no vidro do carro. O casario era o mesmo, reformado ganhou novas cores, um rarefeito diferente,o firo lá era muito mais frio, e não pela falta de calor humano, mas por castigo do clima, era ali que vivia uma espécie de inimiga sua: Valquíria Castelão, sua sobrinha, filha de Pietra, sua irmã já falecida. Morava ela sozinha na residência com os criados, Selina a telefonou algumas vezes, mas não se suportavam muito, eram oponentes declaradas, segundo a governanta, com quem se comunicava frequentemente, visitas circulavam praticamente o dia todo, e Valquiria não trabalhava, pois não necessitava, gozava da fortuna da família, fortuna esta que Selina, póstuma a anos de ausência e tolerância a família voltava para buscar, não somente sua parte, mas tudo. E bem lembrava ela, de antes de partir, a irmã revelara que havia um tesouro naquela casa maior do que todo dinheiro incrustado ao sobrenome Castelão, de muita fama e prestígio pelas redondezas, a fama e prestígio continuavam, mas sem motivos, era tudo apenas fachada, sobras de um passado bom, pois estas duas, sobrinha e tia Val e Sel, como eram mais conhecidas, aprontavam muitos escândalos, e eram muito extrovertidas, era seu modo de ser feliz, e os outros entendiam como loucura e vagabundagem. Esperou no carro, e do seu celular telefonou para a casa, dali dava pra ver que estava em intenso movimento, muito entra e sai, lama no jardim, as flores sem vida pela tempestade. Muitas luzes acesas, barulho, e havia demasiada decoração onde se era possível ver... Desconfiou de festividades... A governanta atendeu o telefone com sua voz forte inconfundível. – Andreza, é Selina.

A criada pasmou em silêncio, Selina quase num riso retomou o discurso: - Eu estou num táxi, aqui no portão, por favor me consiga um guarda-chuva e venha me receber decentemente minha querida, estou com saudades.

- Sim, senhora, minuto. E menos de um minuto depois estava Andreza aos atropelos sobre o salto descendo de traje fúnebre a escadaria de entrada, os olhos esbugalhados, onde conseguiam ir para ver Selina dentro do carro, á mão um guarda-sol.

Nos países onde morara Selina aprendera e tivera de praticar tudo no mundo existente sobre etiqueta, e também tudo sobre podridão e chulo. Mas ligar e avisar que chegara não era de seu feitio, a surpresa era tão mais excitante!

Após demorado abraço sob o guarda-sol, entraram na mansão, e tudo continuava igual, apenas mais velhos, a arquitetura clássica e fantástica, os salões imensos, o hall, os quilômetros de corredores e escadas, a decoração, os detalhes, o sinônimo da família quatrocentona que sempre foram, aquele casa, vivida por aquelas pessoas era o retrato disso, no passado, no presente, em qualquer dos tempos e circunstâncias, sempre seria! Tudo brilhando, de uma limpeza somente vista em cenas de TV, e ao colocar o pé direito, seguido da mala no tablado de mármore, teve certeza de que sim, aconteceria uma festa naquela casa. A governanta aflita perguntou:- Mas por que está aqui?

- Cansei de andar na estrada, vou parar por aqui, descansar, e esta casa também é minha, vou morar aqui a partir de agora.

- Dona Valquíria já sabe?

- Não, mas deve desconfiar, devido a última vez que liguei, e você sabe que adoro fazer surpresas. E tocando no assunto, o que vai acontecer aqui? – ela já havia visto o bolo com dois bonecos representando noivos, mas queria ouvir da boca de alguém mais presente.

- Dona Valquíria vai se casar senhora. Está se casando nesse momento.

- Que interessante, e tentar me avisar vai matar não é mesmo?

- Não sabíamos nunca seu paradeiro senhora, era sempre a senhora quem ligava. A cerimônia já deve estar acontecendo, a festa vai ser aqui.

- Qual é a igreja?

- É a matriz senhora.

Precisas informações, preciso e precioso momento. Partiu para a garagem, escolheu o Lamborghini que fora de sua irmã, continuava impecável, apesar de parado desde que ela morrera. Pediu as chaves ao responsável pelos carros, o homem negou por não haver antecipada ordem da patroa, e ela mesma pegou as chaves, dizendo firme em seus olhos que ela agora também era sua patroa, e quando voltasse seria demitido, deixando a malas no meio da sala para que Andreza as acomodasse em seu quarto, pisou inspirada no acelerador, e tendo o mapa na alma e a vontade na mente, em vinte minutos chegou. O luxo o glamour dos automóveis do estacionamento e dos arredores da catedral denunciavam o quão chique era a cerimônia, não estava a altura, mas para o que pretendia fazer, era melhor mesmo não estar... Todos em pé, lágrimas, lenços, chapéus quase ao teto, algumas rosas já murchas, as daminhas cansadas elevadas ao sono.

Selina entrou discreta, o padre proferia exclamações ao casal, ladainha de cerimonial cujo muito bem conhecia, e até repetiu as palavras, com a mesma pausa de tempo que o padre, conhecia o padre, conhecia muitas pessoas na igreja. Andou um pouco em direção do altar, sua sobrinha estava linda, num gesto sem porque, para puramente chamar a atenção, ela aplaudiu, e chamou a atenção! A reconheceram, muitos, muitos, muitos, muitas, muitas, muitas... O espanto num corar de faces, mas o grande espanto foi de Selina, ao notar que o noivo era o homem com quem conversara na lanchonete.

Será que ele chorara pelo que exatamente ela pensava? Não seria apenas parecido com aquele? Não, era o próprio, imensa coincidência.

Valquíria estava completamente linda, era bela naturalmente, com toda aquela produção típica de noiva a graça multiplicara.

- Eu estou morta Valquíria? – meia igreja caiu em gargalhadas.

- Infelizmente não! – esbravejou a sobrinha sem qualquer alteração na expressão, como se tivesse acabado de ver a tia. – Padre acabe de uma vez com essa cerimônia, porque ela não vai nos deixar em paz.

O padre, pasmo, consentiu com o pedido inusitado. uma criança chorava ao fundo do templo, as mulheres em seus vestidos brilhantes estavam já cansadas de tanta pompa. Enfim acabara a cerimônia com um beijo insosso, curto, sem intensidade... Não houve chuva de arroz, cumprimentos mortos a Selina, pessoas do passado, como algumas estavam bem, outras velhas, outras tão bonitas, doentias, apáticas, o bebê chorão de igreja passou no colo da mãe dando-lhe um tapa no topo da cabeça, continuou a sorrir e a retribuir os cumprimentos, em marcha a sombra da sobrinha. Não fora um tradicional casamento, sim! Não! Não fora, a tia indesejada não deixara ser.

Mesmo assim, tudo estava comprado, as contas estavam pagas, a decoração impecável, os empregados em seus postos para servir, a festa haveria ainda que em pensamentos, e não seria, na mentalidade de Valquíria, sua tia recém chegada dos Estados Unidos que estragaria tudo, Oh bobagem! Quem era ela para fazer isso? Ninguém, apenas sua odiada tia.

Selina chegou primeiro do que todos os convidados, roubou alguns salgadinhos e virou refrigerante na toalha, propositadamente, os cridos loucos de raiva, num último gesto passou o dedo na cobertura do bolo... Unnn, baunilha, que delícia!

Preparou um banho com tudo que havia direito, da ducha generosa era possível ouvir o barulho lá embaixo da gente agitada curtindo a festa.Desfez as malas, na sua bolsa de mão havia ainda um frasco de descongestionante nasal, dois envelopes de efervescente anti-ácido, e algo que não usava há tempos: seu estilete cor-de-rosa, simpático, harmonioso e discreto. Jogou tudo no criado mudo. Quando pronta, desceu e degustou mais os quitutes da comemoração, cínica cumprimentou a noiva de beijo nas maçãs do rosto. Algumas pessoas da igreja ainda a temiam com olhares, como se fosse um animal selvagem solto naquele salão, a estes ela sorria, quase rindo num gesto absurdo e louco. Era louca, a louca mais consciente dos próprios atos.

O noivo era tão bonito, tão simpático, ‘envelopado’ naquele terno italiano que provavelmente Valquíria mandara fazer em algum estilista após visita ao ateliê, era chata pra este tipo de coisa, era igual a tia neste aspecto.. pensando bem, em muitos aspectos, se identificavam em muitas coisas, em quase tudo tinham as mesmas opiniões, os mesmos gostos, eram fortes, as personalidades gêmeas, talvez por isso que não de davam muito bem, porque se os opostos que se atraíam, elas seriam distantes para o resto da vida, porque eram muito parecidas! Ela deu uma volta pela ampla residência, seus saltos ecoavam nos salões de mármore vazio, olhara-se no espelho de um dos vários em um corredor: estava bonita ainda, a juventude fora boa com ela, a vida em suma é que não fora, precisava retocar a maquiagem, mas estava tudo lá embaixo no quarto, longe, ninguém a estava vendo, não precisava realmente. Estava na verdade era com saudades da irmã, aquela casa não tinha a mesma vida sem ela, sua vida não era a mesma sem ela. Amavam-se divinamente, as melhores irmãs do mundo, uma era tudo que a outra poderia desejar, e desde que começara a viajar mundo afora, passara a temer com que a irmã morresse e não estivesse por perto para fazer a última despedida... E tudo isso que mais temia aconteceu, ela morreu longe de uma doença que já há tempos a acometia, morreu longe da saudosa irmã. Esta foi apenas avisada por um telefonema ruim, palavras ofuscadas por ruídos maiores, apenas quatro palavras “Sua irmã Jucélia faleceu.” ... SUA IRMÃ JUCÉLIA FALECEU... S-U-A-I-R-M-Ã-J-U-C-É-L-I-A-F-A-L-E-C-E-U... Era isso, não sabia quem havia ligado, sabia somente que era um homem, seria verdade? E estava tão longe, na Europa, e não havia nem sequer uma remota possibilidade de viajar imediatamente para o Brasil e vê-la; vê-la morta!

Perturbou-se com o telefonema, os nervos explodindo em todo ser, processava as informações, repetias as palavras baixinho focando o nada, sentiu o gosto salgado das lágrimas invadindo o paladar. Uma garrafa lá embaixo se espatifava ao chão, foi surpreendida chorando em frente ao espelho... Lágrimas. O que eram lágrimas? Apenas gotas de sal, e só.

Mas algo de bom acontecera antes que a irmã partisse. Numa tarde de domingo, no jardim daquela mesma mansão onde estava agora, a irmã falara á ela e a sobrinha:- Eu quero que vocês sejam unidas caso algo aconteça comigo no futuro, pois existe um tesouro que é das duas, uma herança muito grande, e vocês necessitam cultivar, está nesta casa esta herança, é de vocês, basta que sejam unidas!

E era esse o motivo principal de sua volta ao lugar, precisava achar o tesouro, longe da sobrinha. Porém uma parte tinha de cumprir, de ser unida com a sobrinha, e estava ali pra isso, para cumprir a sua parte, e faria o necessário (e desnecessário também) para que Valquíria cumprisse a sua.

Era hora de curtir a festa, antes de pensar em tesouro, de procurá-lo, de batalhar nesta guerra de feras loucas e selvagens deveria curtir a festa. Desceu calmamente, apenas ela, os intermináveis corredores, as cortinas limpas e pesadas, os saltos gritando no mármore, e o noivo da sobrinha com outra mulher... O noivo da sobrinha com outra mulher? Ei, isto não era normal, Selina deu uma risada perdida quando viu ele, e aquela mulher, a filha de uma amiga sua ali entre beijos encostados na parede. Nem havia se casado, já estava chorando em um café de luxo, mal havia se casado e já estava de casinhos embaixo do nariz da esposa. Era demais, além de ficar rico, moraria em uma mansão de época maravilhosa, e já estava, na noite do casamento, ao qual mal saíra da igreja, aos beijos com outra mulher. Era uma bela mulher, filha de Henrietta, amiga da família, vagabunda! Vagabundo! Ele definitivamente não sabia quem realmente era a mulher com quem recém casara, Selina imaginou o que aconteceria se ela visse, riu novamente, e mais uma vez o casal ‘muito ocupado’ não escutou. Selina esqueceu a graça e magoou-se, extremamente ferida ficou, sua família não era digna daquele tipo de coisa, Val estava feliz por haver se casado, nem desconfiava do que estava acontecendo neste momento, e ele já sendo infiel! Imagine no futuro o que será então, haverá um arem de prostitutas na suíte dos cônjuges? A raiva falou mais alto, e o nome sujou cutucou sua alma, tomou a ação, porque agia diretamente na sua corrente sanguínea, era o momento de colocar á ativa o estilete rosa choque.

- Assim seu terno vai ficar amarrotado meu querido.

Quase caíram ao ouvir o “inocente” estampido da senhora. No fremente beijo, saliva pingou ao chão. Porque não falavam nada, apenas fitavam a intrusa como se fosse um fantasma, uma aparição horrenda?

- Você volta para a festa. – Disse ao novo ‘sobrinho’. – e Você, sua vagabundinha barata, vai para casa, ou eu coloco no ouvido de todos, inclusive da sua mãe, o que acabou de fazer.

Como a ordem de um general em tempos de guerra, obedeceram, mas o que interessava era o noivo, ele quem sofreria, ele morreria! Seu passo de voltar a festa era apenas para Selina alcançar no quarto a arma do crime. E ele nem alcançara o salão principal, a mulher, que agora era seu pesadelo, estava as suas costas, o ordenando para segui-la.

Como um mapa na sua mente, foi diretamente a um dos escritórios, o que costumava usar quando estava hospedada, e tudo continuava lá, até a agenda telefônica aberta empoeirada. O assento macio da poltrona, e seu porta canetas de coruja, que ganhou de amigo secreto do cunhado há muitos anos.

Ele sentou na cadeira, num sinônimo de professora o aniquilou, atrofiou todos os músculos com seu olhar imponente. Era hora de castigar o aluno!

Explicitou o estilete e seu fio e corte ofuscante.

- O que você pretende fazer? – O medo visível na verbalização.

- O que você pretende fazer meu caro? Está se dando conta que casou-se com uma mulher maravilhosa, rica, de bom nome, e que vai morar nesta mansão, que vai ser praticamente um lorde, e ter toda mordomia que quiser?

- Sim, e exatamente por isso eu me casei.

Pronto! Era o que precisava ouvir para ter certeza de que estava fazendo a coisa certa, sentia o sangue dele quente escorrendo em suas mãos. Como Valquíria se deixara enganar por aquele traste? Logo ela!!!

- Seu gigolô! Mesmo morrendo de medo, você se atreve! Qual seu nome?

- Ricardo.

- Unn, o Ricardão! Ele fez menção de se levantar, ela evitou. - Fique parado, Não mova nada. E porque estava chorando na lanchonete? Arrependimento?

- Sim. Vi que não estava fazendo a coisa certa, mas depois me arrependi de me arrepender.

- E você tem motivos especiais para querer dinheiro fácil? Precisa realmente?

- Não, é apenas luxo!

É, ele estava pedindo o óbito. No silêncio e aconchego do ambiente ela respirou fundo, segurou firme o estilete, há um bom tempo não fazia aquilo, mas não perdera a mão certeira, precisava enganá-lo.

Ali sozinhos, a ocasião necessitava de uma morte, de mais agito. Ela deu as costas, ele levantou-se num pulo, de súbito ela virou-se e enterrou a lâmina no peito dele, acertara no coração, mas para fazer sem erros, retirou e acertou novamente, no pescoço... Estava lavado em sangue, seu terno tão bonito sujo do rubro fluído. Era uma pena. Ele não fizera nenhum burburinho, apenas suspirou e de olhos grudados nos olhos de Selina, ele morreu, caindo sobre a cadeira, quase quebrando, devia estar doendo, o sangue continuava a escorrer, Selina foi ao banheiro do escritório e lavou as mãos.

Quando retornou, de porta ainda trancada, maquinando o que faria com o corpo, alguém bateu a porta.

- Ricardo? – Valquíria queria o marido. – Ricardo se você está aí abra a porta meu bem, precisamos cortar o bolo. Os convidados estão esperando.

Tanta coisa, tantas lugares, e ela estava procurando logo ali?

Maldita, e Selina não podia nem suspirar, nem xingá-la de tudo que estava vindo a sua cabeça. Engoliu os insultos, esperou, até que ouviu seus passos desaparecerem. Lavou todos os utensílios, colocou as chaves na mão do cadáver, e em euforia com seu espírito alpinista escalou as janelas, do terceiro andar até o térreo, tomou fôlego, adentrou novamente na festa, ajeitou os cabelos nas costas de uma colher de prata, pediu um cigarro a um velho desconhecido:- A senhora só precisa de um cigarro? Se quiser eu posso lhe dar algo mais, eu posso lhe dar tudo que quiser. – sussurrou em seus ouvidos.

Selina sedutora respondeu em seu ouvido: - sim, eu quero, quero mais... Dê-me o fogo também. – O velho lhe entregou esperançoso uma caixinha de fósforos nova.

Selina mudou completamente a expressão:- Ok, agora dá o fora! E afastou-se pondo em brasa o objeto de fumo, baforando no vácuo, tentando descrever desenhos na fumaça. Val chegou, dançando entre os convidados, fingindo curtir o som da ótima banda. Encarou a tia:- Você sabe onde está meu marido? - Quase num sussurro ela repetiu:- Você sabe onde está meu marido? Eu tenho quase certeza de que sabe sim. An?

- Ele morreu. eu acabei de matá-lo, a sala trancada, seu corpo está lá.

os olhos de val foram até a alma de Selina: - Ok, repita as últimas palavras daquela forma que só você sabe fazer, para que eu acredite.

- Seu corpo está lá. - repetiu as últimas palavras como a outra pedira, tomando um gole de uma taça ali por perto.

Então Val acreditou, sim era verdade, seu noivo estava morto. Ela roubou o cigarro das alheias mãos, e tragou com todas as forças, despejando a fumaça na face a sua frente, amassou a brasa deste no braço da tia.

- Sua vagabunda! - sussurrou a vítima, esfregando o local queimado.

- Cala essa boca, não me importa que você é mais velha, esta merda social chamada respeito não existe entre nós duas, porque se existisse você não teria matado meu marido. - estas palavras foram gritadas, e meio mundo parou naquele momento para ouvi-las. Até mesmo a banda parou, o palco era elas, o show estava nelas!

- Satisfeita? - Você conseguiu o que queria? Chamar a atenção, já não basta este cabelo vermelho berrante, estar vestida de noiva e ainda precisa berrar?

A governanta foi de encontro ao sinistro par, totalmente indesejável por parte dos estranhos, queriam era ver um bom barraco e esta impediria, entretanto Val ignorou a aproximação da criada e subiu ao palco tomando o microfone do vocalista: - Senhoras, e senhores, meus amados convidados, eu sinto muito, mas a festa acabou, todos tem que ir embora agora, porque eu preciso velar e enterrar o corpo do homem com que eu acabo de casar... - E antes que alguém manifestasse qualquer reação ela prosseguiu. - Sim, porque acreditem ou não, ele morreu, neste momento em que eu estava esperando ele para cortar o bolo, ele está morto, isso não é ótimo? - Algumas senhoras desmaiaram, deviam ser parentes, outros sentaram, uma empregada deiou escapar um gritinho, enfim o burburinho foi geral. - Então gostaria que todos comparecessem ao enterro, porque pensando bem haverá apenas enterro, sem velório, haverá salgadinhos e distribuição dos presentes que ganhei de casamento... É só, obrigado e até logo.

Sem entenderem muito bem, evacuaram a zona de guerra, Selina sentou a ver os serviçais limparem o local, a noiva subiu já abrindo o vestido e tirando a grinalda, a banda se desmontando, roubando alguns salgados... Num último gesto a jovem informou:- daqui a meia hora, sobe no escritório onde ele está, vamos conversar.

Num gesto de cabeça e nenhuma tensão Selina afirmou, dado os trinta minutos subiu ao escritório, quase quebrou o salto ao pisar no primeiro degrau da escada. Valquíria já estava lá, trajada de ser humano simples, embora com o brilho especial que sempre mantivera, nenhuma lágrima de vestido rosa tomara que caia esperava a tia ao lado do corpo com um molho de chaves em mãos, impaciente, como se estivesse sozinha, não dando a mínima para o marido morto. Uma música clássica, o ‘bolero de ravel’ fazia a trilha do momento.

- Viu o seu porta-canetas que ganhou do papai?

- É claro que vi, foi a primeira coisa que vi quando entrei... A minha agenda também!

- E por acaso, existe alguma explicação pra isso, ou foi apenas prazer? – Valquíria foi direto ao ponto insinuando o esquife com os olhos.

- Claro que teve, tenho prazeres loucos, mas com certeza este não é um deles...

- Foi com o estilete rosa choque?

- Foi, você sabe que foi, agora deixa te contar uma história, o motivo, o acúmulo de motivos por qual tudo aconteceu...

O bolero de ravel, seguido da quinta sinfonia de Bethoven, Franz Haydn, Luchesi, Weber, clássicos, violinos stradivarius. As consoantes rebatendo nos pilares, as vogais percorrendo os corredores.

Val não fez uma pausa, nenhuma interrupção, não alterou-se sequer um segundo.

- Agora você entende?

- Vindo de você entendo, mas também não tinha importância, eu não o amava. Fazia um mês que tínhamos nos conhecido, tudo foi armado ás pressas, porque desconfiei que você vinha...

- Ah então o problema é comigo?

- Você está cansada de saber que sempre é o problema, nós sempre somos o problema nesta família. – Valquiria sentiu uma profunda vontade de abraçá-la ao proclamar o dito. Conteve-se – Mas você está aqui por causa daquele tesouro. E meus planos não deram certo. Eu achei mesmo que você vinha e resolvi casar pra depois sair em lua-de-mel e nunca mais voltar, daria um jeito nele no meio do caminho, eu viajava amanhã, levando o tesouro, mas você tinha que chegar. – Valquíria fez carinho nos cabelos do defunto.

- Para com isso, ele está morto. Mas foi bem pensado, e o que é o tesouro, está escondido onde?

- Está guardado, é pequeno, e sabe do que mais? Acho que talvez nem seja dinheiro. É possível que seja uma jóia, algo pessoal do tipo, e nada do que a gente imagina.

- Você nunca viu? Ah Valquíria deixa de ser retardada!

- Não, não, esqueceu que ela disse que deveríamos abrir juntas? Então, já que foi palavra da minha mãe, eu cumpri, e esperei como ela pediu...

- Então vamos lá. – Selina levantou-se animada e puxou a sobrinha pelo braço.

- Não, não é assim, ela disse que tem que ser num caso de estarmos precisando!

- Eu estou precisando... Não sou mais rica como antigamente querida, meus maridos milionários morreram todos e vai demorar até conseguir outro.

- Esta casa também é sua, o meu dinheiro também é seu... E a caixa onde está trancada, e não tenho idéia de onde está a chave, desconfio que mamãe a enterrou com ela. E não estou afim de quebrar a caixa.

Selina Castelão não acreditava nas palavras dela, a olhou atarantada.

- Eu sei que parece absurdo, parece não, é um completo absurdo, mas não posso fugir da verdade. E no mais a curiosidade não me persegue, até o momento que precisar deixarei lá. Eu vejo como algo simbólico, de respeito pela minha mãe.

- Sim, de respeito por Jucélia. – Repetiu a mais velha calculadamente, acalmando-se, conformando-se... (teria de esperar e talvez nem fosse dinheiro, mas o dinheiro da sobrinha também era o dela)

Em instantes toda cidade sabia do falecimento do pobre noivo, jornais locais e regionais noticiavam, toda imprensa de alguma forma estava lá... nem que fosse pelas fofoqueiras de plantão. Por falar nisso, várias delas estavam lá, conhecidas, desconhecidas, O caixão fechado, ele não tinha parentes por perto, não se daria o trabalho de avisar aos distantes. Se casara com ela por aqueles cruciais motivos, não merecia nenhum funeral digno de gente, estavam fazendo mais do que deviam, e ele continuava promovendo despesas, já que os serviços não foram de graça, e um novo terno foram indispensáveis (embora o caixão tenha sido fechado para o velório, alguém poderia ver o ferimentos no pescoço). Os empregados estavam todos condicionados a contar um causo absurdo e barato de que o moço tivera um ataque cardíaco naquele escritório, Selina, e Valquíria interprtevam suas personagens sofredoras, insistentemente choronas, que a qualquer pergunta (principalmente polícia e órgãos afim) dramatizavam “a dor da perda pelo ente querido”. Todo o teatro não durou mais que duas horas,m era já madrugada, as protagonistas estavam exaustas, e de preto, óculos de sol, as 4 da manhã de um domingo enterraram o corpo, Selina torceu o pé no degrau antes de sair, apoiou-se em Val para não cair, acabou que caíram as duas, rolando, descendo de bunda escada a baixo, ambas seguraram o riso e como que ensaiado olharam-se e soltaram um guincho de choro, continuando o cortejo. O cemitério parecia não chegar mais, e não era anexo a igreja como sempre esperado em cidades não muito grandes. Selina aproveitou para reconhecer a área já habitada, os lugares por onde namorara, escondera-se, divertira-se, fora feliz, e estava voltando a ser! Selina e Val perceberam que era possível serem amigas, viverem num conto de fadas onde os parentes almoçam juntos aos domingos e se presenteiam em respectivos aniversários, era possível serem pessoas comuns numa sociedade anormal. Riram um pouco sozinhas num dos carros da família em direção ao enterro.

- Eu não te falei, mas existe uma pessoa que sabe do tesouro. – A voz de Val era muito, muito calma e empastada pelo choro forçado. – Dna. Julinha,aquela senhora que cuidava de mim quando criança, mamãe contou a ela, ela sabe o que é, se quiser perguntar.

- Sua desgraçada! Eu já estava conformada de não saber, de levar uma vida comum de ‘barbie’ doméstica, e ‘socialite’ com pudores, e você abre a boca pra falar isso!... Eu vou procura-la sim, e quando eu souber, quer que eu lhe conte?

- Lógico! Se você sabe, eu também tenho que saber.

- Ok, estacione ali. – Haviam chegado. – Ela provavelmente mora na mesma casa ainda, vou procurá-la e te digo o que é, custe o que custar, ela vai dizer.

A Ânsia por encontrar a tal Dna Julinha, a velhinha de cabelos brancos, semelhante a uma bruxa, enrugada sábia, medindo não mais que um e cinqüenta, a tomara por completo, era seu corpo e mente únicos no objetivo de encontrar a velha. Antes de enterrarem o esquife, Val continuou com o exacerbo, e jogou-se duas vezes em cima do caixão, rachando-o a tampa. Selina quase morrendo de rir viu uma senhora caminhando no cemitério por entre as sepulturas, corcunda, de muletas, calculava as pisada dentre as lápides, Selina reconheceu, era Dna Julinha,a mulher da sua vida, quem precisava para continuar sua existência. Foi devagar, discreta (embora fosse isso quase impossível) atrás da mulher, esta parou em frente a uma cova, acariciou o cimento frio como se fosse um filho, a espiã de salto alto aproximou-se e a cumprimentou receosa, teve recíproca, fizeram-se perguntas de praxe “tudo bem?” “Tudo e você?” “ótima, obrigado. O que anda fazendo da vida?”... E coisas do tipo, até num esguio olhar sorrateiro e involuntário leu o nome da lápide: JUCÉLIA CASTELÃO SCHÜTZ, ‘Saudades da Família’. Olhou as fotos e reconheceu os olhos brilhantes, o rosto de maçã, poucas rugas, emoldurado pelos cabelos loiros cacheados. Era o túmulo de sua irmã, mal iluminado por um poste luxuoso. As lágrimas foram inevitáveis, sentia um aperto, vontade de tê-la ao lado, escutar sua voz e admirar suas roupas bem cuidadas e suas unhas bem feitas. Era a primeira vez que via, que visitava, e sem querer. Era tão estranho o nome dos Castelão em um túmulo, acostumara-se a ver os de seus, tios, de seus pais, de parentes distantes, mas o de sua irmã era tão dolorido, tão inacreditável, porque era uma outra versão dela mesma, a mulher que sempre quisera ser e não conseguira, era seu sonho realizado de ter um marido (fixo), raízes em uma cidade, filhos, tudo realizado no outro ser, por isso tanto a admirava.

- É sobre ela que eu queria falar Dna Julinha. – Agora era Selina quem fazia carinho na lápide, arriscou uma oração, mas ao invés disso preferiu conversar. – Eu queria saber o que é o tesouro que ela me prometeu? – Ela referiu-se a sobrinha com leve menção expressiva.

- Está numa caixinha no quarto que ela ocupava. – Como Dna Julinha era seca nas palavras! – Eu não sei o que tem lá dentro, ela nunca se abriu muito comigo, mas o que disse foi isso. E que a chave da caixa seria enterrado com ela, e foi enterrada, mas Valquíria não sabe.

- Então quer dizer que tem uma chave com os restos de minha irmã nesse lugar aqui?

- Sim, mas não mexa, se precisar, quando precisar quebre a caixa. Não desrespeite o descanso de Jucélia.

- Não farei Dna Julinha. – Realmente não tinha intenção. – Não o farei.

Todo o cortejo do enterro em que estava, já havia se desfeito, apenas Val a esperava sentada em um banquinho ao lado de uma capela, os coveiros lacravam a tumba.

- Eu vi o túmulo de sua mãe.

- Eu vi que você viu.

Relatou os relato relatado por Dna Julinha, Val nem se espantou, parecia ineficaz a tudo aquilo, após o primeiro instante em que pisaram na mansão exalaram ótimas gargalhadas. Sentaram-se numa poltrona da sala de estar, empregadas temerosas espiavam alegres.

- Val, estou morta de cansaço, nem parei depois que cheguei de viagem. Acho que vou subir e dormir.

- Eu também estou morta, mas vou ficar por aqui, sabe porque?.. Olhe em volta!

Selina espichou os olhos até o salão central. Estava limpo, impecável, a mesa ainda com salgadinhos da festa, bebidas finas, a banda com todo equipamento montado. Sim, Valquíria era louca e pretendia uma festa com tudo aquilo.

- Tudo bem, o que eu tenho a perder não é mesmo? – Selina também era louca.

- E convidei alguns parentes sabe, uns poucos, são menos chegados, mas estavam no casamento e no enterro também. Devem estar chegando.

Mal acabou a frase e campanha soou forte. Entrou um pouco de gente bem vestida e animada. A banda tocou e puseram-se a dançar e conversar. Rir e comer, as anfitriãs imundas, cheias de dores. Tocavam ‘hits’ de todas as épocas, era extremamente empolgante, e para melhorar começaram uma guerra de comida. Tortas, doces, cremes (o melhor eram os cremes! Sujavam mais!) Invadiram toda sala de estar e os salões de entrada, tradicional de festas. Sujos, alguns irreconhecíveis. Bailavam tentando ataque, rindo, lamentando em falso, escaparam somente a banda e os criados. De mais, era uma grande confusão, e eis então, que por ventura da brincadeira, equilibrando-se nos restos ao chão, Selina viu uma pessoa distante, familiar sentada tranqüilamente, divertia-se em ver a festa. Era Jucélia, sua irmã morta observando a saborosa comemoração, fitava a irmã com deveras harmonia.

Ficaram ambas a se encarar, como se aquilo fosse uma coisa muito normal (não era!) Selina deu um passo a frente e Jucélia expandiu os olhos num gesto de repreensão, e para completar este disse ‘não’ com um dedo indicador, acompanhado de um sorriso suave... Ela quase não tinha rugas, estava tão bem! Uma gorda fatia de torta atingiu-lhe a nuca e Selina saiu do transe, num piscar olhou novamente e lá mais nada estava. Mesmo atordoada continuou a brincadeira.

Pareciam que os dias iriam passar-se arrastando lerdamente, como uma lesma preguiçosa sem girar o globo contra o astro rei, mas estava enganada: de bem com a outra dona da casa, tudo ia de vento em popa. Selina visitou todos os cômodos da residência, mandou as criadas fazerem uma boa faxina por aqueles ambientes que há séculos já não viam limpeza. Dançou sozinhas sucessos dos Lp’s de uma antiga coleção da família fez muitas compras, visitou o local de trabalho de Valquíria: Era dona de uma fábrica de materiais para artesanato. Não precisava , mas trabalhava e gostava disso. Nesta visita, discutiram:

- Val, porque isso? Fica aqui esquentando cabeça, se estressando. Uma coisa que você não precisa.

- E então vou ficar fazendo compras o dia todo como você? – Ela estava realmente estressada. – Tenho que ocupar a cabeça com coisas melhores do que ficar mandando nas empregadas.

- Ok, eu comprei algumas coisas pra você, prove quando chegar, lhe espero para jantar?

- É claro, qual o prato?

- Pato assado como principal, e acompanhamentos, aquelas coisas de rico sabe, estou com saudades.

- Odeio pato assado, você sabe, mande fazer outra coisa para mim.

- Oh Val, temos que aprender a conviver com coisas que não gostamos, há quantos anos eu faço isso, bem antes de você nascer eu já fazia.

- Sim, temos, mas as que podemos evitar, evitamos, não é mesmo?

- Não é mesmo! Você vai adorar este pato, vai comer comigo, isto vai dar um sabor especial.

- Para, por favor, vai me dar no mínimo é uma indigestão! Mande fritar o pato!

- Tudo bem sua chata, pato assado pra mim, e frango frito pra você. Algo a mais ‘Dna Valquíria Castelão?’ – O deboche gritava neste tratamento.

- Não, agora venha e vamos visitar esta fábrica que você tanto quer.

Visitaram e Selina aproveitou para escolher algumas coisas para iniciar um pequeno ateliê de alguma coisa. Val tinha razão: precisava distrair a cabeça com outra coisa que não fosse comprar e mandar em empregados.

Amigas a visitaram, a maioria falsas amigas, queriam apenas ver se era ela mesma. A que vinha para especial fato ela punha armadilhas pelo caminho, as criadas a mando da dona da casa viravam xícaras de café nos luxuosos tecidos das vestes visitantes, colocavam nas salas, bacias com água de peixes podres, e coco de cachorro. Toda forma que as fizesse sofrer era bem vinda. Selina continha risadas, divertia-se só após a partida interessante.

Mais dias passaram lentamente... Passou a fazer um caminho diário, algumas voltas pelas ruas das redondezas, onde então era alvo das fofoqueiras de plantão que arranhavam seus cotovelos nos muros e janelas pra saberem das noticias quentes, ela passava, elas comentavam, mesmo que não houvesse motivo, era preciso comentar, tinham de alimentar a sede de fofoca, então bastava inventar alguma coisa, e resolvido. Após pegava o carro e ia para a fábrica de Val, escolhiam juntas o cardápio para almoçarem juntas. Nos primeiros os gritos da discussão no escritório da diretora geral eram audíveis a quilômetros devido as discussões pelo absurdo da tia, mas precisavam ser mais tolerantes uma com a outra, aquilo já era uma certa prática. Na volta passava os pratos desejados a governanta, e assistia um pouco de televisão. Os pratos que estavam escolhendo, eram por demais gordurosos, ganhara alguns quilinhos depois que chegara ali. O almoço era realmente a melhor parte do dia, onde elas conversavam e saboreavam as delícias... Ora, ora, quem diria, logo ela contente em ter companhia para almoçar, era quase deprimente como estava aprendendo a conviver com coisas simples.

Pela tarde mexia com seu projeto de ateliê, este ficava nos fundos do terreno, após a piscina e a estufa, um pouco antes da casa de máquinas e da casa do caseiro. Ali naquela construção ampla com teto de vidro e luz forte, pintava telas abstratas, fez uma gravura que lembrou Jucélia... “Não podia ver se a chave estava enterrada com ela”. “Não o farei”. E porque não? Uma louca tentação a invadiu, fechou tudo e foi ao cemitério. Já tinha desenterrado um marido uma vez, e também o corpo de Evita Perón, ambos já putrefatos, e não se assustara, mas era sua irmão, seria milhões de vezes mais emotivo, milhões de vezes mais chocante... Admirou mais uma vez a lápide e não o fez... Ainda não o fez, porque tomaria coragem.

O ateliê era o melhor e o pior lugar para ficar, pois ao redor era lindo pelas matas e plantas, relaxava ao utilizar de sua concentração e mãos em busca da arte. Contudo, a fazia lembrar do que já tinha vivido, e achava por demais incrível, o cúmulo do surpreendente o quanto sua vida, sua ‘VIDINHA’ estava sendo “fraca”, pequena, logo ela que era tão grande, sabia de tanto, enfornada numa casa grande, a rabiscar em telas, comer bem, dar voltas para velhas fofoqueiras e esperar uma mulher linda de cabelos para almoçar e jantar... Oh, claro, na sorte também tomar o café da manhã! Que formidável, quase riu, quase chorou sozinha em frente a uma tinta resultado de misturas loucas que ela nem sabia como definir. Aquilo sim era loucura. Porque desistira do seu objetivo de estar ali? Ela queria aquele tesouro, viera obstinada a corrompê-lo e voltar ao mundo de gozo da perversidade e boemia, mas por palavras da sobrinha, de alguém, de outra pessoa ela desistira, algo que só fazia em situações extremas: desistir não fazia parte de seu vocabulário. Mas envolvia a irmã, e este era um forte motivo... Envolvia uma palavra que dera há anos atrás, e uma palavra que dera a irmã, era isto! Enfim compreendeu, embora não estivesse conformada.

Mais um ponto que a fazia bem naquele recinto, era o fato de estar esquecendo da vida de boemia, e ter melhorado a saúde (sentia que tinha melhorado visivelmente). Estava mais bonita e via as coisas a luz do dia. Era tão lindas as coisas naturais iluminadas pelo sol. Era uma lição de vida, pois o quanto, apesar de amar, ela estragara e perturbara a vida da irmã. Noites em claro por causa de Selina, por suas confusões, choros, desesperos, e apesar disso eles a perdoaram, entendia o rancor e antipatia de Val, e eles a haviam perdoado. Era fascinante, porque em caso contrário, de vice-versa, ela não perdoaria! Destruíra a vida deles inúmeras vezes, os fizera começar do zero em incontáveis situações. Fazendo dívidas em seu nome, crimes sob seu olhar envolvendo amigos... Todas as formas, todas as formas. Eram realmente muito bons, via um brilho de rancor em algumas palavras de Valquíria, mas era o ínfimo que tinha de aturar. Por que ela não perdoaria, não perdoaria. Deixou tinta pingar no vestido e sentiu uma respiração lenta em sua nuca, um lívido arrepio correu o corpo, havia só ela o ateliê mal trajado. Um vulto passou numa janela ao fundo, desconfiada vidrou olhares na dita janela, fechou tudo e se foi, rápido, receosa.

Um lugar ela adorava naquela cidadezinha: sua antiga casa, a casa onde nascera, e vivera até os 8 anos, quando seu pai enriqueceu de um prêmio na loto, prêmio imenso, cujo ajudou toda família e estabeleceu comércios e negócios que os mantinham no alto nível até hoje. Não era muito longe dali a casa. Mas por que se lembrou disto mesmo? Algumas falsas amigas estavam tomando chá naquela tarde, ela os convidara, então tudo estava normal, sem truques e armadilhas para visitas, por causa da solidão as desejava ali. Sentiu vontade de ir na velha casa, uma construção simples, de terreno grande, e lago nos fundos, a moradia em ruínas, não vendiam porque não queriam, era lembrança boa de um passado bom. Convenceu as peruas da vez, a irem até a casa. A estrada pareceu ter centímetros de tão rápido que foi a chegada.

O portão de grades enferrujadas, a casa em ruínas e tijolos caídos, vidros pelo chão, grama mal aparada, árvores despejando folhas ao chão, uma barata atravessou sob um caco de vidro, “que bom, ao menos alguém morava ali”. As amigas dispersaram-se, algumas entraram devagar e temerosas na casa, outra admirou a rua velha num todo. Selina foi ao lago, de folhas boiando, água azul, viu seu reflexo maquiado. Quando ali vivia, era tão diferente, conseguiu se lembrar do antigo reflexo, uma orquídea rosa e branco pousou no seu reflexo, tremendo a imagem. Era a Orquídea de sua infância, a que dava a todos que gostava, amava aquelas flores, elas ficavam presas num monte robusto ao caule de uma figueira... Eram vivas e pareciam sentir sua felicidade. Brincava com elas, fazia arranjos e conversava... Continuavam lindas. A casa poderia ser reformada, poderia viver ali sozinha, mas não, tiraria as boas lembranças, porque ficavam na memória e no lugar. Aquilo não era eterno, algumas coisas tinham que acabar naturalmente, sua antiga residência, a primeira delas, era uma destas coisas.

Quantas cores podia fazer com tão poucas tintas, estava pintando no meio do salão de festas na entrada, os cabelos banhados de gordura sabe-se lá do que, a roupa que já não se sabia mais a cor de quando comprara, e pingos no nariz e sob os olhos. Ria sozinha, Val a observava da sala de estar, dava dicas de como fazer isso e aquilo, abusadas, abusavam das graças contidas naquelas personalidades.

- Eu vou sair! – Havia gravidade, preocupação na voz da ruiva, que quando Selina olhou viu somente a porta aberta.

Não era a primeira vez que fazia isso, desde que chegara, todas as noites em algum momento, saía ligeira sem satisfações. O que acontecia? Porque não se abria? Mais mistério? Partiu feito um nojo humano logo atrás sem muito pensar. A segui de longe e luzes apagadas. Nem desconfiava Valquíria da perseguição, devia estar bem nervosa e aflita. As ruas conhecidas, caminhos e calçadas bem manjados. Alguém viu Selina e lhe abanou a mão, ela nem respondeu, passou o carro sobre uma pedra, xingou o mais que pode. O carro foi diminuindo velocidade, ela repetiu o ato, Val estacionou em frente a casa de Dna. Julinha, entrou sem ver nada, num assalto entrou pela porta da frente. Estava esquentando o clima, Selina estacionou noutra quadra, sorrateira, revivendo velhos tempos de criminosa, entrou no pátio e tentou ouvir do lado de fora. Nada. Até que passos cresceram, correu rápido para um esconderijo, Val iria sair. Mas um grito foi a seqüência, dois tiros terminaram o ato. Dna Julinha! Selina entrou tropeçando nos saltos e degraus, empurrou a porta velha de madeira maciça com a mão espalmada. Na pequena sala de Dna Julinha, estava ela sentada num sofá, morta, o sangue fluindo dos buracos abertos na cabeça, Val, a ‘doce’ e assassina Val em sua frente de dentes cerrados e pernas bambas, e revólver fumegando entre os dedos, olhando quem entrava naquela calorosa atmosfera.

Ora, ora, quem diria. A pequena travessa, a menina prodígio de pernas grossas e compridas (agora bambas) também tinha coragem de fazer uma coisa daquelas... Com quem aprendera? Realmente sua tia era uma péssima influência, os filmes não ensinavam aquilo, não com aquela veracidade. Por um súbito instante se olharam, Selina mirou o corpo morto da velha, Valquíria expelindo gotas geladas dos poros. Ninguém passando na rua, a luz da sala, falhando, devia ser mau contato, o sofá dela com o braço rasgando deixando a mostra espuma. Pobrezinha, sua casa tão velha, ela tão velha! Selina cessou de reparar no anti-luxo do lar, e focou a parente, pra de súbito também não tomar um tiro.

- O que você está fazendo aqui?

- Sendo testemunha do crime que você cometeu. – Não acreditava nas próprias palavras. Ela era a ovelha negra da família, ninguém tinha mais direito ao cargo.

- Você sempre na hora errada, no lugar errado.

- É, eu tenho esse péssimo hábito, me desculpe. Mas o que VOCÊ está fazendo? O que Dna Julinha fez para merecer isso? – Selina sentou ao lado do defunto.

- Não interessa! Não é da sua conta. – Salivava de ódio pelo inesperado encontro.

- Ei, acalme - se, estas coisas acontecem. – Fazia agora o tipo ‘amiga-do-peito’. – Já aconteceu comigo, ninguém vai te prender, não vou deixar. Mas tudo que acontece, tem um motivo, a gente precisa saber qual o seu motivo pra ter feito isso. – os lábios levemente comprimidos num sinônimo de timidez e desentendimento: FALSIDADE – FINGIMENTO – INTERESSE !

O revólver tomou nova direção, rejuvenesceu após a ação, a lisa testa de Selina era a mira.

- Vá em frente, e morra sozinha, sem ninguém do seu lado, vivendo de mentiras! – O desafio fora lançado acompanhado de medo. A outra era doida, doida, podia muito bem mandá-la a “aquele lugar” e apertar o gatilho. E não que previsse o futuro, mas foi o que exatamente aconteceu, e Selina nem tentou desviar-se do tiro... Não havia mais munição (Que azar! Que sorte!) Numa última demonstração de desespero, Val correu para a rua, e entrou no carro, disparou para sabe-se onde... Mas Selina sabia! Esperou mais um pouco, apagou a luz irritante que não cessava de fraquejar, arrumou o corpo morto no sofá desconfortável, fechou a porta e com cautela, muita cautela de quem sabia o que estava fazendo, de quem sabia que muita verdade estava por vir. Ativou a ignição e imaginando possíveis acontecimentos, nem sentiu chegar na garagem. Tudo em silêncio, era como um filme de terror, onde ela era a mocinha agora (finalmente era a mocinha em uma história daquelas... Tantas vezes, todas as vezes fora vilã), e se bem conhecia o roteiro, iria entrar na mansão silenciosa, vazia, uma música de suspense iria soar para o clima ficar mais pesado, e de repente Val (a vilã) surgiria em suas costas do nada, a deixando sem defesa, e levando-a apara a morte, queima de arquivo. Este era o ‘script’, mas Selina não iria segui-lo, (in) felizmente não, erraria os textos e tomaria outros caminhos, colocando a perder a gravação! Decepcionando o diretor e a antagonista, fazendo uma obra de improvisos, e sem nenhuma técnica!

Entrou e passou devagar, ouvindo somente seus passos nos salões e corredores onde pisava, meia-luz, e flores... Muitas flores jogadas ao chão, eram todas orquídeas da sua preferida, do pé agarrado a figueira da sua antiga casa! As amadas, sagradas orquídeas branca e rosa que somente haviam naquele lugar, que cultivava com tanto carinho quando presente estava... Havia trazido apenas um ramalhete, alguém fora de propósito, para magoá-la até a casa naqueles últimos minutos e colhido muitas, feito aquela atividade de ódio. Flores, obras de arte da natureza, tão raras, e delicadas jogadas num mármore gelado sem coração! Desviava a cada passo, sentia uma dor de final infeliz. No quase escuro, se afastando das flores, não pisando-as! Por quê? POR QUÊ? P-O-R –Q-U-Ê ???????

Ajoelhou-se, e recolheu algumas delas, as lágrimas eram inevitáveis... Há tempos não chorava com tanta vontade, ali sozinha na casa grande, cuidando das flores já sem vida.

E foi assim por onde passou, um extenso caminho de Afrodite, onde gotas de sal de suas pupilas regavam as pétalas. O quarto da irmã estava aberto, até então nenhum sinal da rival, da prodígio ruiva. Se não ali, onde estaria então? “No cemitério, no túmulo da mãe pegando a chave que abriria a caixa. Ótimo, Selina estava prestes a pegar a caixa, cuidá-la como fosse um filho, era somente esperar a chegada da Val, para a força tomar-lhe e abrir a maldita caixa, o maldito motivo pelo qual estava ali. Ou será que a “vaca” já havia tomado posse da caixa e a abriria ali mesmo perante os restos de Jucélia.

Sob a hipótese, pôs-se a correr, entrou no quarto amplo e sem graça, de decoração gelada, não se sentia conforto com olhares, apenas de forma corporal, haviam mais orquídeas sobre a colcha de cetim na cama. Brancas e rosas como a vida deveria ser: cores intensas, amenas e furiosas! Procurou a caixa, abriu o guarda-roupa, nada, apenas coisas estranhas, nada de vestes, mas sim armas, e coletes e roupas a prova de balas, e caixas com líquidos, ampolas e seringas limpas vazias. Oh Por todos os Deuses, o que pretendiam? Onde estavam as vestes da irmã? Sentiu profundo nojo, e admirou mais um tempo alguns coletes a prova de balas, teve um nas mãos...

Olhou sob o guarda-roupa, então entre o colchão e a armação que o sustentava estava uma caixinha de madeira lilás pequena, prazer imenso lhe rodeava, ia de encontro ao desespero e decepção: não era dinheiro, não muito ao menos. O que devia fazer? Não importava (importava sim), agora era vencedora, tinha a caixa, em sua posse, e chaves eram dispensáveis, pois qualquer impacto a abriria, a destruiria revelando o conteúdo. A tão almejada caixa, toda uma vida além da delas, estava ali, estavam ali, olhando-se, como duas guerreiras em penoso combate, era etapa vencida... O tesouro imaginário, era de sua possessão. Como além de vencedora, gostava de humilhar o adversário, esperou Val para se vangloriar da conquista e brigar um tanto mais com a nervosinha de mãos sujas de sangue. Mas ela? Ela em si estava muito tranqüila, parecia estar esperando todos aqueles momentos desde que chegara ali. Algo de agitado a aguardava, estava tudo muito comum, e não dependia dos anos passarem, eternamente naquela família seria assim: problemas, pessoas que se amavam e se odiavam, e surpresas boas e ruins... A boa ainda não tivera acontecido, a ruim também não, e empate, uma anular a outra era inválido, não existia! Mas a boa era ela estar ali, próxima das coisas que gostava (das pessoas) dos lugares que gostava, das pessoas e coisas que podia chamar de suas. Mas faltava ruim, e não demoraria a acontecer

Á tampa da caixa, quatro letras brilhavam em tinta alto relevo branca: S C V C. Um enigma? Adorava enigmas... Mas só os adorava depois que conseguia resolver, até então era alvo de profundo ódio. Aceitou a oculta proposta e maquinou em torno das letras: Foi rápida... A Caixa era destinada a ela e a sobrinha, então as letras, já que fechava o raciocínio, significavam suas iniciais: Selina Castelão, Valquíria Castelão. Quase duvidou de si mesma pela facilidade, mas era isso, não podia subestimar-se, nem sobreestimar a caixinha. Val demorava, e fazendo um desencontro de ida e vinda de propósito, foi ao cemitério. Imaginava a irmã na superfície da cova, os restos do que sobrara de uma poderosa Castelão, agora como mais um humano, cumprindo o destino de todos, colocando-se na igualdade dos seres, não sendo mais!

Chegando, em um novo carro, um que até então não dirigira, porsche azul metálico. Correndo no cemitério não tardou a chegar na sepultura, havia um enterro, outro enterro em quase madrugada, devia ser moda. Olharam-na com repreensão pelo desrespeito, como se fosse realmente lhes dar atenção. Pronto! Ma freada de saltos perfeita, a surpresa má estava acontecendo agora: a cova aberta, um caixão fechado na superfície, olhou no buraco aberto e nenhum sinal de chave, pensou em pular no espaço para procurar na terra a maldita chave, mas não o realizou, Val já devia estar com a chave... lhe deu uma ponta de vontade de abrir o caixão... Pra que também? Só faria mãos sofrimento. Saiu gritando pelo coveiro, escandalizando o cemitério, interrompendo o enterro.

- Quem desenterrou esse caixão?

- Eu senhora. – De humildade inimaginável. – Dna Valquíria ligou, a família vai precisar de um caixão daqui a pouco, e como este estava apenas aqui na cova vazio, eles vão usá-lo.

- Na cova vazio? – foi um grito isso.

Estava realmente vazio, ela o abriu com ajuda do homem, e já não esperava restos, mas o dito vazio, o encontrou, não encontrou nada e isso era alguma coisa, o mínimo vestígio de enterro era invisível. Estavam mentindo, gritava a si mesmo dirigindo de volta, a estrada não existia, quase bateu diversas vezes... SUA IRMÃ NÃO ESTAVA MORTA! ESTAVAM MENTINDO! Essa era a surpresa boa de verdade? SIM! Ela poderia não estar enterrada em outro lugar, mas estar viva! E a surpresa má? É que por algum motivo péssimo, ao qual toda humanidade provavelmente temeria, eles haviam mentindo, era extremamente grave! Selina estava louca, chorando, com a música ligada no volume máximo, uma música que odiava, dirigia sem sentir, mas tinha noção de que estava louca. Louca, louca...

Não sabia mais o que fazer, o que dizer... passava as mãos no rosto para enxugar as lágrimas, não conseguiu abrir a porta da frente de tão nervosa, a chutou e ela se foi rápida. Não deu muitos passos, e homens grandes, armários humanos a seguraram no hall, ela berrou e berrou, mas eram insensíveis, surdos (era uma ilusão? Já não tinha noção da verdade)! Um deles lhe esbofeteou a cara, e ela sentiu que era verdade. a mantinham presa no salão principal.

- O que foi? É um assalto?

- São ordens de Dna Valquíria! – Um deles exclamou mecanicamente sem olhá-la.

Ah claro, Dna Valquíria, ela tinha planejado tudo... Aliás, direto no assunto, ela descia as escadas, acompanhada de sua mãe Jucélia, Castelão, a lendária Jucélia, alta, loura de olhos grandes e bela. Viva, mais viva que todas ali, de vestido branco esvoaçante, era um ponto na paisagem a ser mais admirado, mais raro!

Selina então a vê-la enlouqueceu de vez... Mas controlou-se, sabia controlar-se, e já havia sonhado com a irmã viva naquela casa... O sonho realizara! Que ridículo, seus sonhos nunca haviam se realizado, e de prontidão acontecia uma barbárie daquelas.

Os lábios carnudos bem vermelhos, era tão linda, queria tocá-la porque não estava morta, estava viva!

- Jucélia, deixe eu te dar um abraço minha irmã, por favor! – Não cabia em si de ódio, na verdade o abraço era farsa, queria esganá-la, mesmo sendo o que mais amava na vida.

- Não! – Sua voz doce, forte. – Sem abraços, porque eu te odeio minha irmã, você fez tudo dar errado nas nossas vidas! – Valquíria a abraçava por trás, fazia uma escultura imponente, ganhadora de prêmios: mãe e filha juntas acabando com uma tia. Daria tema de um bom livro, um sinistro conto. – Vamos acabar logo com isso filha.

- Acabar com o que? – Ela se debatia presa nas mãos que mais pareciam algemas. – Voltem aqui, me perdoem, eu imploro! Voltem, me perdoem. – gritos e lágrimas que só se ouviram numa guerra, em campos de concentração. Sabia que algo de terrível ia acontecer. Ela ofegante, a respiração cansada, esperando nem sabia o que, foi quando ambas voltaram, e a dupla dinâmica driblando mais gritos e chacoalhadas, lhe aplicou uma injeção. Foi questão de segundos, e não conseguia, apesar da força de mil homens, mover um músculo, um tranqüilizante poderosa, corria em suas veias, a deixando frágil como um bebê, um cachorro que depende do dono. A ‘coisa ruim’ se aproximava, se acalmou involuntariamente e esperava uma explicação que não tardou a ser dada. Olhava para a irmã, linda estava, linda, nem acreditava, estava realmente emocionada e arrependida, não era pra ser assim! Não era! Não era! NÃO ERA! Estava tudo errado, isso significava normal, já que sua vida sempre fora errada? Esperava ficar mobilizada, fraca perante desconhecidos, homens de armamento pesado procurados por todo mundo, mas nunca sua irmã e sobrinhas. No sofá da sala de estar, só as lágrimas, as malditas gotas de sal, faziam movimento em sua face corada e inchada. Queria falar tantas coisas, e não conseguia, era um cachorrinho dependendo completamente do dono, e nem ao menos podia abanar o rabo para mostrar seu contentamento... Tinha tanta raiva, ódio corroia suas células.

- Minha irmã. – Mais gotas de sal, esse era o amável tom que usava em conversas deliciosas que duravam horas e as deixavam tão bem, felizes, e que há anos não escutara! Esse era o tom, e ela o usava como se fosse NORMAL. – Você acabou com nossa vida, você sabe. – Tudo pensado diversas vezes por Selina estava acontecendo, ela também tinha noção, eles tinham ódio por isso, era um rancor guardado, o que era muito pior! Ela citou exatamente todos os casos que tiveram de começar do nada, de recomeçar... – E agora você voltou, e preciso me vingar preciso acabar com você, antes que acabe conosco outra vez, muitas pessoas me agradecerão por isso. Eu te amo, é sério, te amo, mas preciso fazer isso, por todos que você destruiu. Então, nós esquematizamos minha morte, foi tudo planejado, e na caixa havia somente um bilhete dizendo: “Somente Criaturas vastas Constroem”. As iniciais S C V C, que também são suas iniciais e de minha filha, porque vocês são criaturas muito vastas, e poderiam construir. Isso, este “tesouro”, era pra você criar plena confiança nela, e ela poder te matar como uma mãe pode com uma criança. Mas Dna Julinha deu com a língua nos dentes, e essa daqui desesperada a matou. Então tínhamos que tirar toda farsa de uma vez, e através do caixão desenterrado levá-la a verdade. – Que ódio, era realmente uma pena não poder mover um músculo, não poder falar nada ou socar-lhe o corpo todo. – Eu estava o tempo todo nessa casa, e quase deixei você maluca aparecendo naquela ‘festinha’, e no ateliê. Mas é isso irmã, estou viva, e antes que me arrependa é seu fim.

Mais uma injeção, uma arma mirada em seu peito. Ela não temeu, achava justo...

- Só assim seremos felizes, finalmente seremos felizes. – Apenas Jucélia falava, Val era menor, minúscula perto da mãe, um cão de guarda. – Eu cuidei de tudo, vai ficar tudo bem. – Selina sentiu o corpo enrijecer novamente, morrer de olhos abertos e consciência mecanizada. – O caixão que estava como meu no cemitério, será seu, meus parabéns, pois ao menos algo meu, você terá!

O tiro, o estampido grave, e uma bala de encontro ao seu peito, fechou os olhos e sentiu apenas, os olhos involuntários fecharam, a morte chegara. Era agora só mais um corpo sem vida, mais uma no prado da humanidade, não importava o que fizesse, o que tinha feito, o destino de todos era agora também o seu.

As criadas cheias das orquídeas nos colos, depositaram sobre o caixão lacrado todas as flores, cada uma parecia querer falar algo, dizer palavras de já saudade. Levaram o caixão longe, acompanhado de sorrisos. Numa estrada deserta, outro cemitério, risos e conversa corriqueira, a deixaram no meio de uma capela antiga da família, não visitada, não “habitada”, que bom! Agora Selina Castelão era página virada, a “criatura vasta” Se transformava em pó, morta, trancada numa caixa de madeira! Mais orquídeas, nenhuma lágrima da sobrinha ou irmã, mas sim felicidade! Alegria, alegria, alegria! Era o destino que elas haviam construído, e estava sendo protagonizado por quem merecia mais do que nunca!

As orquídeas brancas e rosas choravam, trancaram a porta pesada de aço, e se foram ter elas, sem criaturas malvadas por perto, o seu final feliz. Na caixa de madeira com letras em alto relevo, agora devia se aplicar ás iniciais, as letras J e C. Porque S C V C J C: Somente Criaturas Vastas Com Justiça Constroem. A justiça partira das mãos delas, mas no fundo, no fundo o bem da verdade é que aquilo não era justiça, mas ao menos morrera Selina nas mãos de quem tinha motivo, de onde tudo brotara, onde tudo aprendera, voltava, cumpria com ódio e sem muito saber o seu ciclo. Daquele exato pó viera, e á aquele exato pó retornava. Num começo de manhã ensolarado, fazendo plágios de “felizes para sempre”, num sinônimo de “era uma vez”, com toda vida que as assassinas ainda tinham, sem a vida atordoada que não precisavam.

FIM

Douglas Tedesco 09/2007

Douglas Tedesco
Enviado por Douglas Tedesco em 19/09/2007
Código do texto: T658955