Vítimas de Si - 5ª parte - final
Ora, ora, quem diria. A pequena travessa, a menina prodígio de pernas grossas e compridas (agora bambas) também tinha coragem de fazer uma coisa daquelas... Com quem aprendera? Realmente sua tia era uma péssima influência, os filmes não ensinavam aquilo, não com aquela veracidade. Por um súbito instante se olharam, Selina mirou o corpo morto da velha, Valquíria expelindo gotas geladas dos poros. Ninguém passando na rua, a luz da sala, falhando, devia ser mau contato, o sofá dela com o braço rasgando deixando a mostra espuma. Pobrezinha, sua casa tão velha, ela tão velha! Selina cessou de reparar no anti-luxo do lar, e focou a parente, pra de súbito também não tomar um tiro.
- O que você está fazendo aqui?
- Sendo testemunha do crime que você cometeu. – Não acreditava nas próprias palavras. Ela era a ovelha negra da família, ninguém tinha mais direito ao cargo.
- Você sempre na hora errada, no lugar errado.
- É, eu tenho esse péssimo hábito, me desculpe. Mas o que VOCÊ está fazendo? O que Dna Julinha fez para merecer isso? – Selina sentou ao lado do defunto.
- Não interessa! Não é da sua conta. – Salivava de ódio pelo inesperado encontro.
- Ei, acalme - se, estas coisas acontecem. – Fazia agora o tipo ‘amiga-do-peito’. – Já aconteceu comigo, ninguém vai te prender, não vou deixar. Mas tudo que acontece, tem um motivo, a gente precisa saber qual o seu motivo pra ter feito isso. – os lábios levemente comprimidos num sinônimo de timidez e desentendimento: FALSIDADE – FINGIMENTO – INTERESSE !
O revólver tomou nova direção, rejuvenesceu após a ação, a lisa testa de Selina era a mira.
- Vá em frente, e morra sozinha, sem ninguém do seu lado, vivendo de mentiras! – O desafio fora lançado acompanhado de medo. A outra era doida, doida, podia muito bem mandá-la a “aquele lugar” e apertar o gatilho. E não que previsse o futuro, mas foi o que exatamente aconteceu, e Selina nem tentou desviar-se do tiro... Não havia mais munição (Que azar! Que sorte!) Numa última demonstração de desespero, Val correu para a rua, e entrou no carro, disparou para sabe-se onde... Mas Selina sabia! Esperou mais um pouco, apagou a luz irritante que não cessava de fraquejar, arrumou o corpo morto no sofá desconfortável, fechou a porta e com cautela, muita cautela de quem sabia o que estava fazendo, de quem sabia que muita verdade estava por vir. Ativou a ignição e imaginando possíveis acontecimentos, nem sentiu chegar na garagem. Tudo em silêncio, era como um filme de terror, onde ela era a mocinha agora (finalmente era a mocinha em uma história daquelas... Tantas vezes, todas as vezes fora vilã), e se bem conhecia o roteiro, iria entrar na mansão silenciosa, vazia, uma música de suspense iria soar para o clima ficar mais pesado, e de repente Val (a vilã) surgiria em suas costas do nada, a deixando sem defesa, e levando-a apara a morte, queima de arquivo. Este era o ‘script’, mas Selina não iria segui-lo, (in) felizmente não, erraria os textos e tomaria outros caminhos, colocando a perder a gravação! Decepcionando o diretor e a antagonista, fazendo uma obra de improvisos, e sem nenhuma técnica!
Entrou e passou devagar, ouvindo somente seus passos nos salões e corredores onde pisava, meia-luz, e flores... Muitas flores jogadas ao chão, eram todas orquídeas da sua preferida, do pé agarrado a figueira da sua antiga casa! As amadas, sagradas orquídeas branca e rosa que somente haviam naquele lugar, que cultivava com tanto carinho quando presente estava... Havia trazido apenas um ramalhete, alguém fora de propósito, para magoá-la até a casa naqueles últimos minutos e colhido muitas, feito aquela atividade de ódio. Flores, obras de arte da natureza, tão raras, e delicadas jogadas num mármore gelado sem coração! Desviava a cada passo, sentia uma dor de final infeliz. No quase escuro, se afastando das flores, não pisando-as! Por quê? POR QUÊ? P-O-R –Q-U-Ê ???????
Ajoelhou-se, e recolheu algumas delas, as lágrimas eram inevitáveis... Há tempos não chorava com tanta vontade, ali sozinha na casa grande, cuidando das flores já sem vida.
E foi assim por onde passou, um extenso caminho de Afrodite, onde gotas de sal de suas pupilas regavam as pétalas. O quarto da irmã estava aberto, até então nenhum sinal da rival, da prodígio ruiva. Se não ali, onde estaria então? “No cemitério, no túmulo da mãe pegando a chave que abriria a caixa. Ótimo, Selina estava prestes a pegar a caixa, cuidá-la como fosse um filho, era somente esperar a chegada da Val, para a força tomar-lhe e abrir a maldita caixa, o maldito motivo pelo qual estava ali. Ou será que a “vaca” já havia tomado posse da caixa e a abriria ali mesmo perante os restos de Jucélia.
Sob a hipótese, pôs-se a correr, entrou no quarto amplo e sem graça, de decoração gelada, não se sentia conforto com olhares, apenas de forma corporal, haviam mais orquídeas sobre a colcha de cetim na cama. Brancas e rosas como a vida deveria ser: cores intensas, amenas e furiosas! Procurou a caixa, abriu o guarda-roupa, nada, apenas coisas estranhas, nada de vestes, mas sim armas, e coletes e roupas a prova de balas, e caixas com líquidos, ampolas e seringas limpas vazias. Oh Por todos os Deuses, o que pretendiam? Onde estavam as vestes da irmã? Sentiu profundo nojo, e admirou mais um tempo alguns coletes a prova de balas, teve um nas mãos...
Olhou sob o guarda-roupa, então entre o colchão e a armação que o sustentava estava uma caixinha de madeira lilás pequena, prazer imenso lhe rodeava, ia de encontro ao desespero e decepção: não era dinheiro, não muito ao menos. O que devia fazer? Não importava (importava sim), agora era vencedora, tinha a caixa, em sua posse, e chaves eram dispensáveis, pois qualquer impacto a abriria, a destruiria revelando o conteúdo. A tão almejada caixa, toda uma vida além da delas, estava ali, estavam ali, olhando-se, como duas guerreiras em penoso combate, era etapa vencida... O tesouro imaginário, era de sua possessão. Como além de vencedora, gostava de humilhar o adversário, esperou Val para se vangloriar da conquista e brigar um tanto mais com a nervosinha de mãos sujas de sangue. Mas ela? Ela em si estava muito tranqüila, parecia estar esperando todos aqueles momentos desde que chegara ali. Algo de agitado a aguardava, estava tudo muito comum, e não dependia dos anos passarem, eternamente naquela família seria assim: problemas, pessoas que se amavam e se odiavam, e surpresas boas e ruins... A boa ainda não tivera acontecido, a ruim também não, e empate, uma anular a outra era inválido, não existia! Mas a boa era ela estar ali, próxima das coisas que gostava (das pessoas) dos lugares que gostava, das pessoas e coisas que podia chamar de suas. Mas faltava ruim, e não demoraria a acontecer
Á tampa da caixa, quatro letras brilhavam em tinta alto relevo branca: S C V C. Um enigma? Adorava enigmas... Mas só os adorava depois que conseguia resolver, até então era alvo de profundo ódio. Aceitou a oculta proposta e maquinou em torno das letras: Foi rápida... A Caixa era destinada a ela e a sobrinha, então as letras, já que fechava o raciocínio, significavam suas iniciais: Selina Castelão, Valquíria Castelão. Quase duvidou de si mesma pela facilidade, mas era isso, não podia subestimar-se, nem sobreestimar a caixinha. Val demorava, e fazendo um desencontro de ida e vinda de propósito, foi ao cemitério. Imaginava a irmã na superfície da cova, os restos do que sobrara de uma poderosa Castelão, agora como mais um humano, cumprindo o destino de todos, colocando-se na igualdade dos seres, não sendo mais!
Chegando, em um novo carro, um que até então não dirigira, porsche azul metálico. Correndo no cemitério não tardou a chegar na sepultura, havia um enterro, outro enterro em quase madrugada, devia ser moda. Olharam-na com repreensão pelo desrespeito, como se fosse realmente lhes dar atenção. Pronto! Ma freada de saltos perfeita, a surpresa má estava acontecendo agora: a cova aberta, um caixão fechado na superfície, olhou no buraco aberto e nenhum sinal de chave, pensou em pular no espaço para procurar na terra a maldita chave, mas não o realizou, Val já devia estar com a chave... lhe deu uma ponta de vontade de abrir o caixão... Pra que também? Só faria mãos sofrimento. Saiu gritando pelo coveiro, escandalizando o cemitério, interrompendo o enterro.
- Quem desenterrou esse caixão?
- Eu senhora. – De humildade inimaginável. – Dna Valquíria ligou, a família vai precisar de um caixão daqui a pouco, e como este estava apenas aqui na cova vazio, eles vão usá-lo.
- Na cova vazio? – foi um grito isso.
Estava realmente vazio, ela o abriu com ajuda do homem, e já não esperava restos, mas o dito vazio, o encontrou, não encontrou nada e isso era alguma coisa, o mínimo vestígio de enterro era invisível. Estavam mentindo, gritava a si mesmo dirigindo de volta, a estrada não existia, quase bateu diversas vezes... SUA IRMÃ NÃO ESTAVA MORTA! ESTAVAM MENTINDO! Essa era a surpresa boa de verdade? SIM! Ela poderia não estar enterrada em outro lugar, mas estar viva! E a surpresa má? É que por algum motivo péssimo, ao qual toda humanidade provavelmente temeria, eles haviam mentindo, era extremamente grave! Selina estava louca, chorando, com a música ligada no volume máximo, uma música que odiava, dirigia sem sentir, mas tinha noção de que estava louca. Louca, louca...
Não sabia mais o que fazer, o que dizer... passava as mãos no rosto para enxugar as lágrimas, não conseguiu abrir a porta da frente de tão nervosa, a chutou e ela se foi rápida. Não deu muitos passos, e homens grandes, armários humanos a seguraram no hall, ela berrou e berrou, mas eram insensíveis, surdos (era uma ilusão? Já não tinha noção da verdade)! Um deles lhe esbofeteou a cara, e ela sentiu que era verdade. a mantinham presa no salão principal.
- O que foi? É um assalto?
- São ordens de Dna Valquíria! – Um deles exclamou mecanicamente sem olhá-la.
Ah claro, Dna Valquíria, ela tinha planejado tudo... Aliás, direto no assunto, ela descia as escadas, acompanhada de sua mãe Jucélia, Castelão, a lendária Jucélia, alta, loura de olhos grandes e bela. Viva, mais viva que todas ali, de vestido branco esvoaçante, era um ponto na paisagem a ser mais admirado, mais raro!
Selina então a vê-la enlouqueceu de vez... Mas controlou-se, sabia controlar-se, e já havia sonhado com a irmã viva naquela casa... O sonho realizara! Que ridículo, seus sonhos nunca haviam se realizado, e de prontidão acontecia uma barbárie daquelas.
Os lábios carnudos bem vermelhos, era tão linda, queria tocá-la porque não estava morta, estava viva!
- Jucélia, deixe eu te dar um abraço minha irmã, por favor! – Não cabia em si de ódio, na verdade o abraço era farsa, queria esganá-la, mesmo sendo o que mais amava na vida.
- Não! – Sua voz doce, forte. – Sem abraços, porque eu te odeio minha irmã, você fez tudo dar errado nas nossas vidas! – Valquíria a abraçava por trás, fazia uma escultura imponente, ganhadora de prêmios: mãe e filha juntas acabando com uma tia. Daria tema de um bom livro, um sinistro conto. – Vamos acabar logo com isso filha.
- Acabar com o que? – Ela se debatia presa nas mãos que mais pareciam algemas. – Voltem aqui, me perdoem, eu imploro! Voltem, me perdoem. – gritos e lágrimas que só se ouviram numa guerra, em campos de concentração. Sabia que algo de terrível ia acontecer. Ela ofegante, a respiração cansada, esperando nem sabia o que, foi quando ambas voltaram, e a dupla dinâmica driblando mais gritos e chacoalhadas, lhe aplicou uma injeção. Foi questão de segundos, e não conseguia, apesar da força de mil homens, mover um músculo, um tranqüilizante poderosa, corria em suas veias, a deixando frágil como um bebê, um cachorro que depende do dono. A ‘coisa ruim’ se aproximava, se acalmou involuntariamente e esperava uma explicação que não tardou a ser dada. Olhava para a irmã, linda estava, linda, nem acreditava, estava realmente emocionada e arrependida, não era pra ser assim! Não era! Não era! NÃO ERA! Estava tudo errado, isso significava normal, já que sua vida sempre fora errada? Esperava ficar mobilizada, fraca perante desconhecidos, homens de armamento pesado procurados por todo mundo, mas nunca sua irmã e sobrinhas. No sofá da sala de estar, só as lágrimas, as malditas gotas de sal, faziam movimento em sua face corada e inchada. Queria falar tantas coisas, e não conseguia, era um cachorrinho dependendo completamente do dono, e nem ao menos podia abanar o rabo para mostrar seu contentamento... Tinha tanta raiva, ódio corroia suas células.
- Minha irmã. – Mais gotas de sal, esse era o amável tom que usava em conversas deliciosas que duravam horas e as deixavam tão bem, felizes, e que há anos não escutara! Esse era o tom, e ela o usava como se fosse NORMAL. – Você acabou com nossa vida, você sabe. – Tudo pensado diversas vezes por Selina estava acontecendo, ela também tinha noção, eles tinham ódio por isso, era um rancor guardado, o que era muito pior! Ela citou exatamente todos os casos que tiveram de começar do nada, de recomeçar... – E agora você voltou, e preciso me vingar preciso acabar com você, antes que acabe conosco outra vez, muitas pessoas me agradecerão por isso. Eu te amo, é sério, te amo, mas preciso fazer isso, por todos que você destruiu. Então, nós esquematizamos minha morte, foi tudo planejado, e na caixa havia somente um bilhete dizendo: “Somente Criaturas vastas Constroem”. As iniciais S C V C, que também são suas iniciais e de minha filha, porque vocês são criaturas muito vastas, e poderiam construir. Isso, este “tesouro”, era pra você criar plena confiança nela, e ela poder te matar como uma mãe pode com uma criança. Mas Dna Julinha deu com a língua nos dentes, e essa daqui desesperada a matou. Então tínhamos que tirar toda farsa de uma vez, e através do caixão desenterrado levá-la a verdade. – Que ódio, era realmente uma pena não poder mover um músculo, não poder falar nada ou socar-lhe o corpo todo. – Eu estava o tempo todo nessa casa, e quase deixei você maluca aparecendo naquela ‘festinha’, e no ateliê. Mas é isso irmã, estou viva, e antes que me arrependa é seu fim.
Mais uma injeção, uma arma mirada em seu peito. Ela não temeu, achava justo...
- Só assim seremos felizes, finalmente seremos felizes. – Apenas Jucélia falava, Val era menor, minúscula perto da mãe, um cão de guarda. – Eu cuidei de tudo, vai ficar tudo bem. – Selina sentiu o corpo enrijecer novamente, morrer de olhos abertos e consciência mecanizada. – O caixão que estava como meu no cemitério, será seu, meus parabéns, pois ao menos algo meu, você terá!
O tiro, o estampido grave, e uma bala de encontro ao seu peito, fechou os olhos e sentiu apenas, os olhos involuntários fecharam, a morte chegara. Era agora só mais um corpo sem vida, mais uma no prado da humanidade, não importava o que fizesse, o que tinha feito, o destino de todos era agora também o seu.
As criadas cheias das orquídeas nos colos, depositaram sobre o caixão lacrado todas as flores, cada uma parecia querer falar algo, dizer palavras de já saudade. Levaram o caixão longe, acompanhado de sorrisos. Numa estrada deserta, outro cemitério, risos e conversa corriqueira, a deixaram no meio de uma capela antiga da família, não visitada, não “habitada”, que bom! Agora Selina Castelão era página virada, a “criatura vasta” Se transformava em pó, morta, trancada numa caixa de madeira! Mais orquídeas, nenhuma lágrima da sobrinha ou irmã, mas sim felicidade! Alegria, alegria, alegria! Era o destino que elas haviam construído, e estava sendo protagonizado por quem merecia mais do que nunca!
As orquídeas brancas e rosas choravam, trancaram a porta pesada de aço, e se foram ter elas, sem criaturas malvadas por perto, o seu final feliz. Na caixa de madeira com letras em alto relevo, agora devia se aplicar ás iniciais, as letras J e C. Porque S C V C J C: Somente Criaturas Vastas Com Justiça Constroem. A justiça partira das mãos delas, mas no fundo, no fundo o bem da verdade é que aquilo não era justiça, mas ao menos morrera Selina nas mãos de quem tinha motivo, de onde tudo brotara, onde tudo aprendera, voltava, cumpria com ódio e sem muito saber o seu ciclo. Daquele exato pó viera, e á aquele exato pó retornava. Num começo de manhã ensolarado, fazendo plágios de “felizes para sempre”, num sinônimo de “era uma vez”, com toda vida que as assassinas ainda tinham, sem a vida atordoada que não precisavam.