Janela
Há pelo menos uma coisa que todos os humanos, sem distinções, fazem com frequência: dormir. Isso é algo bom, saudável e almejado, principalmente depois de um dia longo de trabalho. Entretanto, tudo isso tem um problema. Afinal, como saber como é não estar dormindo?
A maioria das pessoas acredita saber quando está acordada por simplesmente terem nascido sabendo. Há aqueles que acreditam inclusive que conseguem controlar o sonho, então, se não podem controlar outra realidade, logo não é um sonho. Entretanto, não pode ser possível que a pessoa esteja em um sono tão pesado que ela simplesmente tenha perdido o controle sobre o seu subconsciente?
João não pensava muito nessas possibilidades. É claro, já estava dormindo menos de três horas pelo quarto dia seguido quando finalmente terminou o seu projeto para a faculdade, então não pensava em muitas coisas fora isso. Não se lembrava ao certo de como acordou, se passou desodorante ou se escovou os dentes, mas isso era normal já que essas eram somente partes corriqueiras do dia e não estavam incluídas na ação do cotidiano. Uma ação que era monótona, mas que movimentava intensamente os seus sentimentos e causava tanta agonia em certos momentos que chegava a se assemelhar a um pesadelo.
Assim que enviou o arquivo com o seu trabalho para o e-mail do professor, foi dormir. Não queria pensar em mais nada por umas doze horas seguidas e, por isso, somente se jogou na cama, se cobriu com um cobertor que não estava cheirando tão bem e fechou os olhos. Não precisou se dar ao trabalho nem de relaxar os músculos ou ficar pensando em algo para pegar no sono, simplesmente dormiu.
Quando acordou, não se lembrava de ter sonhado algo. Tudo ao seu redor estava escuro, mas estava sonolento demais para se importar. Ele estava se sentindo bem mais relaxado e totalmente renovado, embora ainda sentisse a preguiça de ter acabado de acordar. No momento exato em que se levantou, todas as luzes acenderam. Não estava mais no quarto em que foi dormir, mas em uma cabine com paredes totalmente brancas. Não havia portas ou janelas, somente as quatro paredes que o confinavam em um espaço minúsculo. A sua respiração se encurtou com o medo e começou a pensar rapidamente nas possibilidades da causa de estar onde estava. Pensou desde abdução até um teste ilegal do governo e só depois disso pensou na possibilidade de ser um sonho. Essa era a resposta, tinha que ser isso. Mas, ao pensar mais um pouco, não parecia ser um sonho. Afinal, tudo parecia real demais, tanto que sentia a textura lisa e macia das paredes ao tocá-las.
Não conseguia entender nada com total certeza e isso o frustrava. Com os olhos cheios de lágrimas que se recusavam a descer, ficou rodando o minúsculo lugar em que se encontrava para tentar solucionar o maldito quebra-cabeças em que estava. Quanto mais rodava, mais se esquecia dos detalhes daquela realidade que julgava ser a real. Toda a sua família, embora conseguisse ver com clareza o rosto de todos, parecia ser uma lembrança distante e quase tudo que pensava saber sobre eles não parecia totalmente certo. Sobre o seu irmão mais novo, por exemplo, ele se lembrava de ter ido na formatura dele da faculdade, mas agora, por algum motivo, sentia que ele era muito mais novo do que isso. Por não saber mais se poderia confiar na sua memória, a raiva gerada pela frustração começava a aflorar.
No momento em que pensou que não sabia mais quem era, percebeu que o eu dessa realidade também não se lembrava de muitas coisas. Isso não era muito animador já que podia haver diversos motivos para ter tido perda de memória e aquilo ter sido o subconsciente tentando lembrá-lo de algo por meio de um sonho. Mas, de algum modo sútil, indicava que não podia confiar em nenhuma das duas realidades já que ambas podiam ser verdadeiras, nenhuma delas ou somente uma delas.
O único jeito de saber no que confiar era testando a realidade em que estava. Não podia saber se o primeiro cenário era real porque agora só estava em suas memórias, mas ele estava no segundo cenário. Buscou em sua mente todas as lembranças sobre coisas que falaram de sonhos, embora não conseguisse saber nem quando, onde ou quem havia dito essas coisas. Lembrou-se de diversas coisas e por elas sabia que era difícil ler em sonhos por tudo estar embaçado e mudar de repente, que normalmente se sonha com locais conhecidos, e que, quando se percebe que está sonhando, é fácil de controlar o que acontece a sua volta. Infelizmente, só restava a última possibilidade já que não tinha nada para ler e com certeza não conhecia o local em que estava.
Decidiu sentar em cima dos seus joelhos porque sabia que essa era uma das posições de meditação e com certeza iria necessitar da máxima concentração possível nessa hora. Fechou os olhos e imaginou aquelas paredes brancas explodindo e uma ilha paradisíaca surgindo a sua volta. Abriu os olhos estando mais calmo e relaxado. Quando terminou, a decepção caiu sobre a sua mente uma vez que tudo estava exatamente igual. Tentou repetir todo o processo e de diversas maneiras: olhos abertos, em pé, deitado e em mais umas outras dez posições. Nada. Absolutamente nada. Tentou também mudar a realidade dentro do quarto branco ao imaginar objetos e diversos possíveis superpoderes que queria ter. O máximo que conseguiu foi se sentir como uma criança de oito anos após assistir ao x-men e acreditar que talvez também pudesse ser um mutante.
Todas as tentativas o deixaram exauridos mentalmente e sentimentalmente. A combinação gerou a raiva e essa fez ele começar a esmurrar as paredes com total ferocidade. Depois de uns vinte minutos socando o chão, o teto e cada uma das quatro paredes, atingiu um local que não havia nem encostado até aquele momento. Seria na altura de um interruptor e longe o suficiente da quina formada no encontro das duas paredes para que fosse construída uma porta se essas coisas existissem no quarto.
No exato momento que atingiu esse suposto interruptor, uma das paredes começou a se levantar. João correu até ela pensando que podia ser uma saída. Entretanto viu que se tratava de um vidro cuja espessura não conseguia identificar. Assim que a parede parou de subir ao atingir o teto, uma vista surgiu através do vidro. Nunca tinha visto uma imagem como aquela. Estava na beira de um penhasco num dia ensolarado, talvez no meio da manhã, e de lá via um rio que vinha atrás de onde aquele quarto branco estava, passando distante o suficiente à sua direita para não simbolizar um perigo. Descia o penhasco em uma alta cachoeira e lá embaixo se tornava uma rápida corredeira até que entrava em uma floresta como um rio calmo e de correnteza não tão forte. Essa floresta não era muito densa, sendo composta principalmente por pinheiros. No fim de um mar verde de árvores, havia uma cordilheira de montanhas com um tom levemente azulado e com neve no topo da maioria delas.
Ficou admirando aquela paisagem durante alguns minutos. Era extremamente reconfortante enxergar aquilo tudo depois de passar sabe-se lá quanto tempo somente vendo a cor branca. Depois de se acalmar, começou a encostar em cada parte do quarto em busca de algum outro botão. Afinal, se existia uma janela poderia existir uma porta. Provavelmente horas se passaram, mas a única coisa que conseguiu foi o fracasso. Deve ter percorrido todo o quarto umas cinco vezes antes de desistir sem achar nada.
Após desistir, ficou muito tempo sentado na extremidade oposta a janela encarando a paisagem. Novas questões começaram a atormentar a sua mente: será que isso é mesmo uma janela? Não pode ser uma televisão? Essa seria a saída? Se fosse um sonho, durante a queda ele acordaria? Se não acordasse e morresse no sonho, morreria na sua outra vida? E se essa fosse a realidade, acabaria por se suicidar sem querer? A cada nova pergunta e possibilidade que surgia, abaixava a cabeça e colocava as mãos nos ouvidos os pressionando. Sentia o tormento de ter que tomar uma decisão importante. Então, esperaria para tentar recuperar pelo menos mais um pouco da memória e achar uma outra saída ou se jogaria contra o vidro esperando não se machucar e essa ser a solução para todo o seu tormento?
Hesitava em tomar uma decisão. Sabia que não tinha como voltar atrás no momento em que pensou nas possiblidades que tinha. Nesse exato instante, soube que a sua mente iria atormentá-lo com as possibilidades que tinha de maneira eterna, principalmente se tomasse a decisão mais errada. E é claro que ele também sabia que não tomar uma decisão também seria somente a escolha de uma possibilidade. Não havia nenhuma chance de escapar disso, pelo menos não depois de ter pensado.
Infelizmente, quando se tem que escolher por um caminho, não é possível ver o seu interior e também não é possível retornar. Também não se pensa muito no ter que escolher, se focando nos caminhos mais atraentes a sua frente. Talvez seja por isso que João não percebeu que ficou somente encarando aquele vidro e, por um longo tempo, escolheu involuntariamente ficar parado enquanto se perdia em seus pensamentos.
No meio da bagunça da sua mente, encontrou uma trilha que o levou a uma afirmação. Ele percebeu que não valia a pena ficar parado em sua prisão sem fazer nada e que talvez ir na direção da morte valeria mais a pena do que viver muito em um cárcere agoniante. Embora nem sempre fosse assim, nessa situação tinha convicção de que o risco valia muito mais que a certeza. Por isso, se levantou lentamente e, assim que terminou de ficar em pé, gritou o mais alto que pôde para afastar os seus demônios. Se sentiu mais aliviado e gritou uma segunda vez, mas nessa começou a correr o mais rápido que pode. Atingiu o vidro com o máximo de sua força e usou o ombro como ponta de lança. Cacos de vidro se espalharam para todos os lados e começaram a cair de uma altura gigantesca junto com o corpo de João. Ele sentia o vento frio que entrava em contato com a sua pele quente e a sensação de liberdade que isso criava o fazia crer que podia voar, embora caísse em uma velocidade extremamente alta. Via rapidamente diversas partes da paisagem, tendo rápidas visões do verde da floresta e da queda d’água que estava ao seu lado. Talvez por ter simplesmente se livrado do peso de ter que tomar a decisão ou por algum outro motivo que ele nem sequer entendia, João gritava ao mesmo tempo em que tentava esboçar um sorriso. Com certeza estava feliz nos últimos segundos antes de acordar.
Abriu os seus olhos lentamente, ainda confuso com tudo o que estava acontecendo. Só conseguia ver luzes e paredes brancas, o deixando com o coração acelerado. Os seus movimentos estavam limitados, mas não entendia o porquê disso. Ouvia vozes que pareciam estar muito distantes e que foram lentamente se aproximando. Depois de um tempo, conseguiu ver uma imagem ainda um pouco desfocada que conseguiu identificar como um médico.
Aos poucos conforme os seus sentidos melhoravam, as notícias começaram a ser dadas. Depois de umas duas horas que havia enviado o trabalho, o professor havia respondido com as diversas mudanças necessárias. João foi acordado com o aviso do computador de recebimento de e-mail e, como o prazo era curto, resolveu acordar, ir até alguma loja que estivesse aberta e comprar energético, café e qualquer outra coisa que o deixasse acordado. Ele foi de carro, pois a única loja aberta durante a madrugada era a de um posto de gasolina que ficava muito distante. No fim, bastou uma batida para deixá-lo em coma por cinco anos e meio.
Era difícil não deixar de pensar que podia ter saído do coma a qualquer momento desde que aquela janela apareceu. É claro que ele não tinha total certeza da relação entre as duas coisas já que pode ter tido muitos sonhos e esse ter sido somente um deles, mas os seus instintos tinham a certeza. Talvez muito tempo pudesse não ter sido desperdiçado e o seu corpo não definhado tanto se tivesse feito uma outra escolha. Ele não sabia na época que às vezes o tempo não tinha tempo para se ficar pensando nas escolhas.