A CABANA: CONFISSÃO
A sala parecia bastante asséptica, tal qual um consultório médico. Decerto, é o que pareceria em um primeiro momento ao observador casual, um retângulo quase que hermético em tons claros; sons dali emitidos não poderiam ser ouvidos, uma vez que se tratava do porão de uma cabana, a qual fora um palco mudo de acontecimentos macabros. Isolada no bosque, a pequena e aconchegante edificação localizava-se às margens de um lago. O feição bucólica do início de outono era marcante, representado pelas flores caídas, algumas já amareladas e ressecadas, destoantes daquelas resistentes que ainda exalavam um postimeiro aroma, como um derradeiro sussurro contido. O lago que circundava a cabana apresentava dimensões assustadoramente grandes; ladeado por residências de verão que já se mostravam desabitadas ao final da estação, encontrava-se imerso em um tom mórbido das brumas que se enlevavam num simulacro de abraço de despedida. Silêncio absoluto, denso, palpável.
No interior, a decoração rústica de madeira e pedra delineavam um aposento convidativo, aliás, inúmeros foram os saraus e recepções realizadas entre aquelas paredes no decorrer dos anos; muitas delas, com mulheres amordaçadas ou drogadas no subterrâneo, alheias à vivaz interação social na sala de estar, regada a vinho, música e eventuais declamações de poesia catalã, especial preferência do anfitrião adorado por todos. Durante os anos, aquele havia sido seu paraíso, seu palácio privativo, seu oásis, onde ele poderia ser o que quisesse, quem quisesse e ao tempo, o que quisesse; livre de julgamento, consciência, ou mesmo a mais leve noção do bem ou mal, justo ou injusto. Apenas os conceitos de legal e ilegal lhe incutiam preocupação.
De fato, tal ciência era o que o impedia de ser apanhado e posteriormente exposto e encarcerado, não que a ideia de segregação do resto do mundo lhe causasse ojeriza, a afabilidade, a polidez diplomática, eram, tão somente, uma máscara que viabilizava sua sobrevivência social. O que lhe faria falta seria a boa vida, os padrões refinados de prazer eram tão arraigados à sua existência a ponto de se confundirem com ela própria, e é claro, seu prazer secreto: matar. A ceifa da existência racional era o prazer supremo, mas curiosamente, a respeito do qual havia decidido se despedir, não fosse...
***
— Como você descobriu essa necessidade, e acima de tudo, como decidiu por colocar em prática esse instinto? — pergunta a mulher sentada do outro lado da mesa, fitando seu interlocutor com sincera curiosidade — mesmo com meus anos de psicóloga clínica, não consigo vislumbrar o momento decisivo...a.... consciência...por assim dizer.
— Não há consciência, Olga, não me sinto mal com o que eu faço, nunca me senti. Eu nunca fui abusado ou tive restrições em minha infância e juventude, nunca torturei animais ou outras crianças, molhei a cama ou tive problemas de relacionamento. Como minha terapeuta pelos últimos cinco anos, já está completamente ciente de tudo, ou quase tudo, que há para saber a meu respeito — ele responde em tom neutro, atencioso e desperto, porém destituído de qualquer traço de sentimento, robótico, artificial, como o globo ocular de um tubarão.
A resposta daquele homem de cinquenta anos, de rosto firme e traços grossos, porém bonitos, típicos da sua própria região natal, Bielorrússia, porém nascido naquele seu país de adoção, a impressionava, mas, por mais surreal que parecesse, não se mostrava como uma completa surpresa para ela. Sempre soube que ele era um sociopata, mas os condutopatas não necessariamente externam comportamento violento ou criminoso, ao contrário do que se pensa comumente. De igual forma, via de regra, a sociopatia não gera um quadro de inimputabilidade penal, uma vez que o transgressor tem ciência do caráter ilícito de seus atos e o entendimento para agir de acordo com tal perspectiva.
—...por isso, em resposta à sua pergunta... — ele continua, Olga não havia notado que seu paciente, e até mesmo, amigo, voltara a tecer considerações acerca de sua vida dupla, agora, revelada. — Quando eu contava com quinze anos, tive um vislumbre do que eu era, do que eu sou.
— Estou ouvindo, continue por favor – ela diz. As palavras eram fortes e assombrosas, externadas com calma e em tom sedutor, os pensamentos verbalizados eram absorvidos por ela, tal como um aluno dedicado à espera de uma nova revelação, um segredo em comum remetendo a um pacto ou um encontro sexual ilícito.
— Era um inverno rigoroso, eu me encontrava na casa de meus tios, para onde eu viajava durante as férias, como já lhe contei algumas vezes. Aquele sítio ainda me desperta memórias bem vivas. Uma noite eu estava com minha prima, simulávamos filmes norte-americanos nos quais os jovens se reúnem em volta da fogueira para contar histórias de terror e comer marshmallows, mas ao invés das guloseimas, dividíamos uma garrafa de vodca, subtraída do armário de bebidas de tia minha Stephane.
— Você já a mencionou em nossas sessões, ela realmente foi importante para você, não é? — indaga Olga, cada vez mais perturbada, ao mesmo tempo anestesiada e fascinada pelo que ouvia.
— Muito! Ótima mulher. Nessa noite, já um pouco embriagados, me perguntei como seria tocá-la; ela certamente não concordaria, então eu pensei que poderia matá-la. Levantei um galho que jazia ao meu lado, como aguardando aquele momento, e golpeei sua nuca deixando-a desacordada. Por alguns minutos, eu pensei em como seria apertar seu pescoço, me desfazer do corpo e em como eu me desincumbiria de cada ato, se alguém me pegaria...me dando conta de uma ereção que se tornava cada vez mais latente. — Ele para por alguns minutos, perdido em lembranças, o rosto impassível, como uma figura esculpida em mármore — eu nem me lembrei de tocar seu sexo ou me aproveitar de qualquer outro modo, aquela ideia me excitava mais do que tudo.
Após fita-la por alguns segundos, longos o suficiente para fazê-la desviar o olhar, seu paciente retoma o discurso, brindando-lhe com suas reminiscência secretas.
— Ela começava a voltar a si e resolvi que havia sido uma revelação, uma epifania tão sublime que precisava de alguém a meu lado, como para compartilhar o momento, mesmo que não pudesse contar o que se passava pela minha mente. Disse que ela havia tropeçado e batido a cabeça. Para minha sorte...ou...a dela, ela acreditou, pois já estava bastante alcoolizada. Você imagina o que é isso? Eu tive a consciência de que detinha a capacidade de extinguir uma vida, que eu queria e faria isso... aquele poder, a tortura infligida, tive um prospecto de como seria fazer isso com alguém consciente. Consciente da dor, da situação, de seu destino. O resto você pode imaginar.
— Sim, eu posso. Meu Deus... — a psicóloga agora desafia seu olhar frio por uns poucos instantes, mas sabia que não conseguiria replicar, pela primeira vez em sua vida, ela não conseguia falar, não queria, como se uma resposta pudesse contamina-la com a dimensão macabra do que lhe fora revelado.
— Você sabe que vai morrer, não é? Não há nada a ser feito a respeito – diz o homem, em tom quase pesaroso. — Acredite em mim quando digo que não queria fazer isso, Olga. Verdadeiramente, como eu preferiria que você não tivesse visto meu porão, um descuido que não é característico do meu perfil. Eu não posso me dar ao luxo de cometer erros. Não devia ter aparecido aqui sem avisar, não é apenas uma regra de etiqueta, ela poderia ter salvo sua vida. —Seu assassino a contempla por um breve momento, como se pretendesse guardar uma última imagem de alguém que lhe era bastante cara, assim como conceder-lhe uma despedida cortês — bem, não imagina o prazer que eu teria em conversar um pouco mais, contudo receberei convidados hoje à noite em minha casa da cidade.
Sem interromper seu contato visual, ele se levanta e começa a andar até ela, que se encontrava imobilizada por algemas plásticas e fita adesiva em uma cadeira antiga de madeira. Circundando-a e se posicionando logo atrás da cadeira, recomeça seu monólogo. — Quero que isso seja o mais indolor possível, eu inseriria um bisturi em seu cerebelo e a morte seria instantânea, ou talvez uma estocada no coração, logo abaixo da caixa torácica, você entraria em choque e não sentiria quase nada. Contudo, Alina está na propriedade e não posso me dar ao luxo de ficar preso limpando por muito tempo, além do mais, usei meu último estoque de drogas que mantinha na cabana, com a jovem ruiva que você viu na banheira. Por isso, lamento.
O silêncio no porão é mantido por mais alguns segundos, ela considera que até aquele momento, tudo parecia um sonho, uma névoa onírica que seria afastada por um corriqueiro abrir de olhos. Ela nunca mais dormiria, acordaria, comeria, faria sexo; recusava-se a aceitar, aquilo não devia estar acontecendo, não era natural. — Por favor, você...oh!
— Do svidaniya, Madame Bondarenko — articula o homem, em uma voz macia, enquanto habilidosamente envolve o pescoço da mulher com um garrote de fio metálico, o qual se torna cada vez mais apertado impossibilitando-a de emitir sons ou respirar. Na medida em que o fio de aço penetrava sua pele e a urina quente escorre por suas pernas, seu último pensamento antes de perder os sentidos é de que devia ter se encontrado com Leila, sua amante, como haviam combinado. Havia sido ríspida com a companheira e aquele fora o último diálogo mantido entre as duas. “Me perd...”
***
Ele fumava um cigarro enquanto contemplava o lago. Tinha planejado um desencadear de acontecimentos totalmente diferente para aquela manhã. Sentiria falta das conversas com Olga, a única pessoa com quem mantinha uma afinidade intelectual, os outros faziam parte do cenário. Pobres idiotas. Peças necessárias ao seu jogo em constante xeque-mate. Vira-se subitamente ao ouvir passos.
— Papai, o que está fazendo? Parece triste — questiona sua filha, Alina. Dez anos daquela pequenina boneca de carne que fazia com que esboçasse um singelo sentimento, que ele poderia chamar, talvez, de amor, caso fosse capaz de senti-lo.
— Nada, minha querida, apenas tive que fazer algo que não queria.
— E isso está lhe fazendo sentir mal? — Sua sagacidade refletia uma idade mais madura, parecia que a pequena diabinha podia ler pensamentos. Após alguns segundos de pausa e reflexão, ele responde, sincero e resoluto — não! agora vá correndo, espere no carro, voltaremos para a cidade em alguns instantes.
— Está bem, vou encontrar o Teddy — diz, referindo-se ao seu urso de pelúcia, amigo fiel de anos, e se retira, correndo de volta ao jardim.
Ainda fitando as águas, agora uma imagem embaçada pela fumaça do segundo cigarro acendido no que restara do primeiro, o dono da charmosa e misteriosa cabana pensa que Olga ali permanecerá para sempre, até quando ele mesmo não se lembrasse mais dela, em um olhar pela janela, um passeio a pé, em rememorações involuntárias que afloram à mente em momentos de nostalgia, consciente ou não. Ela estaria para sempre no fundo do lago, adormecida, atormentada, plácida, liberta, e de todas as formas com as quais ele pudesse fantasiar; sim, na calmaria do lago, no silêncio, o silencio que serve de companhia fiel, zelosa, dedicada, perigosa. O destino era realmente algo muito curioso, ele lembra por um instante do final de um dos livros de Mario Puzo, "Como era mesmo?” Ah! Sim, “Mas que mundo cruel que leva um homem a pecar”, e limpando sua mente de quaisquer outros pensamentos, se apruma arremessando o restante da cigarrilha na água, como uma flor atirada em oferta numa cova durante um ritual fúnebre de despedida.
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A sala parecia bastante asséptica, tal qual um consultório médico. Decerto, é o que pareceria em um primeiro momento ao observador casual, um retângulo quase que hermético em tons claros; sons dali emitidos não poderiam ser ouvidos, uma vez que se tratava do porão de uma cabana, a qual fora um palco mudo de acontecimentos macabros. Isolada no bosque, a pequena e aconchegante edificação localizava-se às margens de um lago. O feição bucólica do início de outono era marcante, representado pelas flores caídas, algumas já amareladas e ressecadas, destoantes daquelas resistentes que ainda exalavam um postimeiro aroma, como um derradeiro sussurro contido. O lago que circundava a cabana apresentava dimensões assustadoramente grandes; ladeado por residências de verão que já se mostravam desabitadas ao final da estação, encontrava-se imerso em um tom mórbido das brumas que se enlevavam num simulacro de abraço de despedida. Silêncio absoluto, denso, palpável.
No interior, a decoração rústica de madeira e pedra delineavam um aposento convidativo, aliás, inúmeros foram os saraus e recepções realizadas entre aquelas paredes no decorrer dos anos; muitas delas, com mulheres amordaçadas ou drogadas no subterrâneo, alheias à vivaz interação social na sala de estar, regada a vinho, música e eventuais declamações de poesia catalã, especial preferência do anfitrião adorado por todos. Durante os anos, aquele havia sido seu paraíso, seu palácio privativo, seu oásis, onde ele poderia ser o que quisesse, quem quisesse e ao tempo, o que quisesse; livre de julgamento, consciência, ou mesmo a mais leve noção do bem ou mal, justo ou injusto. Apenas os conceitos de legal e ilegal lhe incutiam preocupação.
De fato, tal ciência era o que o impedia de ser apanhado e posteriormente exposto e encarcerado, não que a ideia de segregação do resto do mundo lhe causasse ojeriza, a afabilidade, a polidez diplomática, eram, tão somente, uma máscara que viabilizava sua sobrevivência social. O que lhe faria falta seria a boa vida, os padrões refinados de prazer eram tão arraigados à sua existência a ponto de se confundirem com ela própria, e é claro, seu prazer secreto: matar. A ceifa da existência racional era o prazer supremo, mas curiosamente, a respeito do qual havia decidido se despedir, não fosse...
***
— Como você descobriu essa necessidade, e acima de tudo, como decidiu por colocar em prática esse instinto? — pergunta a mulher sentada do outro lado da mesa, fitando seu interlocutor com sincera curiosidade — mesmo com meus anos de psicóloga clínica, não consigo vislumbrar o momento decisivo...a.... consciência...por assim dizer.
— Não há consciência, Olga, não me sinto mal com o que eu faço, nunca me senti. Eu nunca fui abusado ou tive restrições em minha infância e juventude, nunca torturei animais ou outras crianças, molhei a cama ou tive problemas de relacionamento. Como minha terapeuta pelos últimos cinco anos, já está completamente ciente de tudo, ou quase tudo, que há para saber a meu respeito — ele responde em tom neutro, atencioso e desperto, porém destituído de qualquer traço de sentimento, robótico, artificial, como o globo ocular de um tubarão.
A resposta daquele homem de cinquenta anos, de rosto firme e traços grossos, porém bonitos, típicos da sua própria região natal, Bielorrússia, porém nascido naquele seu país de adoção, a impressionava, mas, por mais surreal que parecesse, não se mostrava como uma completa surpresa para ela. Sempre soube que ele era um sociopata, mas os condutopatas não necessariamente externam comportamento violento ou criminoso, ao contrário do que se pensa comumente. De igual forma, via de regra, a sociopatia não gera um quadro de inimputabilidade penal, uma vez que o transgressor tem ciência do caráter ilícito de seus atos e o entendimento para agir de acordo com tal perspectiva.
—...por isso, em resposta à sua pergunta... — ele continua, Olga não havia notado que seu paciente, e até mesmo, amigo, voltara a tecer considerações acerca de sua vida dupla, agora, revelada. — Quando eu contava com quinze anos, tive um vislumbre do que eu era, do que eu sou.
— Estou ouvindo, continue por favor – ela diz. As palavras eram fortes e assombrosas, externadas com calma e em tom sedutor, os pensamentos verbalizados eram absorvidos por ela, tal como um aluno dedicado à espera de uma nova revelação, um segredo em comum remetendo a um pacto ou um encontro sexual ilícito.
— Era um inverno rigoroso, eu me encontrava na casa de meus tios, para onde eu viajava durante as férias, como já lhe contei algumas vezes. Aquele sítio ainda me desperta memórias bem vivas. Uma noite eu estava com minha prima, simulávamos filmes norte-americanos nos quais os jovens se reúnem em volta da fogueira para contar histórias de terror e comer marshmallows, mas ao invés das guloseimas, dividíamos uma garrafa de vodca, subtraída do armário de bebidas de tia minha Stephane.
— Você já a mencionou em nossas sessões, ela realmente foi importante para você, não é? — indaga Olga, cada vez mais perturbada, ao mesmo tempo anestesiada e fascinada pelo que ouvia.
— Muito! Ótima mulher. Nessa noite, já um pouco embriagados, me perguntei como seria tocá-la; ela certamente não concordaria, então eu pensei que poderia matá-la. Levantei um galho que jazia ao meu lado, como aguardando aquele momento, e golpeei sua nuca deixando-a desacordada. Por alguns minutos, eu pensei em como seria apertar seu pescoço, me desfazer do corpo e em como eu me desincumbiria de cada ato, se alguém me pegaria...me dando conta de uma ereção que se tornava cada vez mais latente. — Ele para por alguns minutos, perdido em lembranças, o rosto impassível, como uma figura esculpida em mármore — eu nem me lembrei de tocar seu sexo ou me aproveitar de qualquer outro modo, aquela ideia me excitava mais do que tudo.
Após fita-la por alguns segundos, longos o suficiente para fazê-la desviar o olhar, seu paciente retoma o discurso, brindando-lhe com suas reminiscência secretas.
— Ela começava a voltar a si e resolvi que havia sido uma revelação, uma epifania tão sublime que precisava de alguém a meu lado, como para compartilhar o momento, mesmo que não pudesse contar o que se passava pela minha mente. Disse que ela havia tropeçado e batido a cabeça. Para minha sorte...ou...a dela, ela acreditou, pois já estava bastante alcoolizada. Você imagina o que é isso? Eu tive a consciência de que detinha a capacidade de extinguir uma vida, que eu queria e faria isso... aquele poder, a tortura infligida, tive um prospecto de como seria fazer isso com alguém consciente. Consciente da dor, da situação, de seu destino. O resto você pode imaginar.
— Sim, eu posso. Meu Deus... — a psicóloga agora desafia seu olhar frio por uns poucos instantes, mas sabia que não conseguiria replicar, pela primeira vez em sua vida, ela não conseguia falar, não queria, como se uma resposta pudesse contamina-la com a dimensão macabra do que lhe fora revelado.
— Você sabe que vai morrer, não é? Não há nada a ser feito a respeito – diz o homem, em tom quase pesaroso. — Acredite em mim quando digo que não queria fazer isso, Olga. Verdadeiramente, como eu preferiria que você não tivesse visto meu porão, um descuido que não é característico do meu perfil. Eu não posso me dar ao luxo de cometer erros. Não devia ter aparecido aqui sem avisar, não é apenas uma regra de etiqueta, ela poderia ter salvo sua vida. —Seu assassino a contempla por um breve momento, como se pretendesse guardar uma última imagem de alguém que lhe era bastante cara, assim como conceder-lhe uma despedida cortês — bem, não imagina o prazer que eu teria em conversar um pouco mais, contudo receberei convidados hoje à noite em minha casa da cidade.
Sem interromper seu contato visual, ele se levanta e começa a andar até ela, que se encontrava imobilizada por algemas plásticas e fita adesiva em uma cadeira antiga de madeira. Circundando-a e se posicionando logo atrás da cadeira, recomeça seu monólogo. — Quero que isso seja o mais indolor possível, eu inseriria um bisturi em seu cerebelo e a morte seria instantânea, ou talvez uma estocada no coração, logo abaixo da caixa torácica, você entraria em choque e não sentiria quase nada. Contudo, Alina está na propriedade e não posso me dar ao luxo de ficar preso limpando por muito tempo, além do mais, usei meu último estoque de drogas que mantinha na cabana, com a jovem ruiva que você viu na banheira. Por isso, lamento.
O silêncio no porão é mantido por mais alguns segundos, ela considera que até aquele momento, tudo parecia um sonho, uma névoa onírica que seria afastada por um corriqueiro abrir de olhos. Ela nunca mais dormiria, acordaria, comeria, faria sexo; recusava-se a aceitar, aquilo não devia estar acontecendo, não era natural. — Por favor, você...oh!
— Do svidaniya, Madame Bondarenko — articula o homem, em uma voz macia, enquanto habilidosamente envolve o pescoço da mulher com um garrote de fio metálico, o qual se torna cada vez mais apertado impossibilitando-a de emitir sons ou respirar. Na medida em que o fio de aço penetrava sua pele e a urina quente escorre por suas pernas, seu último pensamento antes de perder os sentidos é de que devia ter se encontrado com Leila, sua amante, como haviam combinado. Havia sido ríspida com a companheira e aquele fora o último diálogo mantido entre as duas. “Me perd...”
***
Ele fumava um cigarro enquanto contemplava o lago. Tinha planejado um desencadear de acontecimentos totalmente diferente para aquela manhã. Sentiria falta das conversas com Olga, a única pessoa com quem mantinha uma afinidade intelectual, os outros faziam parte do cenário. Pobres idiotas. Peças necessárias ao seu jogo em constante xeque-mate. Vira-se subitamente ao ouvir passos.
— Papai, o que está fazendo? Parece triste — questiona sua filha, Alina. Dez anos daquela pequenina boneca de carne que fazia com que esboçasse um singelo sentimento, que ele poderia chamar, talvez, de amor, caso fosse capaz de senti-lo.
— Nada, minha querida, apenas tive que fazer algo que não queria.
— E isso está lhe fazendo sentir mal? — Sua sagacidade refletia uma idade mais madura, parecia que a pequena diabinha podia ler pensamentos. Após alguns segundos de pausa e reflexão, ele responde, sincero e resoluto — não! agora vá correndo, espere no carro, voltaremos para a cidade em alguns instantes.
— Está bem, vou encontrar o Teddy — diz, referindo-se ao seu urso de pelúcia, amigo fiel de anos, e se retira, correndo de volta ao jardim.
Ainda fitando as águas, agora uma imagem embaçada pela fumaça do segundo cigarro acendido no que restara do primeiro, o dono da charmosa e misteriosa cabana pensa que Olga ali permanecerá para sempre, até quando ele mesmo não se lembrasse mais dela, em um olhar pela janela, um passeio a pé, em rememorações involuntárias que afloram à mente em momentos de nostalgia, consciente ou não. Ela estaria para sempre no fundo do lago, adormecida, atormentada, plácida, liberta, e de todas as formas com as quais ele pudesse fantasiar; sim, na calmaria do lago, no silêncio, o silencio que serve de companhia fiel, zelosa, dedicada, perigosa. O destino era realmente algo muito curioso, ele lembra por um instante do final de um dos livros de Mario Puzo, "Como era mesmo?” Ah! Sim, “Mas que mundo cruel que leva um homem a pecar”, e limpando sua mente de quaisquer outros pensamentos, se apruma arremessando o restante da cigarrilha na água, como uma flor atirada em oferta numa cova durante um ritual fúnebre de despedida.
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