O Sorriso
Já havia dias que ele a via. Todos os dias. Era perceptível que havia rolado alguma coisa, os olhares já não eram tão discretos, ele até havia sido chamado à atenção, não podia fazer isso, era demissão certa, ele estava trabalhando. Mas é que ela era muito linda, só que ele não entendia por que ela o olhava daquele jeito. Olhava mesmo. Muito. Ele sorriu pra ela outro dia“Hola!”, e ela disse que ele tinha um lindo sorriso... Então iniciou uma espécie de caça “discreta” até que o mais inesperado acontecesse pra ele. Fora fisgado. Um número de telefone... conversas confusas... Mas o interesse estava confirmado. Que sorte...! Agora ela estava com um vestido florido que sobre sua pele macia como a lã mais pura que ele sequer conhece o fez planar por sobre muros salivando entre desejos dos mais loucos... e então ele voltou pra realidade e percebeu que o chefe o olhava. Achou que todos o olhavam. O movimento no restaurante estava intenso. Ela sentou com a amiga. A bandeja na mão dele pesava cem quilos.
Calma. Essa história é confusa, mas vamos por partes. O final se justifica.
No trabalho dele havia pessoas de todo o mundo, era um lugar ideal para se conhecer um pouco mais sobre a natureza humana, lidar com expectativas gera uma infinidade de situações estranhas, e em um hotel de luxo à beira mar as coisas mais tolas são pretextos para que a submissão e subserviência cegas sejam a doutrina e política para que se seja um bom funcionário, pra ter a foto colada no mural que não é visto todos os dias pelos mesmos olhos cansados de sempre, os outros ignoram tanto como ele aquelas notícias internas, mas era isso o máximo a que era possível sonhar no setor do restaurante, dali só se saia pra rua, seria sempre assim. Só hipocrisia. Crescimento e todo esse papo de oportunidade era uma coisa que dependia de outros fatores e fatos, por isso pra ele tanto fazia, não almejava nada ali, então o que lhe aconteceria na sequência dos fatos era apenas consequência de como ele via aquilo tudo e também o que ele pensava ser a vida e esses papos estranhos típicos de pessoas problemáticas com a dádiva do pensar. Ele sabia muito bem de sua posição e sabia também que essa era a condição para que ele pudesse ir além...
Mas ele não saia do canto.
“Meu velho se controle ae porque o Capitão do Mato já tá ligado ae, disse que você é vacilão, olha descarado”, sempre tem alguém que dá aquele toque.
“De buena, culo de pato!”, ele disse cínico. Improvável que acreditassem que poderia haver alguma chance, a diretoria apenas queria evitar constrangimentos que pudessem resultar em prejuízos financeiros para a empresa, ele não era um garoto, admitia que tinha realmente vacilado mas procurou se controlar. Outro dia uma gringa faturou uma bolada só por causa de umas boas olhadas num outro hotel. Mas o infeliz meliante era um senhor de quarenta. Viu quando ela se levantou com a amiga não sem antes olhá-lo nos olhos. O vestido colado às curvas.
“Muy linda...” ele falou com lábios mudos e discretos e ela entendeu com um leve e rápido sorriso. As duas sorriram depois ainda olhando pra trás. Elas estavam no 507.
Foi mais ou menos assim que aconteceu naquele estranho dia de terça feira. E então três dias se passaram sem que se vissem. Ele amargou nesse tempo, procurou informações em sigilo com um brother da recepção e obteve que as excursões estavam tomando bastante tempo das amigas argentinas, geralmente dormiam cedo e saiam cedo para conhecer praias e gastar o precioso dinheiro dos pais com momentos únicos e marcantes em paisagens paradisíacas não gratuitas. Ele não aceitava que só havia mais dois dias, talvez nem uma chance a mais e então ficaria nele apenas aquela amargura de quem chuta e acerta na trave. Elas voltariam no Domingo para Córdoba. As conversas pelo telefone não estavam sendo produtivas, ele não sabia escrever em castellano e eles pouco se falaram. Tentou um inglês de tradutor mas não sabia se havia rolado. Tinha que haver uma solução. Então ele acreditou. Afiou o Portunhol. Cara à cara era outro papo.
Sábado. Sempre aquele dia cheio de surpresas e certamente muitos suínos repartidos entre milhares de panelas ao redor da cidade, samba e cachaça e a cidade é um só pulsar. No trabalho ele já estava tendo um surto de ansiedade porque sabia que elas não haviam saído à passeio, talvez se se vissem uma vez mais pudesse rolar a tentativa final. Era cedo ainda. Ele tinha que falar com ela olhando-a nos olhos. Capitão do Mato tinha dado uma sumida, talvez estivesse tentando assediar algum estagiário, ele não era muito confiável quando sob pressão hormonal, mas quem quiser que questione a palavra dele diante do proprietário da empresa, o Imperador, o Poderoso e Grandioso Senhor dos Dólares, Retalhador de Almas Indefesas, o homem com as bolas mais babadas do pedaço, muitos já haviam perdido os empregos e ele sabia que naquele exato momento infeliz de sua complicada vida, aquele emprego era essencial. Não por dinheiro, mas sim porque os caminhos o estavam levando para algo mais. Sua intuição era sua guia e sempre havia sido sua maior fortaleza. Não tinha nada a não ser o sentir, ele sentia bem, sabia que ali tinha que ter algo, como uma mulher tão linda, não, extremamente linda como aquela, poderia estar interessada em alguém como ele? Digo, não por quem ele realmente era, mas como por alguém que se apresentou diante dela como apenas um peão fustigado pela impotência em conseguir mudar a rota de seu destino implacável, mesmo sabendo que mudar era a meta irreversível que ele havia escolhido, por que ele? Ela não apareceu para o café... Mas...
Ele obteve a resposta.
Segue-se um pouco a narrativa e aconteceu que ele havia conseguido uma rápida conversa com ela pessoalmente à tarde, quando como um sonho ela surgiu na piscina da cobertura, de biquíni, enquanto ele sacudia a coqueteleira como um louco tentando terminar os trezentos pedidos que ainda faltavam ser produzidos. O corpo definido dela com um leve bronzeado dourando a pele de neve. O coração dele disparou e quase houve um infarto. Ela havia dito “Puedes a las quince? En mi habitácion?”, baixinho, ele havia entendido, ela se aproximou do balcão, enquanto ela falava ela sorria e por trás dos óculos não se podia ver seus olhos, o que dava vantagens a ela, ele, exposto, transbordava no olhar o desejo de ter aquela mulher custasse o que fosse. Mas ela disse de novo
“Me gusta tu sonrisa...”, e ele com os dentes brancos e alinhados expostos com o repuxo precisamente calculado dos lábios para que não se escancarasse seu maior sorriso, a olhava dos pés à cabeça e ele imaginou que só em sonho poderia estar vivendo algo como aquilo.
“Gracias senhorita...”. Ela estava totalmente entregue. Mas o que ela queria? Ele sabia que não poderia se arriscar e cometer o terrível erro de tentar ter algo nas dependências do lugar onde trabalhava, mas sabia que precisava fazer algum sacrifício já que a recompensa seria algo sublime demais pra ser sequer mensurado... Como poderia um sorriso conseguir aquilo tudo?
Ele então olhou a hora. Faltavam só vinte minutos para o momento de glória. As mãos dele tremiam de tanto nervosismo e adrenalina cruéis, ele precisava dar um jeito de colocar alguém em seu lugar já que só sairia às 16. Enquanto isso os hóspedes não paravam de chegar, pedidos daqui queixas de lá, e ele ouvia tudo no automático, e isso ficou ainda mais explícito quando ele a viu sair da piscina com um movimento de uma sensualidade exultante, descer os degraus com o olhar fixo no dele e dobrar em direção aos elevadores com uma aura de mistério circundando seu corpo escultural. Ela queria. Ele também. Mas quais as chances de isso dar certo?
Faltavam 5 para as 15.
Ele solicitou um pequeno reforço e prontamente foi atendido, o maitrê gostava dele, quer dizer, de seu trabalho, o melhor ainda é que foi um parceiro quem subiu para ampará-lo em sua queda rumo ao desejo que lhe pulsava por todo o corpo, parecia que ele era outra vez um adolescente que cansado das revistas e dvds pornôs, resolve agendar com alguma garota profissional, ele revia a cena que julgava que aconteceria em instantes, faria assim... assado... por cima... por baixo... Chega.
“Mano eu vou aqui rapidão viu, se liga se alguém me procurar diz que eu fui cagar”, ele saiu como que galopando na direção do elevador de serviço, já havia bolado a estratégia, mesmo cinco minutos atrasado ele sabia que se ela realmente queria ela esperaria, ela gostava do sorriso dele, ele agora só sorria, ele era o próprio sorriso, o resto dele servia ao sorriso como um servo que depende de alguma compaixão. Foi seu sorriso que conseguiu aquilo, ele não havia dito nada, jamais pensou que poderia rolar algo assim, já havia curtido muito na vida mas aquilo era algo como uma droga poderosa que o estava fazendo se sentir como algum tipo de coisa super poderosa, poderosa tipo aqueles filmes loucos com cenas bizarras de coisas impossíveis. Ele estava viajando literalmente. Ele era o máximo. Lindo... bonitão... charmosão... Ia catar uma gringa. Pela primeira vez.
Diante do corredor agora era só acreditar que tudo estava nas mãos do bom Pai Amado do Céu e que se fosse pra rolar ia rolar, ele só precisaria se aproximar da porta naturalmente, aguardar que ela o atendesse, pedir para entrar, e então...
Ele bate 5 vezes.
Toc toc toc toc toc...
“Serviço de quarto”
Nada de resposta.
Toc toc toc toc toc...
“Serviço de quarto”, a voz dele meio que travou de tanta excitação.
Então a porta se abriu.
“Hola, veni”, ela fez um sinal com a mão como uma serpente que convida o pobre rato para conhecer seu lar, vai ser legal... você não vai querer sair... e ele entrou devagar, natural, sabia que as câmeras o estavam vendo mas era tão confiante que sabia também que ninguém estaria assistindo porque na verdade aquilo tudo era só pra que as coisas parecessem seguras. Não que não fossem, mas só o fato de temer ser visto já evita o ato. Inibição. Ele não temia, então quando percebeu já estavam com a porta trancada, e ele mais parecendo prestes a ter um AVC.
“Yo te quiero linda...”, ele disse e já foi partindo como um pitbull em direção ao pescoço da vítima, ela, que se chamava Carolina e ele sequer imaginava, ela disse se chamar Andrea, se afastou um pouco e ele pensou que estava tudo perdido... ela o acusaria de assédio ou de estupro e pronto... fudeu... ele iria ficar mais folgado que servidor público.
“Así no... solo un rrrato... despacito...”, ela se afastou até a cama e só então ele percebeu que ela estava de roupão e de repente... o roupão já estava no chão... e não... Ele sentia que iria explodir literalmente diante do que estava vendo. Ela caminhou como uma gata sobre uma das camas de solteiro do quarto inteiramente nua, os cabelos loiros sobre as costas se encerrando sobre as nádegas macias e protuberantes... e ele sequer imaginava quantos segundos ou minutos haviam se passado desde que adentrara naquela esfera de impossibilidade que ele jamais imaginaria como terminaria. Ela miou olhando pra ele da cama. Queria provocação. Ela era a forasteira, o que acontecesse ali ficaria ali depois que ela voltasse pra vida real dela. Ele respirou aliviado e logo estava quase tirando a camisa, mas parou e decidiu que abriria só o zíper da calça, ele estava realmente preocupado com a possibilidade de ser pego e o que tudo isso resultaria. “Mas que se foda”, ele pensou. Aquele era o momento mais insano e provavelmente mais excitante da vida dele. A camisinha foi sacada como se fosse uma arma do coldre.
“Yo tengo que decir-te una cosa....”, ela disse e rapidamente o Portunhol dele captou que de repente as coisas poderiam mudar. Ele se conteve. O que aconteceu foi que ela disse “Yo quiero un hijo...”. Hijo... Hijo... Era uma palavra familiar... Ele entendeu o sentido do que ela acabara de dizer porque não tinha o menor sentido dizer aquilo tinha? Como assim? Um filho? Ele sequer imaginava há quanto tempo estava no quarto da gringa ou o que se passava no bar, se alguém havia notado a ausência dele e então de repente as coisas poderiam mudar mesmo. Mas dentro de sua mente ousada havia pouco crédito para especulações que fossem contra as chances de êxito que ele havia metodicamente planejado. Era só ter calma e tentar entender o que ela estava dizendo. Ela vestiu o roupão outra vez. Ele, perplexo. Que mulher era essa... Pra economizar diálogos, o que ele entendeu nos dois minutos que se seguiram passados os primeiros três desde que ele adentrara no recinto da medusa foi que ela iria embora na madrugada e que queria levar do Brasil um filho com um sorriso como o dele... Só que teria que acontecer da maneira que ela propunha. Ela disse que mandaria o endereço via celular e que à noite o aguardaria. Falou decidida e olhou para a porta. Ele, com um inchaço abaixo da fivela que o denunciaria à distância, ficou atônito por alguns segundos porque não havia perdido a chance, não, ainda havia esperança, só que na cabeça dele a imagem dela engatinhando na cama dois minutos antes ainda estava totalmente fresca... Ela então fez um sinal de impaciência risonha antes de beijá-lo na boca... e ele saiu do apartamento sem sequer se importar se haveria algum outro funcionário por perto, sua autoconfiança estava de tal forma engrandecida que ele já havia se decidido ir embora, inventaria qualquer coisa mas não ficaria mais um minuto no hotel, precisava sair e se preparar porque algo muito louco aconteceria com ele, algo que ele jamais imaginaria... Seu sorriso sempre fora infalível, ali estava a prova mas ele não precisava de prova, a vida inteira havia sido daquela maneira, sorria e as meninas já o olhavam devolvendo-lhe sorrisos... E talvez essa tenha sido sua realidade desde que ele entendeu que as pessoas sempre se iludem com o belo, geralmente o belo consegue fazer com que os próprios olhos deixem de ver o que não contém em seus traços a doçura de algo atraente, há uma chama que convida para se queimar em seus delírios escondendo fatalmente a adaga que cedo ou tarde o belo cravará nas costas do desavisado que insistir em não tirar os olhos daquilo que só atrai e nunca repele. Desejar alimenta em nós uma faísca que conforme a sopramos vai virando uma pequena brasa, e até que seja fogo, coisas terão acontecido, e coisas certamente aconteceriam até que ela o contatasse.
“Tu tava aonde hein fi da peste? Demora do cranco”, assim disse seu parceiro de suplício quando ele apareceu no bar lotado de hóspedes exigentes, só que não houve nenhuma resposta, pois o felizardo estava tão absorto em fantasias que passou direto por ele e desceu rumo ao relógio de ponto sem sequer dar algum tipo de satisfação para Capitão do Mato, naquele instante ele mais queria era que ele e todos naquele maldito hotel fossem pra o inferno. Ele sempre viu as vísceras daquela majestosa construção e sempre foi isso que o encheu de um nojo profundo pelo ser humano porque ser falso era algo que ele só conseguia ser se fizesse muito esforço, não conseguia ser como a maioria que estava ali para realizar sonhos de terceiros sendo o pesadelo para as formigas que apenas esfregam o chão, limpam privadas, recolhem pratos e realizam todo o tipo de função asquerosa para as mãos macias e esterilizadas dos que podem pagar pela servidão. Que se danem. Ele tinha que aproveitar ao menos uma oportunidade já que lá ele só se ferrava. Era o preço por nascer pobre. Mas não era isso que o demoveria de sua decisão de provar o contrário, nem que ele tivesse que se dar ao sacrifício. Um dia ele faria a parte dele contra todos esses sanguessugas nojentos. Ele bateu o ponto e se retirou sem saber que já estavam à sua procura querendo sua cabeça em uma bandeja.
Quando tomou o ônibus não tirou os olhos um segundo do celular aguardando o tal sinal, queria mandar algo pra ela mas se conteve e preferiu aguardá-la para não assustá-la, não queria parecer que aquilo tudo era assim tão impossível pra ele, ele também não era de se jogar fora, pelo menos era o que diziam. Nenhum sinal até que ele desembarcou em casa e de dentro dele uma vontade avassaladora e conhecida despertou aquele velho desejo de curtir à sua moda o que a vida estava tentando ensiná-lo. Comprou algumas cervejas, quer dizer, várias cervejas, amendoins e cigarros proibidos e foi para a casa, feliz e sonhador como um moleque que acaba de dar o primeiro beijo, pelo menos essa era a lembrança mais agradável que ele tinha em relação às mulheres, as primeiras, ele sabia que ali havia inocência, e isso o mostrava o quanto ele havia mudado, tudo havia mudado e tudo havia se perdido desde que ele precisou crescer. Agora ali estava ele, ouvindo suas músicas preferidas e brindando à ele por estar podendo viver um momento tão inusitado e transformador, embora sexo fosse a sua principal meta, isso ele não duvidava, até porque a culpa não era dele, entende, ser homem é estar sob leis irrevogáveis, e a Lei do Belo é uma delas. Ele não sabia nada sobre aquela mulher, sua história, a criança que ela havia sido, o que ela queria e pensava ser a vida entre outras coisas que pra ele eram importantes pra que se pudesse haver algo verdadeiro entre duas pessoas. Só sabia que ela o atraia fatalmente. Mas será que ele estava enlouquecendo? A mulher iria embora para outro país, milhares de quilômetros dele, mas a questão principal era o que ela havia dito e a necessidade real de que ele pensasse seriamente à respeito: ela queria um filho. Ele olhou nos olhos dela quando ela disse isso, embora o corpo dela tivesse desviado a atenção dele durante quase todo o tempo, naquele momento ele a olhava e sentiu que ela estava falando sério. Mas isso não parecia algo correto de maneira alguma pra o lado dele que acreditava em coisas certas. Ele então preferiu acabar com as cervejas e refletiu que somente algo muito verdadeiro o demoveria de sua decisão, mas que estaria pronto para abdicar de tal realização brutal de um desejo dominador se realmente fosse o melhor pra ele.
O celular vibra. É uma mensagem.
“Yo voy estar en la Playa Bela Pousada, habitácion 304, cerca del hotel. A las 22. Tengo solo una hora. Me gusta tu sonrisa...Veni pra mi... Te quiero...”.
Confuso por um pouco de embriaguez e muitos pensamentos ele acendeu um dos cigarros proibidos e não ficou tão empolgado como achou quando leu a mensagem. Algo nele estava diferente, a alteração dos sentidos sempre foi singular na maneira como ele interpretava as coisas. Então novamente o celular vibrou e ele viu uma foto que imediatamente o apontou a escolha final e ele decidido resolveu que poderia dar um cochilo antes de sair rumo ao endereço que ele conhecia bem. Na foto ela estava de lingerie vermelha. Já estava feito. Pôs o despertador para tocar às 20 e pensou que seria tempo suficiente pra chegar de ônibus, estava sem grana então não poderia vacilar, taxi era inviável. Adormeceu.
Susto.
Com o coração aos pulos ele saltou da cama como se estivesse sendo atacado por piranhas selvagens num rio tranquilo. “Puta que pariu!”, ele tinha perdido a hora! Não podia ser... Quer dizer, eram 21:50, agora só se ele a contatasse e pegasse uma moto, ainda assim ele levaria 30 minutos se arriscasse a vida com o motoqueiro para chegar no destino, e talvez ela já não estivesse esperando. Mas de repente ele vislumbrou no fundo de uma possibilidade remota de tudo aquilo estar sendo uma grande cilada, algo à serviço de um aprendizado maior e revelador ... uma frase vinda de dentro... “Se o belo engana e você se engana... quem não se engana se os dois enganam?”, foi como ouvir a voz da Esfinge. Soou do fundo de sua essência. Ele sempre tinha uns insights loucos. Tomou banho às pressas e avisou à ela que estava indo quando viu a mensagem que dizia “Estoy aca, veni...” de 10 minutos antes, encheu-se de repente de uma confiança que o desmotivou porque ele havia visto um sinal. Qual seria o preço daquela mudança? Pensou na frase... “Se o belo...”. Ele, que embora um peão fustigado sabia ver as coisas, via naquele momento que jamais poderia olhar pra alguém com olhar de julgamento porque estava sendo como qualquer um naquele exato instante em que apressadamente ele se perfumava ainda embriagado pela sessão de comemoração de horas antes, tropeçou no centro da sala e lançou um insulto mudo, não gostava de pronunciar negatividade. Vibe positiva.
Quando se atirou à rua com passos rápidos e incertos (realmente havia exagerado nas cervejas, bem possivelmente falharia na hora H se não revertesse aquela sensação) ele se preocupava em saber se estaria fazendo a coisa certa já que uma moto-táxi vinha calmamente em sua direção quando ele acenou. As coisas estavam acontecendo. Seus pensamentos estavam de tal forma leves e se encaixando que ele mal parecia ter um corpo, ele era apenas pensamentos porque ele sabia que o enigma dizia que ele também estava a enganando, e ela a ele, e os dois eram peças opostas diante do que ele sabia que precisaria aprender com os acontecimentos futuros, ele queria mudar de verdade, era um tolo mas não desistiria de ser melhor, ceder à um desejo não é só condenação, mas é preciso que essa escolha seja feita antes de ter o desejo atendido, caso não, a vida escolhe.
As imagens que se sucederam depois que ele subiu na moto são incertas, parece até que ele havia adormecido em cima de uma moto trafegando a mais de 100 por hora, mas incrivelmente eles levaram 15 minutos pra cumprir o trajeto que de ônibus levaria uma hora. Ele despertou e viu em um quarteirão antes da pousada uma floricultura ainda aberta e pediu que o motoqueiro o deixasse ali. De repente um romantismo com pitadas fúnebres o tocou e ele decidiu comprar uma rosa para dá-la de presente se realmente fosse pra eles terem a chance de possivelmente conceber uma vida que ele jamais conheceria e depois pensaria se o que fez foi o certo. Ele havia esquecido que também havia feito escolhas, havia provocado e cedido também, sabia que agora era tarde pra querer ser vítima porque ele bem sabia que havia uma história por trás de suas decisões e agora já era. Escolheu um cravo.
Olhou a hora e viu que teriam maravilhosos trinta minutos, levaria cinco até a pousada, mas só se ele fosse correndo. Seria bom pra aliviar o álcool, ele pensou, segurou a flor e começou a trotar para não chegar suado na pousada, começou a trotar e seus pensamentos foram rumo à cena final daquele dia tão cheio de coisas estranhas e que certamente ele faria questão de lembrar que foi um dia diferente. Um dia em que ele resolveu acreditar um pouco mais em decisões por decisões... O que ele faria com a gringa...! Começou a correr mais rápido, e pensou que se enganar também faz parte do crescer, fazer sacrifícios não é só falar e sim sentir na pele o peso das escolhas e buscar transcender os valores que podem enganar a nós mesmos, porque eles precisam ser tão retos quantos quem os concebem, e pra ser exemplo, é preciso muito. Ele então começou a sentir vontade de ir mais rápido, não poderia começar a ser pessimista naquele momento, naquele exato momento em que corria como um maratonista porque havia se dado conta de que não havia sido ele quem tinha conquistado aquilo, não, tinha sido seu sorriso... Não era culpa dele, ele apenas estava à serviço do sorriso e ele sempre existiria, se ele não tivesse esse sorriso então sua vida seria outra, a culpa era do sorriso porque ele era belo... e o belo quer enganar e só se pode vencê-lo se houver uma mudança radical nas bases que nos sustentam... Ele correu rápido, rápido, mais rápido, e se não fosse por isso talvez a topada não tivesse sido tão certeira. Foi num ferro cravado no chão...
Quando os dedos do pé direito dele encontraram com violência o maldito ferro cravado no chão suas bases foram atiradas aos abutres e ele foi jogado pra frente sem a mínima consciência de que havia tropeçado até que houve...
DOR!
Terrível dor...
Ele deu com a cara em outro ferro, esse usado para amarrar bicicletas na frente de estabelecimentos, foi em cheio, bateu literalmente com a boca no ferro maciço que estremeceu com a força da pancada. Ele caiu no chão com as mãos imediatamente no rosto, sua cabeça latejava e ele parecia ter ingerido um litro de adrenalina, seu coração descompassado estourava em seu peito e ele não queria abrir os olhos pra saber por que suas mãos estavam molhadas... por que sua boca estava tão dormente e molhada, e principalmente por que ele estava sentindo esse gosto salubre na boca, gosto que lembrava... lembrava... sangue...
Ele se levantou atordoado com a cabeça estourando e um jovem se aproximou dele oferecendo nervoso ajuda dizendo “ Porra irmão, essa foi foda, acho que tu quebrou os dente irmão, foi uma topada do caralho mano porra”, ele segurava um skate e logo o pôs no chão quando outros três amigos se aproximaram pra ver aquele cara aparentemente bêbado que acabara de cair de cara no ferro e que sangrava como um zumbi que mascara um fígado. Tinha uma poça de sangue no chão. E uma flor em cima. Trinta metros à frente um letreiro brilhante com o nome Playa Bela Pousada observava irônico aquela cena trágica. Quando o mínimo de consciência o retomou depois do acontecido ele viu as mãos ensanguentadas, e percebeu que sua língua estava fazendo movimentos que ele jamais havia experimentado, ficava saindo da boca sem que ele quisesse... foi aí que ele se levantou e se aproximou do retrovisor de um carro próximo e viu que lhe faltavam os dois dentes superiores da frente... um de baixo... havia um buraco enorme e vermelho em sua boca e ter visto isso o fez ter uma vertigem que trouxe a dor excruciante outra vez à cena porque com a confirmação houve também a redenção...
Desmaio.
O que se seguiu foi que os garotos chamaram uma ambulância, o puseram nela e continuaram as manobras de skate tranquilamente, ela o esperou até 23:30 até que partisse com olhar desconsolado no taxi que a levaria ao aeroporto com a amiga de volta ao que fosse a vida dela. Chegou em Córdoba com a cara abatida e ninguém jamais soube de verdade como haviam sido as verdadeiras férias dela no Brasil. Na Argentina mesmo com a beleza dela ela era só. E triste. Havia viajado confiante nos sinais em que acreditava, ela acreditou que no Brasil ela encontraria a resposta de sua vida... O cara certo... Era uma mulher e tanto. Sonhadora. Um filho a salvaria de muita coisa... E ele, ao chegar no hospital público mais próximo de onde havia se ferrado de uma queda, ele pensou não... não havia se ferrado por causa da queda, na verdade ele percebeu que havia entendido tudo. Quando se olhou no espelho e viu os pedaços dos dentes que haviam ficados em sua gengiva púrpura de coágulos de sangue, ele viu que naquele reflexo não era mais ele quem o olhava, era um ser estranho, bizarro, despido daquilo que enganava e o levava sempre pra o caminho mais fácil, ele que decidira tomar o caminho difícil mas que sempre dava um jeito de tomar atalhos e sempre se ferrava por escolher acreditar. Quando a ficha caiu ele se deu conta que havia perdido os dentes e jamais teria aquele sorriso lindo de novo... nem que gastasse o que sequer tinha ainda haveria a irônica vida fazendo ele sofrer tão dolorosamente por apenas ter desejado um mísero momento pra se divertir um pouco já que ele sempre se dava mal... Agora realmente tinha se fudido... E não pegou a gringa... Não... Isso era o pior de tudo. Ela o havia bloqueado no aplicativo que utilizavam pra tentar se comunicarem. Era o fim. Ele nem lembrava como havia começado. Hola... Me gusta tu sonrisa... E agora... O quê? Como isso pôde ter acontecido depois de tudo? Que loucura desgraçada. Isso é que é azar. Ou uma sorte incomum. Ele fechou os olhos várias vezes buscando acordar daquele pesadelo, mas a frase voltou em seus pensamentos e ele entendeu. Maldita Esfinge... De seus olhos algumas lágrimas escorreram como que tentando consolá-lo com a verdade.
Com o dinheiro que ele recebeu de sua rescisão, já que o acidente evitou que lhe aplicassem a justa causa, mas que também fez com que muitos invejosos que não gostavam dele explodissem em gargalhadas vitoriosas porque acharam que ele merecia pior já que era todo diferente de todos, cheio de ideias, queria mudar tudo e tal, ele fez as cirurgias que restaurariam seu sorriso. Mas já não era o mesmo sorriso, houve até quem dissesse que estava melhor. Mas ele sabia, quando lembrava anos depois do que havia acontecido com ele na época em que quis pegar a gringa, que naquele dia ele havia mudado irrevogavelmente, havia perdido uma parte dele pra ter outra que agora lhe era totalmente compreensível... Só depois de muito tempo ele conseguia entender a Esfinge que lhe sussurrou aquela frase anos atrás quando ele ainda era novo, ansioso e confiante demais em suas verdades... “Se o belo engana e você se engana, quem não se engana se os dois enganam?”. Enquanto olhava ao redor lembrando de onde viera e sorrindo com alguns dentes que não eram dele, ele ouvia os filhos conversando sobre o futuro e pensava se aquela argentina realmente queria um filho dele, seria muito estranho se as coisas tivessem acontecido de outra forma. A vida dele era totalmente outra agora, o hotel e todas as recordações, distantes como só o passado é...
Ele apenas sabia que já não era um homem falso, havia perdido essa habilidade, e que um dia talvez seus filhos aprendessem e usassem seus lindos sorrisos... e ele quer ensiná-los que o belo é uma arma... mas só quando o sorriso se corrompe é que estamos perdidos...