O Assassino de Butomadina [1]

I

O ano era 986. Era uma tarde serena de domingo, do tipo que Tuh amava. Ele estava parado diante de uma janela aberta, contemplando as árvores frondosas do jardim. O Sol estava alto e as árvores projetavam sombras escuras e frescas. Os pássaros estavam silenciosos, mas um zumbido de abelhas satisfeitas vinha da trepadeira florida ao lado da janela. A casa também estava silenciosa. A maioria dos servos tivera a tarde de folga. Farmer, seu irmão, saiu para dar um passeio, caçar ou coisa parecida. Aborpain, sua mulher, rompe o silêncio e começa a tocar um instrumento parecido com um berimbal.

- Vai tocar esta noite, depois do jantar?

- Se o senhor quiser. - Respondeu ela, com um sorriso, revelando os dentes podres. Antes que ele pudesse responder, ambos escutaram uma carroça na estrada. Tuh não gostava muito de cavalos, embora tivesse dois. No verão, porém, os cavalos e as carroças representavam um grande transtorno naquela região, levantando nuvens de poeira. O cavaleiro parou no portão de madeira da propriedade de Tuh, o qual dava para ver da janela onde ele estava. Um servo apareceu entre a janela e o portão, lançando um olhar questionador sobre seu dono, que fez um gesto com a cabeça, ordenando-o abrir o portão.

- Bosta de mamute, é ele de novo. - Murmurou Tuh.

- Ele quem, meu senhor? - Pergunta Aborpain.

- Cleric. - Ele disse, e sua mulher estremeceu. Embora jovem (jovem até para um orc, que não vive muito), Cleric era um dos orcs mais importantes do mundo, um dos homens de confiança do Ernest, o líder tribal. Tuh não se julgava importante o suficiente na hierarquia dos orcs para enfrentar alguém assim, mas não nutria a menor simpatia por ele. Aborpain, ao contrário, não tinha a coragem natural dos orcs, já que era uma simples humana, que foi comprada por Tuh para substituir sua primeira esposa (a verdadeira Aborpain) que morreu no parto.

Quando Cleric entrou na casa, parecia imponente. Ele tinha vinte anos (embora parecesse maduro para sua idade), cinco a menos que Tuh. Era baixo para um orc (ou seja, mais de um metro mais alto que a pequena Aborpain), esguio, vestido de uma maneira que Tuh considerava afeminada. O cabelo marrom já havia começado a cair, deixando um tufo na frente e bastante nas têmporas. O nariz desproporcionalmente pequeno para a cabeçorra e um permanente olhar sardônico. Cumprimentou Tuh à moda dos orcs, com uma forte batida no próprio peito. O anfitrião respondeu, embora bem antipático.

- Desculpe incomodar, mas estou aqui em missão real.

- Em que posso ajudar?

- Soube o que está acontecendo no comércio? - Cleric não quis ir direto ao assunto.

- Os deguos emprestaram, nos últimos anos, ouro em grande quantidade para outras tribos orcs e mesmo outras raças. Agora, estão cobrando dívidas. Estão enriquecendo rápido. E a razão para isso é óbvia: estão se preparando para a guerra.

- E eles já têm um dos exércitos orcs mais fortes jamais vistos.

- Sim, alguns de nós já vêm observando isso há algum tempo. - Tuh, ao contrário da maioria dos orcs, falava sobre isso com desgosto. Nesse ponto ele diferia de sua raça, pois não era muito bélico. Pensava na quantidade de irmãos que teriam de lutar e morrer em um confronto sem sentido. - O que vocês vão fazer a respeito?

- Nossa política tem sido a de evitar a guerra, o que, como você deve imaginar, não vamos conseguir por muito tempo, tanto em relação a evitar o inimigo quanto em acalmar os ânimos das nossas tropas.

- Por isso, eu espero, vocês já estão pensando em como vão enfrentar os deguos. Uma aliança entre tribos orcs, suponho? - Ele perguntou em tom de ironia, como quem já sabe a resposta.

- Sua sagacidade é rara. Mas nossa relação com outras tribos não anda muito amigável, como você bem sabe. Entretanto, há um aliado em particular que nós temos em mente: Ros.

Tuh ficou surpreso. Ros era um grande império, e muito peculiar por ser transracial, sendo formado por draconianos e orcs. Ele ficava exatamente do lado oposto ao território dos deguos, de modo que, se eles atacassem junto com os angios, a tribo de Tuh, os deguos teriam que dividir seu exército em dois para se defender, o que seria uma tremenda desvantagem. Embora o exército de Ros fosse considerado incompetente e corrompido, se eles pudessem pelo menos distrair os inimigos, as tribos do outro lado fariam o resto do trabalho. Havia, porém, um problema.

- Como vocês conseguirão o apoio de Ros? - Perguntou Tuh. Ros tinha uma péssima relação com os orcs do oeste, em parte porque estes viam muito mal essa relação harmônica entre orcs e draconianos.

- Um acordo secreto. Já iniciamos as negociações, na verdade. O sobrinho do imperador de Ros está vindo para cá, e, se tudo der certo, ele nos ajudará a firmar a aliança. - Tuh notou que sua mulher parecia apreensiva.

- Agora a questão mais importante de todas: onde eu entro nisso?

- Quero que represente nossa tribo na negociação. - Tuh frangiu as sobrancelhas grossas. Seria uma missão extremamente difícil.

- Por que eu? Não havia outra pessoa mais indicada?

- O imperador de Ros em pessoa escolheu você para negociar. - Cleric pareceu lamentar. Dois anos antes, o imperador conheceu Tuh nas negociações em relação a uma aliança entre Ros e os deguos, que acabou não sendo ratificada. Apesar disso, ele não sabia que o imperador gostava tanto assim de sua pessoa. Orcs não costumam ser muito bons com diplomacia, então alguém que tenha um mínimo talento como ele acaba se destacando fácil.

- Certo, eu aceito a missão. - Tuh não precisava pensar muito.

II

Xueze sentia frio em suas asas. Estava escuro ainda, mas a pouca iluminação do dia nascente era suficiente para que ele pudesse continuar voando. A grossa pele reptiliana o protegia do frio, mas ele ainda usava um leve casaco preto. Sobrevoou pomares e campos de lúpulo. Fora uma longa viagem, mas finalmente estava se aproximando. Pensaava nos orcs e draconianos que morreriam se uma guerra de grandes proporções como a que estava para acontecer realmente estourasse. Principalmente orcs, cujo jeito rude, resistente e de mentalidade estreita era equilibrado por explosões de generosidade e alegria primitivas. Eles gostavam de brigar, e não fazia mal que pequenas tribos brigassem de vez em quando, mas o que estava para acontecer era um verdadeiro massacre sem precedentes. E não seriam os líderes que morreria nessa guerra, mas o populacho.

Este draconiano fazia parte de um grupo de rebeldes que queria derrubar o imperador de Ros. Sua missão nesse momento era assassinar o sobrinho dele e impedir que as negociações com os orcs acontecessem, como parte do plano de impedir que Ros se intrometesse nos conflitos estrangeiros, a fim de que o império se concentrasse nos próprios problemas. Embora julgasse sua causa nobre, Xueze não tinha ainda ideia do tamanho das forças que teria que enfrentar para cumprir seu objetivo.

Ele estava agora em Kaerlud, a maior cidade dos orcs angios. Ela era incrivelmente rica e extravagante, mais do que qualquer outra cidade que Xueze tenha visto; parecia maior e mais bonita até que Roqown, sua cidade natal e capital do império. Ali, não havia absolutamente ninguém em farrapos. Ao contrário, todos usavam diversas camadas de roupas grossas, feitas de peles e pêlos de grandes animais, mesmo quando fazia calor. As mulheres usavam grandes chapéus, que mais pareciam rodas de carroças, decorados com fitas, plumas, flores e frutos. As ruas estavam apinhadas. Carroças passavam para lá e para cá. Em cavalo ou à pé, todos avançavam apressadamente.

Os orcs já não pareciam estranhar a presença de draconianos entre eles, e Xueze sabia falar muito bem a língua orc, de modo que ele conseguiu se adaptar facilmente à cidade. Ficou em uma taverna maltrapilha e roubava de lá e de outros lugares algumas coisinhas para se manter. Certo dia avistou um goblin trazendo um cavalo amarrado por uma corda. Achou curioso, pois, devido à sua altura, eles costumavam montar em lobos. E não pense que era um pônei ou coisa parecida: o que orcs e draconianos chamavam de cavalo eram equinos com mais de dois metros de altura, mais que o dobro do que o pobre goblinzinho. Xuexe obviamente pensou que o pequeno esverdeado não precisava de uma montaria que ele praticamente precisaria usar uma escada para subir. Olhou em volta, esperou dois caminhantes se afastarem, e se aproximou do sujeito. Um soco fraco na criatura foi suficiente para ela desmaiar. Talvez você pense: ele é um draconiano, tem grandes asas! E muitos draconianos já estavam tão acostumados a andar a pé que mal podiam levantar vôo, mas Xueze voava muito bem. Para que pegar um cavalo? Bem, basicamente, porque ele teve vontade. Alguém que não tem medo de nada pode fazer qualquer coisa, era isso que ele pensava.

Talvez pese na tua avaliação desse draconiano o fato de que ele, pouco mais de uma década antes, era um escravo bastante maltratado que havia fugido. Foi naquele tempo, enfrentando um mundo de gelo e frio intenso, tanto que ele mal conseguia voar, que ele perdeu o medo. Isso não o impede, obviamente, de se preocupar com a sua missão. Sua ansiedade não era em relação ao que teria que fazer, mas o incomodava o fato de que ele não conhecia o príncipe Meadow, o sobrinho do imperador que veio a Kaerlud negociar com os orcs. Se ao menos ele fosse draconiano seria mais fácil, mas a família real de Ros era composta por orcs. Portanto, se ele viesse disfarçado, seria muito difícil encontrá-lo.

Certo dia, porém, ele viu um grande cortejo de carruagens chegando à cidade, e ficou observando. Logo achou o que procurava, uma carruagem claramente maior e mais luxuosa que as outras, cercada por guerreiros draconianos, sendo que ele só via orcs no cortejo. Em dado momento o cortejo parou, e um orc foi até a carruagem para levar um recado àquela carruagem luxuosa. Xueze se aproximou do participante do cortejo que tinha mais cara de burro e tentou falar com ele na língua dos draconianos; embora a língua orc fosse a mais comum no império Ros, muitos orcs do império, especialmente os que vivem mais ao leste, também falavam o idioma draconiano. De fato, esse também falava.

- Amigo, aquele ali é o Imbratur? - Perguntou, fazendo cara de bobo, e apontando para o orc que saira da carruagem mais luxuosa. Imbratur é o título do imperador de Ros. O orc da carruagem era baixo e usava uma grossa pele de urso. O rosto era amarelado e jovem, quase infantil, com um bigode pequeno; tinha cara de inocente, embora uma inocência levemente monstruosa.

- Não, claro que não, não seja burro. - Repreendeu o orc, rindo. - Esse é o príncipe Meadow.

Sem expressar reação, Xueze assentiu com a cabeça e se afastou.

CONTINUA