Estrada do Medo

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Estrada do Medo - Escrito por Hugo Martins

Às vezes nós precisamos levar choques para ter noção da realidade. Eventos traumáticos que nos revelam o quão frágeis somos. A questão é, até onde podemos suportar o peso da realidade?

Martel Valente era um desses sobreviventes. Um homem que passou por um evento doloroso em sua vida. E, que de alguma forma teve a sua realidade sacudida. Ele carregava na memória os gritos de horror, a chuva e a lama que sujava o carpete do seu carro. Era impossível esquecer o sangue seco grudado no seu braço. O cheiro de terra e angústia que cobria o seu corpo. Martel era um homem marcado pela dor.

Mas, a história de Martel era uma incógnita que instigava a todos. Foi toda essa curiosidade sobre a noite do terror que levou Martel a virar um caso de estudo. E, só pra esclarecer, a noite do terror, foi o nome dado ao terrível caso que assolou a vida deste pobre homem.

De repente, a lâmpada da sala foi acesa. Aquele espaço era adequado para o interrogatório. Uma mesa de metal, quatro cadeiras também de metal, um ventilador silencioso, uma garrafa com café e outra com água. Copos, cinzeiro e blocos de anotação. Junto com as canetas.

Ele achava desconfortável ter que vestir um roupão branco para aquele interrogatório, mas não questionou, apenas seguiu as instruções.

Os três homens chegaram juntos, e causavam certa intimidação em Martel. O federal era o mais jovem. Tinha cabelos loiros, barba por fazer e olhos castanhos. Era o típico playboy adorado no ensino médio. Já o perito em assuntos paranormais, era careca, tinha bigode farto, e usava óculos de grau. A sensação que ele passava era de um inspetor do colegial. O psicólogo, psicanalista ou sei lá o quê, era o mais equilibrado entre os dois. Não era tão jovem como o primeiro, mas não estava tão enferrujado quanto o segundo. Seus cabelos longos que caiam sobre os ombros, lhe davam a impressão de ser o hippie da escola. Para Martel, magro, cabelos penteados para o lado e olhar medroso, tudo remetia à época da escola.

– Boa noite Martel, como já havia me apresentado por telefone, eu sou Fabio, investigador da policia federal. Esses são doutor Adolfo, perito em assuntos paranormais, e o doutor Levi, psicólogo. Nós queremos que você fique bem à vontade. Já pedimos desculpa pelo horário, mas para preservarmos o sigilo desse interrogatório, só poderemos nos reunir a partir da meia-noite. Então meu conselho é que vocês durmam bem durante o dia. Alguma pergunta Martel, antes de iniciarmos?

– Ahh, acho que não. Acho que tá tudo bem… É, quer dizer, eu só queria, tipo, deixa eu ver… Por que tem um perito em…Hã, perito em…

– Em assuntos paranormais – completou Fábio, o investigador.

– Eu mesmo posso explicar Fábio. Vejamos, o seu caso Martel, teve um impacto em três esferas da fenomenologia. Então, a Agência Brasileira de Inteligência trabalha com diversos assuntos interligados com esse universo paranormal. Mas, fica tranquilo, como disse eu sou um cientista. Viemos atrás de fatos e evidências concretas. Nada de misticismo – disse Adolfo mexendo o bigode ao falar.

– Então, tudo bem. Acho que podemos começar – disse Martel.

Com os quatro homens bem à vontade para aquela sessão estranha à meia-noite, Fábio foi o primeiro a começar. Era visível a curiosidade do federal. Ele queria saber nomes, rostos, quem e como? Sua busca era objetiva. Que mãos fizeram o trabalho sujo?

– Martel, quero que você seja espontâneo ao responder. E nos diga tudo que lembrar sobre aquela noite, certo? Pra começar, o que você lembra daquele dia? De forma bem genérica mesmo. – perguntou Fábio.

– Eu lembro de não ter dormido na noite anterior. As quatro da manha já estava de pé. Coloquei as malas no carro e acordei a minha filha. Minha esposa já estava acordada. Bem… estávamos organizados e meio atordoados pelas ultimas noticias. Meu irmão mais velho tinha ligado no dia anterior, dizendo que meu pai estava morrendo. E, que eu precisava estar em Fortaleza urgentemente. Eu lembro de ficar confuso. Não gosto de sair da rotina ou de fazer as coisas sem planejar. Parece que perco o controle e fico ansioso. Eu não queria aquela viajem. Minha esposa me convenceu a ir. Infelizmente eu dei ouvidos a ela. Não deveria. Me arrependo agora.

– Só interrompendo um momento. Você disse que não queria visitar seu pai. Qual o motivo? – perguntou Levi, o psicólogo hippie.

– Sendo bem sincero. Na minha cabeça, meu pai já tava morto. Nós brigamos feio antes de eu sair de Fortaleza. Mas, no fundo eu o odiava. Ele foi um péssimo pai. Alcoólatra que maltratou minha mãe, e nunca se importou comigo e com ninguém. Ele só se importava com ele e a garrafa de cachaça. Esse era o meu pai.

– Você não queria viajar porque odiava seu pai. O que mudou? O que te fez se despedir dele? – perguntou Levi.

– Minha esposa. Ela disse que eu precisava encerrar essa história. Que, o ódio que eu nutria por ele me fazia mal. E, eu sempre escutei a minha esposa. Ela era meu porto seguro.

– Martel, você lembrou do seu pai durante a viajem? Em algum momento você vislumbrou ele? – perguntou Adolfo, o paranormal.

– Deixa eu lembrar. Eu acho que sim. Eu lembro que a Karine, minha esposa, gritava muito. A perna esquerda dela tinha um rasgão profundo e o sangue não parava de jorrar. Era um buraco grande que tinha na perna dela. Seu eu soubesse que aquele louco tinha um taco de beisebol enrolado com arame farpado. Ela sofreu muito – disse Martel com a voz embargada – Ahh, eu sinto muito. Desculpa ficar assim.

– Acalme-se Martel. Você já chegou ate aqui. Nada melhor do que um dia após o outro. Você vai ficar bem – disse Levi, ajeitando suas longas madeixas.

Fábio olha para Adolfo e pergunta: – Mas, por que a pergunta sobre o pai dele?

– São só teorias. Mas, alguns estudos apontam que pessoas no leito de morte, podem transcender o corpo físico e de alguma forma deslocar seu corpo espiritual de onde estão. No caso dele, os irmãos relataram que próximo do óbito, o senhor Padilha, pai de Martel, sussurrava repetidamente a frase: “Respire querida, nós vamos conseguir. Eles se foram, eles se foram”. Ele repetiu essas duas frases aproximadamente umas trinta vezes. Depois suspirou o nome Martel e morreu.

Um silêncio incômodo tomou conta da sala. Martel estava suado.

– Essas frases são familiares pra você, Martel? – perguntou Adolfo.

Ele balançou a cabeça concordando.

– Eu via flashes do rosto do meu pai. Ele estava possesso. Como nos dias em que bebia. Uma nuvem negra pousava sobre os ombros dele. E ela dizia repetidamente: “Eu vou comer a sua carne. Vou tomar seu sangue. Sou a língua nefasta que entra em seu ouvido. Eu vou comer sua carne. Vou tomar seu sangue. Sou a língua nefasta que entra em seu ouvido”. Lembro por que foi nesse momento que aquele monstro agarrou minha esposa pelo pescoço e a puxou para a estrada.

– Certo. Ainda vamos chegar nesse ponto – disse o investigador Fábio – Antes, explique a história do desvio. Vocês tinham uma rota programada, mas decidiram pegar um atalho. Por quê?

– Minha filha era fascinada por circos e palhaços. Se pudesse ela estaria no circo todo dia. Tudo girava em torno de malabarismos, mágica, mulheres cuspindo fogo e andando sobre cordas. Ela tinha essa obsessão sabe. Estávamos à duas horas na estrada, eram mais ou menos sete horas da manhã, quando vimos em um outdoor o anuncio de um circo. Não lembro o nome agora. Mas, ela queria passar pelo menos em frente. Eu lembro de dizer: – Amozinho não podemos parar. Temos uma longa viajem e se pararmos não vou me despedir do seu avô, nem você.

– Mas, painho eu queria só passar em frente! – disse Laila com os olhos pedintes e suas bochechas rosadas.

– Só passar em frente! Nada mais.

– Você vai estragar essa menina – disse Karine.

Quando passaram diante do circo, os palhaços se divertiam fazendo maquiagens. Laila, a garotinha de Martel, gritava de empolgação. “Papai deixa eu ver os palhaços de perto”. Martel não podia deixar passar a oportunidade. Estacionaram e foram ver os palhaços. Enquanto, esposa e filha conheciam o mundo divertido dos palhaços, Martel conversava com um senhor coberto de graxa, que estava sentado embaixo de uma mangueira.

– Bom dia senhor! – disse Martel querendo ser educado.

– Opa! – respondeu o senhor mal encarado.

– O senhor sabe dizer como é que tá a BR até Fortaleza? Eu tô sem pneu reserva, então não quero correr o risco de cair em nenhum buraco.

– Cê vai sofrer um pouco nessa BR. Além de buraco, tem caminhão pesado e assalto direto. Mas, se seu destino é Fortaleza, por que você não vai pela estadual?

– Mas, nunca andei pela estadual. Onde que ela vai dar? – perguntou Martel.

– Cê pega a estadual daqui a cinco quilômetros à direita. Segue uma reta até chegar a rotatória da divisa de Pernambuco com Ceara. Dai so segui pela BR novamente.

– Eu preciso chegar rápido em Fortaleza.

– Pois então! Eu tô lhe dando um atalho. A estadual é menos movimentada e o caminho é mais curto. Cê vai economizar pelo menos uns dez quilômetros.

– Tá certo senhor. Eu agradeço.

O investigador anotava tudo em seu bloco de notas. Sua testa se mexia em questionamentos.

– Você acha que esse homem que te aconselhou a pegar o atalho. Você acha que ele sabia de alguma coisa? Talvez algum envolvimento com os caras que você encontrou na estrada?

– Acho que não. Eu não devia ter pego aquele atalho. Se eu tivesse continuado na BR não teria me perdido, e, nada disso estaria acontecendo agora. Minha esposa e filha estariam em casa dormindo, e eu provavelmente estudando pra algum concurso público.

– Quando vocês perceberam que estavam perdidos? – perguntou Fábio.

– Quando anoiteceu.

Karine comia um salgadinho. Laila dormia agarrada a um ursinho. Martel estava concentrado na estrada. Os faróis estavam acesos. Alguns insetos se chocavam no para-brisa, e eventualmente uma cabra perdida pululava no meio da vegetação rasteira.

A estrada estava deserta. Já havia algumas horas que eles não cruzavam com nenhum carro. A escuridão da estrada tomou de conta da alma daquela família. Karine não tinha problemas em viajar a noite, no entanto Martel não gostava. Ele não sabia o que podia dar errado na estrada à noite, e encontrar socorro seria mais difícil. Então, ele preferia viajar durante o dia.

– Ainda não chegamos à rotatória. Já deveríamos ter chegado – disse Karine comendo o salgadinho.

Martel sentia-se sortudo. Nos seus melhores sonhos ele não imaginava casar com uma mulher tão bonita. O que ela teria visto nele? Magro, cara de nerd, pele muito branca, nariz longo de mais, inseguro e solitário. Ele nem queria a resposta. Só usufruir da sorte de ter Karine ao seu lado.

Ela era linda. Cabelos loiros e curtos, olhos azuis e sorriso contagiante. Karine era a graça em pessoa. Mas, talvez Martel soubesse o que levara ela a querer casar com ele. Ela estava cansada de ser traída pelos namorados playboys. Ela queria estabilidade. Um lar seguro e uma família. Martel talvez pudesse proporcionar isso pra ela. Talvez. Por que tudo com Martel era uma possibilidade, nada concreto.

– Você se perdeu – disse Karine.

– Não! Era só seguir direto e cair na rotatória.

– Amor, já anoiteceu e nada da rotatória. Você tem certeza que pegou a estadual?

– Acho que sim. Ele disse que era à direita. Mais ou menos cinco quilômetros depois do circo.

– Precisamos encontrar um posto e parar. Pedir ajuda. A Laila deve tá com fome.

Martel observou pelo retrovisor, sua filha dormindo.

– Tá! Vamos parar no próximo posto.

Eles avançavam quilômetros após quilômetros e não avistaram nenhum posto ou algum casebre solitário na beira-da-estrada. Martel já estava ficando nervoso. Suas mãos suavam mais do que o comum. Sua esposa, tensa, fechou a expressão numa mistura de preocupação e ansiedade.

O que surpreendia os dois era a quantidade de cruz no decorrer da pista. As cruzes brancas representavam o ponto em que vítimas tinham morrido. Era um marco e um vestígio de alguma violência, lembrando aos passageiros que aquela estrada já causara muitas mortes.

Quando não eram cruzes, havia oferendas e despachos abandonados. Grandes balaios enfeitados com coroas de flores e recheados com cachaça e galinhada. Andar por ali era percorrer um corredor escuro sabendo que no seu final uma sombra lhe esperava com uma foice na mão. Tudo era sinistro. Até os animais pareciam se esconder de algo. O brilho da lua foi encoberto por nuvens negras e pesadas. Um palco deserto de terror e tensão.

– Moradores de um povoado próximo, relataram que aquela era uma estrada mal assombrada. O que você acha sobre isso Martel? Você acredita que possam existir fantasmas? – perguntou Adolfo, o perito paranormal.

– Eu já invoquei fantasmas. Quando criança sentia muitas saudades da minha avó que havia morrido há pouco tempo. Queria muito encontrar com ela novamente. Lembro que ela costumava sentar em uma cadeira de balanço na sala. Passava horas ali em frente à TV balançando pra frente e pra trás, pra frente e pra trás. E, essa era um memória muito forte que eu tinha. Então, resolvi que queria vê-la mais uma vez. Era à tarde e nesse horário eu costumava ficar sozinho em casa. O horário que a Vó sentava pra assistir as novelas da tarde. Eu liguei a tv nas mesmas novelas que ela assistia. Tranquei todas as portas da casa e de frente para a cadeira disse: “Vó Maria, aparece pra mim. Quero falar com a senhora e te dar um abraço. Vem vó, não tem ninguém pra atrapalhar”. Fiquei durante alguns minutos aguardando. Eu sabia que ela vinha falar comigo, mas a cadeira não se mexia. Tudo estava parado. Só a tv continuava fazendo barulho. Disse que iria ao banheiro, pois queria mijar. Na hora eu só ouvia a urina batendo contra a água do vaso. Mas, o cheiro de enxofre inundou toda a casa. Eu juro que ouvi a cadeira balançando. “Vó é a senhora?”, gritei do banheiro. Estava prestes a abrir a porta do banheiro quando algo dentro de mim disse que eu não saísse. Juro que não sei explicar o que era, mas algo me dizia que eu não devia sair do banheiro. Eu me tranquei lá dentro e esperei minha mãe chegar. Meus pesadelos começaram naquele dia.

– Isso quer dizer que você acredita no sobrenatural? – perguntou Adolfo alisando o bigode.

– Não digo que acredito. Mas, também não duvido que exista. Se existir é um mundo que não me dá acesso e nada tem haver com o meu.

– Voltando pra estrada, Martel. O que aconteceu quando perceberam que estavam perdidos? – perguntou Fábio.

– Tentamos ligar pra alguém conhecido, pra emergência, pra qualquer lugar que nos socorresse. Mas, os celulares não pegavam sinal de jeito nenhum. E, além disso, outra coisa me preocupava. Só tínhamos um quinto de combustível. Não tínhamos muito tempo pra rodar.

– Foi aí que vocês cruzaram com eles à primeira vez? – perguntou Levi, o psicólogo.

– Sim, não demorou muito pra cruzarmos com eles.

– Tenta lembrar tudo nos mínimos detalhes. É importante – pediu o investigador.

Ver um pisca alerta há 50 metros à frente foi de um grande alívio. Ao se aproximar, Martel percebeu que era um Ford Maveric de cor preta. Eles estavam na pista contrária, na direção oposta. Martel diminuiu a velocidade para falar com aquelas pessoas.

– Amor, o que você tá fazendo? – perguntou Karine.

– Vamos perguntar onde estamos e como achamos a BR novamente.

– Não tô gostando desses caras.

Inicialmente Martel viu três homens em pé. Dois tentavam encaixar o pneu dianteiro, enquanto o terceiro estava do outro lado do carro, encostado no capô. Ele não fazia nada. Só ficava parado olhando na direção do carro de Martel.

– Como eles eram? – perguntou Adolfo.

– O primeiro que se aproximou, era muito alto, e usava jaqueta preta, como todos os outros. Eles pareciam motoqueiros, sabe aqueles que usam bandanas e camisas de bandas de rock? Eles eram assim. Soturnos e mal encarados. Lembra que esse que se aproximou de nós, tinha um chapéu e barba muito farta. Seus olhos eram torneados com lápis pretos.

– Esse era quem dava as ordens? – perguntou Levi.

– Ele era uma espécie de gerente. Quem dava as ordens era o terceiro que estava petrificado. O segundo era o mais jovem. Ele era o mais instável. Sempre carregava um cigarro e seus olhos eram vermelhos. Usava camisa regata preta e uma badana escondendo uma cabeleira farta. E, tinha uma cicatriz no queixo, do lado esquerdo. Parecia uma estrela, a cicatriz.

– Você conseguiu ver o terceiro?

– Não, estava escuro e só vi os outros dois por que eles tinham lanterna próxima.

– O que conversaram? – perguntou Fábio.

– A Karine estava com medo. Ela disse que era melhor seguirmos. E, eu sempre obedecia minha esposa, menos naquele dia. Eu resolvi falar com eles.

– Pode nos ajudar? – perguntou o gigante barbudo.

– Infelizmente não! – respondeu Martel.

– Só precisamos de uma chave de roda. Você deve ter uma no seu porta-malas – disse o gigante.

– Desculpa amigo… Mas eu não tenho – mentiu Martel.

Um clima de desconfiança e medo pairava sobre eles. Olhares desconfiados, gestos mecânicos. Tudo era muito estranho.

– Por que mentiu sobre a chave? – perguntou Adolfo.

– Eu senti medo. O mais jovem olhou para o banco de trás e ficou encarando a minha filha que tinha acabado de acordar. Os olhos dele não eram olhos inocentes. Ele desejava a minha garotinha.

O homem alto, com barba grande, que falava com Martel, se inclinou novamente na janela do motorista, e, olhou bem para todos que estavam no interior do carro.

– Estão perdidos?

Martel mal abriu a boca e sua esposa deu a resposta: – Não. Estamos bem. Já estamos indo. Espero que consigam a chave.

– Foi ai que eu percebi que ela também estava desconfiada – disse Martel.

O homem continuava segurando a porta do carro. Seus dedos grandes invadiam o interior do automóvel.

– Pra onde estão indo? – ele perguntou com os olhos sombrios.

– Te-t-temos familiares aqui próximo, e temos que ir agora – respondeu Martel tropeçando nas palavras.

– Cuidado, essa estrada é traiçoeira. Logo adiante tem uma subida e muitas curvas. Dirija com bastante atenção. Não caia nos desfiladeiros – alertou o gigante mostrando o canino de prata.

Martel deu partida e seguiu acelerando. Suas mãos tremiam e suavam muito. O coração acelerado bombardeava seu peito. Sua pupila dilatada demonstrava o horror. Ele tentava lubrificar os lábios ressecados com a língua.

Karine estava tensa. Com os olhos ela expressava a sensação de pânico e asfixia que invadia sua mente. Olhares transtornados que se mexiam de um lado para o outro em uma inquietude sufocante.

Laila havia acordado. Mas, de tão sonolenta não sentiu a ameaça daqueles homens. Seu único problema era vontade de fazer xixi. Ela tinha guardado por muito tempo. Precisava urinar.

– Precisamos parar! – alertou Karine.

– Vamos andar mais um pouco. Não quero parar no meio da estrada.

– Tenta achar algum acostamento.

– Não tem nesse percurso da estrada.

– Então para no mato Martel! Sua filha precisa fazer xixi!

Martel entrou alguns metros dentro do mato. A vegetação rasteira não impedia o carro de ir adiante, mas ele não quis se afastar muito da estrada. Ele parou o carro e deixou os faróis ligados.

Karine desceu com a filha enquanto Martel analisava o mapa novamente.

As duas se escondiam na lateral do automóvel. Caso algum carro passasse elas não seriam notadas.

Ao descer do carro, um graveto arranhou a perna de Laila. Ela deu um pequeno gritinho de dor. Mas, só havia um pequeno risco vermelho na pele.

Karine esperou enquanto sua filha agachada fazia suas necessidades. Ela se assustou ao notar o brilho de dois faróis se aproximando.

– Um carro tá vindo ai – ela disse alarmada para Martel.

Pelo retrovisor, ele viu o carro se aproximando em alta velocidade.

– Pode ser eles! – ela alertou

– Não é possível!

– Desliga o farol. Pode ser eles!

Martel não queria acreditar que fossem os motoqueiros estranhos. Eles estavam no prego, precisando de uma chave de roda há poucos minutos, e agora estavam voando como se nada tivesse acontecido? Não, não podia ser eles.

– Desliga o farol. Não quero que nos vejam.

Mesmo não acreditando na teoria da esposa. Ele preferiu obedecê-la. E desligou os faróis, deixando o carro submerso no mais profundo escuro.

A preocupação de Karine era que sua filha ainda estivesse urinando quando o carro passasse por eles. E, que, eles também não fossem notados escondidos no meio do mato.

– Vamos querida! – Karine apressava sua filha.

À medida que se aproximava o carro diminuía a velocidade. Quando estava há uns 30 metros de passarem por eles. Martel notou que era o Maverick com os homens esquisitos. Ele alertou sua esposa e pediu que entrassem no carro. Mas, Laila não havia terminado de urinar.

Em todos aqueles 34 anos de existência, Martel nunca tinha sentido algo parecido. Ver as duas pessoas que ele mais amava na vida, expostas a uma situação tão ameaçadora. Perdidos à noite em uma estrada deserta. Sem conseguir falar com ninguém conhecido. E, agora cruzando com homens que ele tinha medo. Uma selva cheia de monstros ameaçando atacar sua família. E ele não tinha como se defender. Não tinha arma. Não sabia lutar. Não tinha um físico avantajado que intimidasse. Pelo contrário. Tinha aflição e nervoso de estar naquela situação. Queria estar em casa, sentado, assistindo netflix.

– Você não pensou em acelerar e sair na frente? – perguntou psicólogo.

– Como psicólogo você deve saber que quando se está com medo, não se pensa com muita clareza. Fazemos e deixamos de fazer coisas.

O carro diminui a velocidade passando por eles lentamente. Karine e Martel tentaram se esconder dos faróis do Maverick. O barulho dos pneus contra o asfalto esburacado ia diminuindo à medida que o carro ia parando.

O coração de Martel estava acelerado. Ainda deitado sobre o banco do carona, ele ouviu quando a porta do Maverick se abriu estridente. Era possível escutar com nitidez, a sola das botas em contato com os grãos de terra. Eles pararam a poucos metros. Devem ter visto o carro escondido.

– Mamãe, por que estamos assim? – cochichou Laila nos ouvidos da mãe.

Karine só pedia silêncio.

Martel só pensava na filha. Uma garotinha de apenas 9 anos, com toda uma vida pela frente. Sonhos, curiosidades e uma inocência genuína. Ele só queria que ela estivesse segura. Que nada acontecesse com ela. Não se perdoaria caso ela se machucasse.

Sem que Martel notasse, o garoto mais jovem que tinha uma farta cabeleira e usava bandana, também desceu do Maverick. Ele carregava um bastão de beisebol enrolado em arame farpado. Sua intenção: estuprar e matar.

Agachado, ele caminhou até o carro de Martel. Seus passos silenciosos não foram notados por ninguém. Sorrateiro, ele se escondeu atrás do carro, e observou Laila e Karine abaixadas e amedrontadas. Um golpe firme na cabeça e, a menina estaria morta. Ele iria carregar a mãe, amarrá-la e penetrá-la várias vezes. Ate que após muitos gritos, que seriam silenciados com uma mordaça, ele esmagaria o crânio dela com uma pedrada.

Mesmo tremendo de medo, Martel não arriscou sair do carro para ver suas garotas. Ele preferiu ter certeza que os loucos se afastaram para checar se tudo estava bem.

Um alívio foi, quando Martel ouviu o homem abrindo a porta e entrando no carro. Enfim, eles iriam para longe. Martel seguiria viagem com sua família.

Mas, o alívio durou pouco. Ele sentiu o carro se mexendo e levantou-se rapidamente. Pelo retrovisor, viu duas sombras lutarem em silêncio, até a explosão de um grito de pavor. Um homem diabólico segurava sua filha nos braços, enquanto sua esposa lutava com ele.

O homem levantou o bastão e desferiu um golpe na perna esquerda de Karine. Sem piedade, ele chutou a mulher com uma pesada nos seios. A criança gritava horrorizada nas mãos do maligno. Karine caiu sentindo muita dor.

– Tudo o que eu mais temia estava acontecendo. Encarar aqueles monstros era o meu maior desafio. Eles estavam destruindo a minha família, e eu estava lá, parado, em choque – disse Martel para o investigador.

– O medo também é uma ação paralisante. Essa foi a reação que você teve e que você provavelmente sempre tem ao enfrentar situações de stress – disse o psicólogo.

– Você conseguiu ver a face desses homens? – perguntou o paranormal.

– Estava tudo muito escuro. Era difícil perceber a face de qualquer pessoa. Mas, por quê?

– Pareidolia! É comum ver algumas imagens que parecem ter algum significado, mas no fundo são só associações que a mente faz. Por exemplo, ver a imagem de santos em uma janela comum. Ou o desenho de mãos em nuvens. Coisas do tipo. No seu caso, ver imagens de monstros no rosto dos agressores é bem comum. Algumas vítimas já disseram ver leões na face dos seus abusadores. Outros viram verdadeiros demônios.

– Não. Não consegui ver a face deles. Estavam cobertos pela escuridão – disse Martel.

– Quando sai do carro, ele carregava a minha filha, que gritava desesperada. Minha esposa estava caída, sangrando muito.

Martel tinha poucas forças para andar ou correr. Ele entrou no carro e no banco do carona, sua esposa chorava angustiada e sua perna esquerda esguichava sangue por todo lado.

– Vamos! Dirija Martel, temos que pegar a Laila.

O Maverick já havia partido. Aqueles monstros levaram a menina. Mesmo acelerando ao máximo, eles não avistavam o carro preto à sua frente. Um desespero tomou conta do casal. Karine parecia perder o fôlego. Sua respiração era fraca e puxada.

– Respire querida, nós vamos conseguir. Respire querida! – era a única coisa que Martel conseguia dizer.

O SUV de Martel começou a subir um monte. A inclinação gerava um grande desfiladeiro. Karine estava ficando roxa sem conseguir respirar. Ele também estava ficando sem ar.

O pneu do carro furou. Ele ainda tentou manter o equilíbrio na estrada, mas não conseguiu. O carro parou no meio da pista.

Para surpresa de Martel o Maverick retornava na direção oposta. Eles se aproximaram e pararam diante da SUV.

Martel tentava enxergar sua filha, mas no carro só havia o grandalhão e o mais jovem. Os dois saíram e correram em direção à SUV.

– Vamos sair amor! – gritou Martel para Karine.

Ela estava roxa e inchada. Seus olhos reviravam em agonia. As veias do pescoço pulsavam se debatendo em desespero. Ela não conseguia mais falar.

Martel viu as mãos tatuadas agarrarem o pescoço da sua esposa e lhe arrancar de dentro do carro.

O monstro a arremessou no capô do carro, enquanto lhe estuprava.

Martel não conseguia se mexer, apenas chorar. Um grito rouco estava entalado em sua garganta como uma bola de pelo. Mas, ele não conseguia soltar. Tudo o que viu foi quando o gigante se aproximou e lhe arrancou do carro. Ergueu o bastão e com toda força meteu-lhe a pancada na cabeça.

– É tudo o que eu lembro – disse Martel olhando para os três homens à sua frente.

– E sua filha? E o terceiro homem? – perguntou Adolfo.

– Eles não tinham retornado. Eu nunca mais vi a minha filha.

– Martel, você tem certeza que eles não voltaram com sua filha?

– Não. Minha filha não voltou – disse Martel.

– Sua esposa não sofreu muito. Os legistas disseram que no momento em que foi abusada ela já estava morta. Parada cardiorrespiratória – disse o investigador Fábio.

– Eu fui um covarde. Deixei que destruíssem a minha família. E não consegui reagir diante do medo.

De repente, a porta da sala se abre. Os três homens que abusaram e mataram a esposa de Martel entram, e ficam em pé, de frente para ele. O gigante, o jovem de bandana e o homem sombrio. Todos o encaram com raiva.

Martel treme de medo e olha para os três homens que estão sentados à sua frente.

– Vocês estão vendo eles? – pergunta Martel com medo.

– Quem Martel? Quem está aqui? – pergunta o paranormal.

– Os homens… os homens que levaram minha filha

– Não vemos nada Martel.

Ele se levanta e começa se debater contra a porta de ferro.

– Socorro! Eu quero sair daqui! Socorro! Me deixem sair daqui! – grita Martel enrolado em uma camisa de força.

Ele continuava a se debater contra a porta como se pudesse sair daquela situação. Nem se atrevia olhar para trás e ver aqueles homens lhe encarando. Era perturbador e agonizante.

Pela janela de vidro que percorria toda a extensão da sala. Um médico usando jaleco branco conversava com alguém pelo celular.

– Ele continua nervoso e delirando. Agora mesmo quer sair da sala por que está vendo os assassinos com ele. Vamos ter que aumentar a dosagem da medicação. Sim, sim. Toda meia-noite ele começa a conversar com alguém. Parece responder perguntas. Inicialmente calmo, mas depois ele se transforma e fica transtornado. Sim, sim. Todo dia é a mesma coisa. Conversa e depois surta.

Uma voz feminina responde do outro lado da linha: – Cuida bem do meu palhaço.

– Tudo bem, nossa equipe vai conseguir recuperar este homem. Estamos otimistas em relação a ele – responde o médico desligando o celular.

O médico entra na sala e encontra Martel sentado no canto da parede. Ele deixa um telefone fixo vermelho, estilo vintage, e diz: – Alguém quer falar com você Martel!

O médico sai da sala, deixando o homem transtornado. Martel observa o telefone e tenta não pensar em mais nada. Ele só não consegue mais suportar o peso da realidade.

FIM

huggu
Enviado por huggu em 18/12/2018
Código do texto: T6530222
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