Ventos passados sopravam o coração do vaqueiro e traziam lembranças da meninice. Qualquer tolice de menino da roça era uma diversão. Tudo eram recordações de muitas traquinagens: Nas enchentes do Saracura João atirava uma pedra no meio do rio. Os meninos mergulhavam e traziam-na como um troféu, na mão, nadando com uma mão só. Outra vez a pedra era atirada na curva das águas, quase em redemoinho... Afastado dali, as meninas se banhavam em poço raso, na curva do rio. Mas na hora de se retirarem faziam algazarra, conversavam alto. Era o sinal que estavam voltando pra casa. Os meninos faziam o mesmo, saiam da água e cada um vestia ligeiro seu toco de calça.
Ó tempos...
Vaqueiro Alexandre mexeu-se na sela. Sentou de banda, flexionou uma perna e retesou a outra.
— Precisa se acanhar não, pode libertar o gás..
— Deixa de sem- graceza, Nhô e termine de contar a história!
Então, o capim orvalhado roçava nas pernas das meninas. Elas gritavam assustadas. Dengosas... “Ui, pensei que fosse uma cobra!” Era quando um menino afoito se aproximava, mostrando coragem. Procurando pau pra dar nalgum animal rastejante e peçonhento...
— Matava a cobra?
— Tinha cobra não! Mas... no dia em que um cascavel atravessou a vereda. Senti o coração de Euzébia saltando fora.
João percebeu que estava prestes a revelar uma intimidade.
— Coisa à-toa, seu Alexandre. Coisa de menino metido a homem.
— Já começou, agora conte. Com todo respeito à sua senhora. Naquele tempo o amigo era solteiro...
— Pois aí, o coração de Euzébia disparou assustado. Pegou minha mão e pôs sobre o peito dela. Meu coração também acelerou. Parece que ela ficou envergonhada e tirou a mão dali. Depois, me olhou de um jeito tão bonito... Reparei direito: os olhos dela eram verdes, contornados por um til bem em volta de cada um deles. Desenhados pelas mãos de bom artesão. Acontecia às vezes um roçar de mão, quando os pés desviavam de uma pedra no caminho, acontecia, sem querer, querendo muito. Aí as costas das mãos se tocavam. Ela puxava demonstrando susto, lavada de vergonha, e o menino, envergonhado, punha a mão no bolso.
— O amigo é nativo dessas redondezas?
— Meu umbigo foi enterrado no barranco do Saracura. E o senhor?
— Nasci em Taubaté, no estado São Paulo, mas cansei da lida na cidade grande.
O sol se escondeu detrás de uma nuvem azul-acinzentada.
— Vamos tomar chuva no lombo.
— É nuvem passageira. Estamos quase chegando. Mais um taco de hora e dá pra ver a sede da fazenda Campo Grande.
Com dificuldade, João retirou do bolso um pedaço Arapiraca; palha de milho e um canivete.
— O senhor gasta, seu Alexandre?
— Agradecido! Não bebo nem fumo.
— Pode enrolar outro palheiro pra mim?
— Não se acanhe.
Meio sem jeito, Xandão cortava e deixava o fumo picado miúdo, cair na palma mão. Aparou as pontas da palha de milho, e derramou o fumo naquela pequena manta, semelhante a uma casca de baunilha. Enrolou. Apertou bem e entregou a João Velho. “ Agora o senhor acaba de fechar.”
João puxou uma baforada. Levantou o queixo, e soprou a fumaça pra cima. Depois, aproximou-se da outra montaria.
— Arrede, seu João, meu animal não aceita nada por trás!
— Pareceu manso!
— Tem sestro.
— Se fosse só bicho que tem sestro... Conheci uma polaca na Vila Mimosa... Conto não! É coisa feia...
— Estou gostando se sua prosa.
— Também tive simpatia por seu modo. Por que veio sozinho caçar onça?
— Vingança!
— A fera deu baixa na criação?
— Não quero falar disso agora. Guardo meu sentimento na bacia dos olhos, para derramar em mim mesmo. Despejo sozinho, lá dentro do coração. O senhor me pareceu uma pessoa boa. Acho melhor a gente se tratar de compadre. Aproxima mais o sangue.
— Fico satisfeito com a proposta, compadre João.
— Se Euzébia ainda pudesse ter filho, eu dava pro senhor batizar.
— Fico feliz, compadre Velho.
— Você se resolve, Xandão! Ou me chama de João, de Joao Velho, ou Nhô Velho. Só não precisa chamar pelo nome completo. Nome de João Ferreira da Silva, quase todo João tem.
— Respeito seu gosto, compadre Nhô.
—Tem coisa de gostar mais. E a gente gosta muito quando é chamado pelo nome que gosta. Tem apelido que faz mal! Quero dizer: faz mal lá dentro da pessoa. Lá na vaidade dela. Todo homem tem seu orgulho de homem dentro si. Não falo mal de ninguém. E se o sujeito vier falar mal de outro perto de mim, eu disparo a fazer elogio; passo a falar bem da pessoa mal falada. Aí, o língua-de-trapo fica desconsertado, quando não vai embora, muda de assunto.
— Falar mal do próximo é se colocar como juiz. Quem é o homem para julgar o outro? Deus julga porque tem poder para salvar. Já o homem condena o outro, mas não pode salvar nem a si mesmo.
— Compreendo
— Todos nós caímos em muitos pontos. Se não caímos de outro modo, caímos por palavras ou pecamos em pensamento. Quem nunca pecou?
— Fumar é pecado?
— Todo vício, de alguma forma, faz mal. Se leva ao inferno, não sei dizer.
— Já estive no inferno.
— Foi no inferno?
— Fui!
— Viu o capiroto?
— Quase coisa.
— Cruz, credo. Pois conte! Mas deixe eu me benzer primeiro.
— Faça o Glória ao Pai direito. Esse gesto que fez é de tanger mosca!
E João Velho fez o sinal da cruz, antes de narrar sua visita ao inferno. Xandão mostrou medo. E também se benzeu. Queria ouvir a história e não queria.
— Faz muito tempo! Assim que me senti com o gangote grosso, arrumei a mala e fui procurar emprego no Rio de Janeiro. Tinha quase nada não! O quê um rapaz nascido e crescido na roça tem pra botar na bagagem? Até o saber é pouco!
— Conta logo, homem de Deus!
— Pois bem! Meu primeiro emprego foi numa chácara. Num era bem dentro da capital não! Era puxado pra fora, numa cidade montada no morro. Lugar bonito pra morar...
— Conta logo, homem! Não precisa passar o endereço. Quero ir lá não!
— Como eu ia dizendo. O primeiro emprego não deu certo. A culpa foi minha. Não roubei, nem matei, mas fiz besteira.
— Foi por causa disso que o senhor veio embora?
— Não! Por causa disso, só mudei pra capital. Foi na capital que conheci a VM da rua Ceará. Recomendo ninguém ir lá não!
— Quero ir não. Conte a história.
— Foi lá que vi a desgraça, o inferno.
— Viu ou não viu o capiroto?
— Já disse que não vi.
— Com licença da palavra: que merda você viu?
— Pior que isso compadre. Fedor de enxofre.
— Então diga!
—Tem uma vila lá no Rio de Janeiro, cheia de casa.
— Qual é a vila que não é cheia de casa, compadre?
— Cheia de casa de prostituição. É uma vila só de rapariga. A rua, d’um lado e do outro é só de mulher da vida. Mulher bonita, mulher feia, nova, velha... Na Vila Mimosa tem mulher vestida no jeito de ir pra festa, outras com roupa, no ponto de esperar homem na cama. Pouco pano cobrindo as vergonhas. Dá pra ver tudo: peito mole, duro, peito caído, peito empinado. Todo mundo caçando jeito de se divertir. Bebendo e dançando.
— Foi na dança que vi a feição do capiroto, e senti o fedor de enxofre. O capiroto requebra no corpo daquelas mulheres, fazendo posição de quem vai vadiar, provocando assanhamento. Num lugar daquele, não tenho coragem de beber nem um copo d’água. E vou contar pro senhor: é dentro da cidade, arribado da praça da Bandeira. Pouquinho.
— Quero endereço não, Nhô! Conte só a história.
— Pois bem, o lugar é muito conhecido no Rio. Jornalista vai lá fazer retrato pra botar no jornal. A televisão mostra para o mundo todo. Acha que é vantagem. Sujeira que a gente não pode com ela, empurra debaixo do tapete. Não tem pra quê mostrar ao mundo. Só estou contando que o senhor me pediu.
— Pedi, e até agora você não contou.
— Vou contar agorinha: As mulheres chegavam lá empurradas da sorte. Sem maridos, fugidas da guerra... naquele tempo...
— Adiante essa parte. Você não é do tempo da guerra.
— Bom, quando estive por lá, as prostitutas estrangeiras não estavam mais. Tem história delas em livro, mas num dá o recado de modo de se entender. Ou dá, e o povo não entende. Tem que ir lá pra ver.
— Vou não, compadre, já disse que não vou!
— Cansadas de apanhar dos maridos — tô contando já nos tempos de agora, — as mulheres se separam deles e vão caçar meio de vida na Vila Mimosa. Elas chegam com meia-vida, e são obrigadas pela dona do cabaré a se misturarem com aquelas que já têm mais de cem mil quilômetros rodados, precisando fazer serviço de motor e lanternagem. É ordem da madama: tem que se misturar para o freguês escolher. Então, a madama acende uma luz negra; fica todo mundo igual. Quem se deu mal na escolha, tem que pagar, nem que não faça nada. Entrou no quarto, paga. Aquilo é um inferno.
— Que inferno é esse que não tem capeta?
— Ele está lá. Ninguém vê o capiroto com chifre e tridente. E ele é besta de se apresentar assim? Fica dançando e se requebrando no corpo daquelas mulheres, convidando, convidando pra vadiagem. Penso que pra vadiar, tem que casar na igreja, pra Deus abençoar.
— É assim mesmo! Tem gente que diz que homem beijar homem e mulher beijar mulher é normal. É a realidade do mundo! O mundo lá fora pode ser desse jeito... Comigo não! Coisa do mundo é do mundo. Respeito. Seja por doença ou safadeza, respeito, mas não quero pra mim, nem pra minha família. As coisas do mundo devem ficar no mundo. A casa do homem é o santuário da família. Tolero, mas não aceito. Aceitar é outra coisa. Ninguém venha me obrigar a ser mulher. Nasci homem! Sou macho. Homem é homem, mulher é mulher! Deus não criou o terceiro sexo. Isso é coisa do cão. Quando o mundo todo estiver igual a Sodoma e Gomorra, vai cair enxofre do céu e acabar com todos os viventes. Até os animais vão pagar pelo pecado do homem.
Nhô olha admirado para Xandão, montado num burro velho, com as rédeas soltas, sem fazer diferenciação.
— Não acredito que esse burrinho seu seja brabo! Não aceitar nada por trás é outra coisa. Também não aceito! Mas se anda com as rédeas soltas. É manso.
Xandão riu.
— Dizem que burro não amansa. Acostuma com o dono. Esse aqui já teve tanto dono, que se acostuma com qualquer nome e com qualquer pessoa.
— Como é o nome dele?
— Cada dono põe um nome que quer em seu burrinho. Em minhas mãos ele atende por Fome.
— Fome, compadre! Nome esquisito.
— O dono caça é nome esquisito pra botar nos bichinhos!
— É mesmo. O meu chama Xerém. Quem monta nele fica quebrado igual milho no pilão. Pra ter ganhado o nome de fome. Seu burrinho deve ser muito comedor.
— Nem não! Ele nasceu na beira do riacho seco, lá nas bandas de onde veio. A mãe morreu na parição. Ele passou fome e sede. Morreu de fome. Quase. Ai, pegou o nome pra ele, assim, que caiu em minhas mãos. O senhor entente.
João Velho silencia por alguns minutos como se estivesse fechando as cortinas para mudar o cenário.
— Ia pensando comigo: me sinto vingado.
— Vingado?
— Vingado desse bicho que levo as orelhas nos alforjes.
— Ela comeu bezerro na fazenda?
— Comeu, mas isso não conta. O padrão tem muito. Ela comeu meu filho, e eu só tinha um.
— Fico de coração rasgado, de luto com o senhor.
— Tem luto não! Honrei o sangue de meu filho. Tristeza tem. Fico pensando na mãe. A mãe de José Lino era muito apegada ao menino... Por pouco num perdeu também o marido... Quando a onça se aproximou, eu já estava machucado da queda. Botei a carabina pra matar o burro, mas não tinha bala na agulha. Tivesse matado, tinha me arrependido, porque depois que a onça apareceu, assim, do nada, ele não arredou o pé de mim. Parece que se entregava para morrer junto. Até serviu de apoio para encostar a carabina. Eu estava fraco, se não apoiasse n’alguma coisa, era perigoso errar o tiro e o bicho me comer. Fiquei detrás do burro. Mais para me apoiar. Medo, tive não! Eu não tinha mão pra segurar. Tinha mas estava sem serventia. Foi como se o burro tivesse segurado a arma pra mim. E eu só tinha duas balas.
— Com sua licença, Nhô! Estou meio sem jeito de perguntar, mas o senhor achou o cadáver?
— Só o batedor e a sangueira. Tive coragem de farejar não. Só me subiu ira. Se a arma não disparasse, eu ia de unha na onça. Caçava um jeito de fundava o dedo no ‘zói’ da malvada ou no traseiro... O lugar que tivesse um buraco, eu enfiava o dedo e arrancava um pedaço de carne dela. Morria grudado na onça igual tamanduá-bandeira.
— Sou compreendido de sua dor. A dor da perda de um filho é grande demais... Se o compadre não se zangar. A história da visita ao inferno acabou, ou o amigo deixou uma parte pra contar depois?
— Estive umas duas ou três vezes no Teatro Municipal. Prestei atenção. Eles contam estória dividida em pedaços. Conta um pedaço, fecha a cortina. E quando abre, mostra o visconde bebendo numa mesa, arrodeado de prostituta, como na Vila Mimosa que João Guimarães diz sem dizer. Aí, fecha de novo, e quando reabre, mostra a vida acontecendo, já de outro jeito, e com outras pessoas. Mas é gente que não existe mais. Na VM de hoje é diferente, o povo sem nome, mostra a cara mesmo, nem precisa de ninguém fazer o papel. Quem tem nome a zelar, sabe como se divertir sem ser visto. Mas o capiroto tá vendo e bate palmas.
— Que diacho é VM, compadre?
—Homem, fica mais esperto! VM é Vila Mimosa. Já se esqueceu?
— Humm!...
— Pois bem, aquelas mulheres foram perseguidas, mais da conta. Ninguém queria polaca morando perto. E foram dando jeito de escorraçar pra longe. Isso naquele tempo. Hoje ninguém mais sabe quem é quem... Quando estive lá, foi nesses tempos modernos. Tinha mais polaca não. Vi mulheres tatuadas, seminuas a fervilhar nas calçadas e portas de bares; vi quartos enfileirados como lojas de galerias. Em cada porta uma mulher dizendo em voz alta: ‘Paga só dez reais por um beijo. O serviço completo na cama é vinte’.
Ó tempos...
Vaqueiro Alexandre mexeu-se na sela. Sentou de banda, flexionou uma perna e retesou a outra.
— Precisa se acanhar não, pode libertar o gás..
— Deixa de sem- graceza, Nhô e termine de contar a história!
Então, o capim orvalhado roçava nas pernas das meninas. Elas gritavam assustadas. Dengosas... “Ui, pensei que fosse uma cobra!” Era quando um menino afoito se aproximava, mostrando coragem. Procurando pau pra dar nalgum animal rastejante e peçonhento...
— Matava a cobra?
— Tinha cobra não! Mas... no dia em que um cascavel atravessou a vereda. Senti o coração de Euzébia saltando fora.
João percebeu que estava prestes a revelar uma intimidade.
— Coisa à-toa, seu Alexandre. Coisa de menino metido a homem.
— Já começou, agora conte. Com todo respeito à sua senhora. Naquele tempo o amigo era solteiro...
— Pois aí, o coração de Euzébia disparou assustado. Pegou minha mão e pôs sobre o peito dela. Meu coração também acelerou. Parece que ela ficou envergonhada e tirou a mão dali. Depois, me olhou de um jeito tão bonito... Reparei direito: os olhos dela eram verdes, contornados por um til bem em volta de cada um deles. Desenhados pelas mãos de bom artesão. Acontecia às vezes um roçar de mão, quando os pés desviavam de uma pedra no caminho, acontecia, sem querer, querendo muito. Aí as costas das mãos se tocavam. Ela puxava demonstrando susto, lavada de vergonha, e o menino, envergonhado, punha a mão no bolso.
— O amigo é nativo dessas redondezas?
— Meu umbigo foi enterrado no barranco do Saracura. E o senhor?
— Nasci em Taubaté, no estado São Paulo, mas cansei da lida na cidade grande.
O sol se escondeu detrás de uma nuvem azul-acinzentada.
— Vamos tomar chuva no lombo.
— É nuvem passageira. Estamos quase chegando. Mais um taco de hora e dá pra ver a sede da fazenda Campo Grande.
Com dificuldade, João retirou do bolso um pedaço Arapiraca; palha de milho e um canivete.
— O senhor gasta, seu Alexandre?
— Agradecido! Não bebo nem fumo.
— Pode enrolar outro palheiro pra mim?
— Não se acanhe.
Meio sem jeito, Xandão cortava e deixava o fumo picado miúdo, cair na palma mão. Aparou as pontas da palha de milho, e derramou o fumo naquela pequena manta, semelhante a uma casca de baunilha. Enrolou. Apertou bem e entregou a João Velho. “ Agora o senhor acaba de fechar.”
João puxou uma baforada. Levantou o queixo, e soprou a fumaça pra cima. Depois, aproximou-se da outra montaria.
— Arrede, seu João, meu animal não aceita nada por trás!
— Pareceu manso!
— Tem sestro.
— Se fosse só bicho que tem sestro... Conheci uma polaca na Vila Mimosa... Conto não! É coisa feia...
— Estou gostando se sua prosa.
— Também tive simpatia por seu modo. Por que veio sozinho caçar onça?
— Vingança!
— A fera deu baixa na criação?
— Não quero falar disso agora. Guardo meu sentimento na bacia dos olhos, para derramar em mim mesmo. Despejo sozinho, lá dentro do coração. O senhor me pareceu uma pessoa boa. Acho melhor a gente se tratar de compadre. Aproxima mais o sangue.
— Fico satisfeito com a proposta, compadre João.
— Se Euzébia ainda pudesse ter filho, eu dava pro senhor batizar.
— Fico feliz, compadre Velho.
— Você se resolve, Xandão! Ou me chama de João, de Joao Velho, ou Nhô Velho. Só não precisa chamar pelo nome completo. Nome de João Ferreira da Silva, quase todo João tem.
— Respeito seu gosto, compadre Nhô.
—Tem coisa de gostar mais. E a gente gosta muito quando é chamado pelo nome que gosta. Tem apelido que faz mal! Quero dizer: faz mal lá dentro da pessoa. Lá na vaidade dela. Todo homem tem seu orgulho de homem dentro si. Não falo mal de ninguém. E se o sujeito vier falar mal de outro perto de mim, eu disparo a fazer elogio; passo a falar bem da pessoa mal falada. Aí, o língua-de-trapo fica desconsertado, quando não vai embora, muda de assunto.
— Falar mal do próximo é se colocar como juiz. Quem é o homem para julgar o outro? Deus julga porque tem poder para salvar. Já o homem condena o outro, mas não pode salvar nem a si mesmo.
— Compreendo
— Todos nós caímos em muitos pontos. Se não caímos de outro modo, caímos por palavras ou pecamos em pensamento. Quem nunca pecou?
— Fumar é pecado?
— Todo vício, de alguma forma, faz mal. Se leva ao inferno, não sei dizer.
— Já estive no inferno.
— Foi no inferno?
— Fui!
— Viu o capiroto?
— Quase coisa.
— Cruz, credo. Pois conte! Mas deixe eu me benzer primeiro.
— Faça o Glória ao Pai direito. Esse gesto que fez é de tanger mosca!
E João Velho fez o sinal da cruz, antes de narrar sua visita ao inferno. Xandão mostrou medo. E também se benzeu. Queria ouvir a história e não queria.
— Faz muito tempo! Assim que me senti com o gangote grosso, arrumei a mala e fui procurar emprego no Rio de Janeiro. Tinha quase nada não! O quê um rapaz nascido e crescido na roça tem pra botar na bagagem? Até o saber é pouco!
— Conta logo, homem de Deus!
— Pois bem! Meu primeiro emprego foi numa chácara. Num era bem dentro da capital não! Era puxado pra fora, numa cidade montada no morro. Lugar bonito pra morar...
— Conta logo, homem! Não precisa passar o endereço. Quero ir lá não!
— Como eu ia dizendo. O primeiro emprego não deu certo. A culpa foi minha. Não roubei, nem matei, mas fiz besteira.
— Foi por causa disso que o senhor veio embora?
— Não! Por causa disso, só mudei pra capital. Foi na capital que conheci a VM da rua Ceará. Recomendo ninguém ir lá não!
— Quero ir não. Conte a história.
— Foi lá que vi a desgraça, o inferno.
— Viu ou não viu o capiroto?
— Já disse que não vi.
— Com licença da palavra: que merda você viu?
— Pior que isso compadre. Fedor de enxofre.
— Então diga!
—Tem uma vila lá no Rio de Janeiro, cheia de casa.
— Qual é a vila que não é cheia de casa, compadre?
— Cheia de casa de prostituição. É uma vila só de rapariga. A rua, d’um lado e do outro é só de mulher da vida. Mulher bonita, mulher feia, nova, velha... Na Vila Mimosa tem mulher vestida no jeito de ir pra festa, outras com roupa, no ponto de esperar homem na cama. Pouco pano cobrindo as vergonhas. Dá pra ver tudo: peito mole, duro, peito caído, peito empinado. Todo mundo caçando jeito de se divertir. Bebendo e dançando.
— Foi na dança que vi a feição do capiroto, e senti o fedor de enxofre. O capiroto requebra no corpo daquelas mulheres, fazendo posição de quem vai vadiar, provocando assanhamento. Num lugar daquele, não tenho coragem de beber nem um copo d’água. E vou contar pro senhor: é dentro da cidade, arribado da praça da Bandeira. Pouquinho.
— Quero endereço não, Nhô! Conte só a história.
— Pois bem, o lugar é muito conhecido no Rio. Jornalista vai lá fazer retrato pra botar no jornal. A televisão mostra para o mundo todo. Acha que é vantagem. Sujeira que a gente não pode com ela, empurra debaixo do tapete. Não tem pra quê mostrar ao mundo. Só estou contando que o senhor me pediu.
— Pedi, e até agora você não contou.
— Vou contar agorinha: As mulheres chegavam lá empurradas da sorte. Sem maridos, fugidas da guerra... naquele tempo...
— Adiante essa parte. Você não é do tempo da guerra.
— Bom, quando estive por lá, as prostitutas estrangeiras não estavam mais. Tem história delas em livro, mas num dá o recado de modo de se entender. Ou dá, e o povo não entende. Tem que ir lá pra ver.
— Vou não, compadre, já disse que não vou!
— Cansadas de apanhar dos maridos — tô contando já nos tempos de agora, — as mulheres se separam deles e vão caçar meio de vida na Vila Mimosa. Elas chegam com meia-vida, e são obrigadas pela dona do cabaré a se misturarem com aquelas que já têm mais de cem mil quilômetros rodados, precisando fazer serviço de motor e lanternagem. É ordem da madama: tem que se misturar para o freguês escolher. Então, a madama acende uma luz negra; fica todo mundo igual. Quem se deu mal na escolha, tem que pagar, nem que não faça nada. Entrou no quarto, paga. Aquilo é um inferno.
— Que inferno é esse que não tem capeta?
— Ele está lá. Ninguém vê o capiroto com chifre e tridente. E ele é besta de se apresentar assim? Fica dançando e se requebrando no corpo daquelas mulheres, convidando, convidando pra vadiagem. Penso que pra vadiar, tem que casar na igreja, pra Deus abençoar.
— É assim mesmo! Tem gente que diz que homem beijar homem e mulher beijar mulher é normal. É a realidade do mundo! O mundo lá fora pode ser desse jeito... Comigo não! Coisa do mundo é do mundo. Respeito. Seja por doença ou safadeza, respeito, mas não quero pra mim, nem pra minha família. As coisas do mundo devem ficar no mundo. A casa do homem é o santuário da família. Tolero, mas não aceito. Aceitar é outra coisa. Ninguém venha me obrigar a ser mulher. Nasci homem! Sou macho. Homem é homem, mulher é mulher! Deus não criou o terceiro sexo. Isso é coisa do cão. Quando o mundo todo estiver igual a Sodoma e Gomorra, vai cair enxofre do céu e acabar com todos os viventes. Até os animais vão pagar pelo pecado do homem.
Nhô olha admirado para Xandão, montado num burro velho, com as rédeas soltas, sem fazer diferenciação.
— Não acredito que esse burrinho seu seja brabo! Não aceitar nada por trás é outra coisa. Também não aceito! Mas se anda com as rédeas soltas. É manso.
Xandão riu.
— Dizem que burro não amansa. Acostuma com o dono. Esse aqui já teve tanto dono, que se acostuma com qualquer nome e com qualquer pessoa.
— Como é o nome dele?
— Cada dono põe um nome que quer em seu burrinho. Em minhas mãos ele atende por Fome.
— Fome, compadre! Nome esquisito.
— O dono caça é nome esquisito pra botar nos bichinhos!
— É mesmo. O meu chama Xerém. Quem monta nele fica quebrado igual milho no pilão. Pra ter ganhado o nome de fome. Seu burrinho deve ser muito comedor.
— Nem não! Ele nasceu na beira do riacho seco, lá nas bandas de onde veio. A mãe morreu na parição. Ele passou fome e sede. Morreu de fome. Quase. Ai, pegou o nome pra ele, assim, que caiu em minhas mãos. O senhor entente.
João Velho silencia por alguns minutos como se estivesse fechando as cortinas para mudar o cenário.
— Ia pensando comigo: me sinto vingado.
— Vingado?
— Vingado desse bicho que levo as orelhas nos alforjes.
— Ela comeu bezerro na fazenda?
— Comeu, mas isso não conta. O padrão tem muito. Ela comeu meu filho, e eu só tinha um.
— Fico de coração rasgado, de luto com o senhor.
— Tem luto não! Honrei o sangue de meu filho. Tristeza tem. Fico pensando na mãe. A mãe de José Lino era muito apegada ao menino... Por pouco num perdeu também o marido... Quando a onça se aproximou, eu já estava machucado da queda. Botei a carabina pra matar o burro, mas não tinha bala na agulha. Tivesse matado, tinha me arrependido, porque depois que a onça apareceu, assim, do nada, ele não arredou o pé de mim. Parece que se entregava para morrer junto. Até serviu de apoio para encostar a carabina. Eu estava fraco, se não apoiasse n’alguma coisa, era perigoso errar o tiro e o bicho me comer. Fiquei detrás do burro. Mais para me apoiar. Medo, tive não! Eu não tinha mão pra segurar. Tinha mas estava sem serventia. Foi como se o burro tivesse segurado a arma pra mim. E eu só tinha duas balas.
— Com sua licença, Nhô! Estou meio sem jeito de perguntar, mas o senhor achou o cadáver?
— Só o batedor e a sangueira. Tive coragem de farejar não. Só me subiu ira. Se a arma não disparasse, eu ia de unha na onça. Caçava um jeito de fundava o dedo no ‘zói’ da malvada ou no traseiro... O lugar que tivesse um buraco, eu enfiava o dedo e arrancava um pedaço de carne dela. Morria grudado na onça igual tamanduá-bandeira.
— Sou compreendido de sua dor. A dor da perda de um filho é grande demais... Se o compadre não se zangar. A história da visita ao inferno acabou, ou o amigo deixou uma parte pra contar depois?
— Estive umas duas ou três vezes no Teatro Municipal. Prestei atenção. Eles contam estória dividida em pedaços. Conta um pedaço, fecha a cortina. E quando abre, mostra o visconde bebendo numa mesa, arrodeado de prostituta, como na Vila Mimosa que João Guimarães diz sem dizer. Aí, fecha de novo, e quando reabre, mostra a vida acontecendo, já de outro jeito, e com outras pessoas. Mas é gente que não existe mais. Na VM de hoje é diferente, o povo sem nome, mostra a cara mesmo, nem precisa de ninguém fazer o papel. Quem tem nome a zelar, sabe como se divertir sem ser visto. Mas o capiroto tá vendo e bate palmas.
— Que diacho é VM, compadre?
—Homem, fica mais esperto! VM é Vila Mimosa. Já se esqueceu?
— Humm!...
— Pois bem, aquelas mulheres foram perseguidas, mais da conta. Ninguém queria polaca morando perto. E foram dando jeito de escorraçar pra longe. Isso naquele tempo. Hoje ninguém mais sabe quem é quem... Quando estive lá, foi nesses tempos modernos. Tinha mais polaca não. Vi mulheres tatuadas, seminuas a fervilhar nas calçadas e portas de bares; vi quartos enfileirados como lojas de galerias. Em cada porta uma mulher dizendo em voz alta: ‘Paga só dez reais por um beijo. O serviço completo na cama é vinte’.