O beijo dela
O beijo dela. Fui pego de surpresa. Primeiro o nome. Começava num rosnado e terminava em melodia. Rrr, vibrava, sotaque italiano. Depois, duas eles bem molhadas. Rafaella.
E essa coisa interessante que aconteceu primeiro nos meus ouvidos foi parar dentro das minhas calças. Ela viu o volume. Eu falei uma besteira. Levei um tapa no rosto, daqueles de arder na alma, e então o beijo.
O beijo dela.
Em um momento eu era um Apolo que ofuscava o brilho dos homens e incendiava o coração das mulheres. No outro, era uma sombra que a acompanhava com canina devoção. Um cão. Escorraçado e afagado. Conduzido à coleira. Comendo migalhas. Ganindo de mágoa e babando de euforia.
Ela era loura, vigorosa, indecifrável, capaz de torcer o nariz para uma gargantilha de brilhantes e sorrir com malícia ao ganhar uma flor de calçada. Mas estou invertendo a ordem dos acontecimentos. Os primeiros presentes foram simples. Ela os apreciou. E a cada vez me recompensou. O beijo dela acabou com minha paz. Porque eu quis mais e ela, também. Agrados mais sofisticados. Mais caros. Ela virou minha vida do avesso. Virou meus bolsos do avesso.
Aparecia apenas quando queria. Chegava me empurrando, me arranhando, me jogando sobre a cama, rasgando as minhas costas com as unhas, tomando meu fôlego, me matando. Matando devagar. Sugando.
Depois, me xingava. Ia embora. Eu chorava em silêncio. Eu a amava.
Eu a odiava. A bruxa peçonhenta. A fada encantadora. Mulher incrível, inevitável, insuportável. Nunca dizia se voltaria. E eu esperava seu retorno, impaciente, dependente. Agitado em meu quarto como um tigre em exígua jaula. Muito café. Muitos cigarros. Muitas olheiras. Ela podia aparecer de madrugada e se eu não ouvisse a campainha ela não poderia entrar...
Meu corpo não enfrentava o dia sem uma noite ao lado dela. Sobre ela. Debaixo dela. Como fosse. Ela agarrava minha masculinidade, exaltava-a e então a destruía. Destruía-me. Fumava meu corpo como um cigarro barato e atirava a guimba no lixo.
Não há escravo sem mestre. Eu não existia mais sem ela. Sem o beijo dela. O beijo que me viciou, me deturpou, me extingüiu.
Ontem eu quis saber se havia outro. Ela riu. Meu amor era piada para ela. Disse que teria quantos amantes quisesse. Que eu não era homem para ela. Fraco. Pequeno. Insuficiente. Chamei-a de vadia e ela me estapeou a boca. Um fio de sangue muito ralo. Ela lambeu meu lábio partido e me chamou de menino.
Ela tinha poder sobre mim, um poder rude e cáustico. Mas me disse uma palavra terna. Menino. Isso bastou para fragilizar o elo.
Mas ela vai voltar hoje para reforçar o vínculo. Sabe que deve fazer isso ou vai me perder. Ou enlouqueço e me atiro pela janela.
Ela vai chegar jogando a bolsa sobre a mesa, me empurrando para o quarto. E vai me dar um único privilégio, deixando-me deitar sobre seu corpo. E vai me insultar gritando enquanto empurro meu sexo dentro do dela. E eu vou amá-la. Um homem deve fazer o que é necessário.
Na hora em que ela gritar como uma soprano em êxtase eu vou agarrá-la pelos cabelos. Os cabelos muito longos, muito louros. E vou fazer com eles uma forca dourada. E passá-los com delicadeza em torno do seu pescoço arfante. Apertar com força. Deixar que as unhas vermelhas lacerem meu peito enquanto o corpo exuberante se debate sob o meu, querendo fugir, querendo viver. Porque um homem deve fazer o que é necessário.
E então Rafaella deixará de ser. E eu voltarei a ser o vira-lata magro, sem coleira, sem nome, mas livre.
Que os tabacos e uísques e drogas do mundo me aprisionem. Que eu possa ser um viciado, um perdido. Serei um miserável de sorte se, mergulhado em outra decadência, eu possa me esquecer de Rafaella.
E do beijo dela.