O jogo de marionetes
Foi um tanto amena a noite de ontem, mas mesmo assim fazia calor. Com a atmosfera abafada e a chuva tímida do lado de fora, pensei em sair da cama para observar a rua. Acabei atirando-me o corpo na poltrona que ficava em frente à uma janela, no escritório. Não sabia que horas eram, mas o céu era escuro e a lua brilhava. Talvez tenha sido isso que me despertara um desejo nervoso, quase cego, por adrenalina. Deixei que meu corpo tomasse conta da situação, sucumbi ao id que há tanto tempo não respirava, que há tanto tempo reclamava um habeas corpus frustrado. Não posso dizer que não o ouvia, mas as circunstâncias eram outras, bem diferentes de alguns anos atrás.
Foi exatamente nesse momento que senti sua presença. Fitava-me silenciosa, com maldade nos olhos. “O que você esperava?”, ouvi. Senti o estômago apertar-se sobre o intestino de tal modo que, dado momento, caí no chão contorcendo-me freneticamente. Pensava em como chegara até ali, no que deixei para trás e em quem deixei para trás. Sabia que existia um rosto, uma feição lívida e plena que estava sorrindo com dentes ligeiramente tortos, mas agradáveis. O fogo não me deixava lembrar, apanhava-me pelas entranhas e obrigava-me a dançar sob os cordéis que caiam como chibatas da cruzeta prateada que girava no teto. “A ignorância é um presente divino”, disse-me a voz. Olhei para a ponta dos dedos e estavam sangrando, revirei-me e olhei para o alto. Era uma mulher esguia de face pálida e dura, perigosamente bonita. Usava uma calça social que cobria pernas finas e bem moldadas, suéter preto com gola role e luvas de pelica. Passou a mão frágil sobre minha cabeça, alisando meus cabelos com cuidado. Olhou-me nos olhos, tinha-os em tom azul acinzentado, seus lábios abriram-se delicadamente e finalmente falou-me:
- O que está fazendo aí em baixo, bonito? Por acaso anda procurando insetos? Estão por toda parte. Não se esqueça de respirar, tudo bem?
Sentia sede, sentia que pisava em mim sem dó. Meu braço coçava e sangrava. Mesmo assim ela continuou. Por fim, pôs gentilmente o pé direito, nu e gelado, em minha face. Apertou-me o crânio contra o assoalho e o cheiro era doce e suave. Repetiu o movimento com raiva, fazendo força e crispando as mãos. Senti-me tentado e ao mesmo tempo impotente diante de seu rosto franzido e límpido. A cada segundo parecia-me que o mundo era menos real, que o teto era o próprio espaço sideral e a mulher uma manchinha onírica flutuando numa pequena nuvem de fumaça branca. Girávamos como cata-ventos brilhantes pregados sobre o gramado numa noite de luar. Éramos ela e eu apenas, ensanguentados, rolando indolentes pelo assoalho. Não lembro muito bem a partir daí, posso ter adormecido.
Centro Universitário São Camilo
Cachoeiro de Itapemirim - ES