EX-LIBRIS
- (ficção histórica) -
- (ficção histórica) -
Na fria noite de 10 de maio de 1933, as ruas de Berlim foram feridas por uma procissão de centenas de estudantes que, vestidos com seus uniformes cerimoniais e ostentando os emblemas de suas federações presos ao peito na altura do coração, marcharam à frente do busto vandalizado e decapitado de Magnus Hrischeld.
Naquela noite, eu era um daqueles muitos jovens de tez branca e andar firme que caminhavam em perfeita ordem, a passos sincronizados e com orgulho e lágrimas nos olhos, ao lado de membros da SS, da SA e da Stahlheim, e confesso que em toda minha vida jamais senti tamanha emoção.
Com nossos olhos iluminados apenas pelo fogo das tochas que trazíamos em nossas mãos e que iriam alimentar as chamas da enorme pira que arderia na Opernplatz, para dali se estender por toda a Alemanha, vimos chegar os carros de bois que se moviam pesadamente arrastando ao patíbulo os livros condenados que naquela noite seriam queimados na cerimonia que daria inicio à purificação da cultura alemã.
Enquanto observávamos os primeiros livros arderem, me lembrei de quando li pela primeira vez um dos cartazes que nos convocavam para aquela noite dizendo “Hoje os escritores, manhã os professores”.
Naquele primeiro momento, aquelas palavras me causaram certa estranheza e mal estar, me levando a questionar qual era seu real significado, entretanto, depois de algum tempo, a presença constante daquelas palavras em minha vida me levaram a uma epifania e compreendi que, apesar de soarem como uma ameaça, nós éramos e sempre seríamos um povo civilizado, governados por uma constituição e por leis, não uma nação de bárbaros degenerados como eram os russos, portanto, nós jamais queimaríamos pessoas.
Apesar disso, era preciso entender e aceitar que nosso idioma, aquele que carregava nossa alma, vinha sendo maculado há tanto tempo pela literatura degenerada de judeus, socialdemocratas, bolcheviques e pacifistas sem que nos déssemos conta que agora, quando nossa língua mãe clamava por ser libertada, era preciso que aceitássemos e agíssemos sem questionamentos ou duvidas.
Tal necessidade justificava aquele tipo de frases de efeito que precisavam ser ditas, ainda que seu único objetivo fosse incutir na mente dos jovens alemães que a purga era essencial, ainda que soubéssemos que no fundo soubéssemos que não eram verdadeiras, pois nós éramos o futuro da Alemanha.
Nós não podíamos mais permitir que aquele bordel literário continuasse a semear a imundície que contaminava tantos bons alemães. Era nosso dever sagrado nos tornarmos o bastião das tradições do nosso povo e fazer frente àqueles que incessantemente atentavam contra o espírito alemão, mesmo que aquilo significasse o uso de frases como aquela ou a cena de barbárie cultural que estávamos prestes a realizar.
O inimigo do povo alemão, aquela minoria de estrangeiros que havia se infiltrado entre nós através dos séculos e que como os vermes que devoram em silêncio as carnes de um cadáver, havia disseminado seus valores imorais e suas ideias deturpadas entre nós. Enfim tinha chegado o momento de fazê-los se adequar ou desaparecer.
Foi assim que, acima de tudo pela Alemanha, as fogueiras iluminaram aquela noite fria sob o olhar atônito de mais de quarenta mil berlinenses que observavam a tudo com um misto de medo e fascínio e no mais profundo silêncio quebrado somente pelos estalos do fogo que devorava os pensamentos contidos nas linhas de todos aqueles livros e pela voz frágil de Goebbels profetizando que a partir daquele momento e graças a nossa coragem “as fundações intelectuais da República de Novembro vão por terra, mas de seus entulhos nascerá um novo espírito triunfante como a Fênix”.
Ao observar aquelas palavras profanas se transformando em cinzas que seriam levadas pelos ventos do esquecimento até se perderem totalmente no infinito da história, compreendi que se vencêssemos nossos inimigos no campo das ideias, seria muito mais fácil vencê-los no campo de batalha por isso aquele ritual era tão importante.
E, sob a luz tênue dos archotes, enquanto lançávamos ao fogo todos aqueles livros malditos, a insanidade febril nos dominou e juramos sem perceber que, em nome da pureza do Reich e da grandeza da Alemanha, aceitaríamos até mesmo queimar pessoas...
(.....)
Naquela noite, eu era um daqueles muitos jovens de tez branca e andar firme que caminhavam em perfeita ordem, a passos sincronizados e com orgulho e lágrimas nos olhos, ao lado de membros da SS, da SA e da Stahlheim, e confesso que em toda minha vida jamais senti tamanha emoção.
Com nossos olhos iluminados apenas pelo fogo das tochas que trazíamos em nossas mãos e que iriam alimentar as chamas da enorme pira que arderia na Opernplatz, para dali se estender por toda a Alemanha, vimos chegar os carros de bois que se moviam pesadamente arrastando ao patíbulo os livros condenados que naquela noite seriam queimados na cerimonia que daria inicio à purificação da cultura alemã.
Enquanto observávamos os primeiros livros arderem, me lembrei de quando li pela primeira vez um dos cartazes que nos convocavam para aquela noite dizendo “Hoje os escritores, manhã os professores”.
Naquele primeiro momento, aquelas palavras me causaram certa estranheza e mal estar, me levando a questionar qual era seu real significado, entretanto, depois de algum tempo, a presença constante daquelas palavras em minha vida me levaram a uma epifania e compreendi que, apesar de soarem como uma ameaça, nós éramos e sempre seríamos um povo civilizado, governados por uma constituição e por leis, não uma nação de bárbaros degenerados como eram os russos, portanto, nós jamais queimaríamos pessoas.
Apesar disso, era preciso entender e aceitar que nosso idioma, aquele que carregava nossa alma, vinha sendo maculado há tanto tempo pela literatura degenerada de judeus, socialdemocratas, bolcheviques e pacifistas sem que nos déssemos conta que agora, quando nossa língua mãe clamava por ser libertada, era preciso que aceitássemos e agíssemos sem questionamentos ou duvidas.
Tal necessidade justificava aquele tipo de frases de efeito que precisavam ser ditas, ainda que seu único objetivo fosse incutir na mente dos jovens alemães que a purga era essencial, ainda que soubéssemos que no fundo soubéssemos que não eram verdadeiras, pois nós éramos o futuro da Alemanha.
Nós não podíamos mais permitir que aquele bordel literário continuasse a semear a imundície que contaminava tantos bons alemães. Era nosso dever sagrado nos tornarmos o bastião das tradições do nosso povo e fazer frente àqueles que incessantemente atentavam contra o espírito alemão, mesmo que aquilo significasse o uso de frases como aquela ou a cena de barbárie cultural que estávamos prestes a realizar.
O inimigo do povo alemão, aquela minoria de estrangeiros que havia se infiltrado entre nós através dos séculos e que como os vermes que devoram em silêncio as carnes de um cadáver, havia disseminado seus valores imorais e suas ideias deturpadas entre nós. Enfim tinha chegado o momento de fazê-los se adequar ou desaparecer.
Foi assim que, acima de tudo pela Alemanha, as fogueiras iluminaram aquela noite fria sob o olhar atônito de mais de quarenta mil berlinenses que observavam a tudo com um misto de medo e fascínio e no mais profundo silêncio quebrado somente pelos estalos do fogo que devorava os pensamentos contidos nas linhas de todos aqueles livros e pela voz frágil de Goebbels profetizando que a partir daquele momento e graças a nossa coragem “as fundações intelectuais da República de Novembro vão por terra, mas de seus entulhos nascerá um novo espírito triunfante como a Fênix”.
Ao observar aquelas palavras profanas se transformando em cinzas que seriam levadas pelos ventos do esquecimento até se perderem totalmente no infinito da história, compreendi que se vencêssemos nossos inimigos no campo das ideias, seria muito mais fácil vencê-los no campo de batalha por isso aquele ritual era tão importante.
E, sob a luz tênue dos archotes, enquanto lançávamos ao fogo todos aqueles livros malditos, a insanidade febril nos dominou e juramos sem perceber que, em nome da pureza do Reich e da grandeza da Alemanha, aceitaríamos até mesmo queimar pessoas...
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Nota Histórica: No dia 10 de maio de 1933, onde hoje fica a Bebelplatz, na época conhecida como Opernplatz, ocorreu a maior e mais famosa queima de livros da história. Estudantes das universidades de Berlim, contaminados pela loucura nazista, queimaram milhares de livros de autores considerados indesejáveis por serem judeus, comunistas, socialistas, pacifistas ou por simplesmente discordarem do regime. Esse acontecimento é desde então um símbolo da opressão e do totalitarismo, questão bem-vinda a ser relembrada nos nossos dias.
Livros sim, armas não.