O Encontro da Transparência

Misha Vitalievich abordou-me na saída do refeitório da Universidade de Moscou com uma proposta surpreendente.

- Estamos organizando um encontro.

- Um encontro... para discutir algum aspecto do curso de literatura estrangeira? - Indaguei inocentemente.

- Na verdade, um encontro público... para exigir o cumprimento da Constituição - declarou ele em voz baixa.

Encarei Misha Vitalievich, muito sério.

- Isso está me parecendo mais um protesto... não um encontro.

- Não vamos protestar contra nada... - enfatizou meu colega. - Iremos apenas exigir o estrito cumprimento da lei. Especificamente, do artigo 111 da Constituição.

- Não sou um bom constitucionalista - admiti. - O que diz o artigo 111 da Constituição da União Soviética?

- Direito a um julgamento público.

Cruzei os braços.

- Certo, muito justo. Não estamos mais nos tempos de Stálin, para que haja julgamentos secretos... ao menos, em tese. Na prática, não creio que um pleito desta natureza vá muito longe. Um encontro público, você diz? Para que todo mundo seja imediatamente fichado pela KGB e tenha sua carreira arruinada?

- O artigo 125 nos garante liberdade de assembleia e reunião, desde que utilizada para reforçar a causa socialista - insistiu Misha Vitalievich. - Como o que pleiteamos é apenas o cumprimento de outro artigo, o 111, não vejo como isso poderá ser usado contra nós.

- Não vê, mas será. - Retruquei. - Imagino que sua demanda esteja ligada ao caso Sinyavsky-Daniel.

- Exatamente.

- Está a par das acusações de sedição que foram feitas contra ambos? De publicar textos ofensivos à União Soviética e seus líderes, sob pseudônimo, no exterior? - Questionei.

- Sedição! - Indignou-se Misha Vitalievich. - São textos satíricos! Onde fica a liberdade de expressão artística neste caso?

- A KGB tem sempre a última palavra na interpretação do que é ou não ofensivo ao regime. E, neste caso, não creio que tenha qualquer simpatia pelos réus. Penso que tudo será conduzido para que sejam utilizados como um exemplo para outros que possam ter a mesma ideia...

- Tempos sombrios estes em que vivemos, justamente quando imaginávamos estar livres da opressão stalinista - declarou Misha Vitalievich. - Mas não iremos desistir da nossa luta. No dia 5 de dezembro, nos reuniremos na praça Pushkin, em frente ao edifício do "Izvestia". Se puder nos honrar com sua presença, será muito bem-vindo.

- Agradeço o convite e a lembrança, mas sou um homem de saúde frágil - ponderei. - Se me pegam participando do seu encontro e me condenam aos trabalhos forçados, não creio que viverei para cumprir a pena.

Mesmo com minha negativa, na data marcada não pude deixar de ir dar uma olhada discreta no tal encontro na praça Pushkin, coberta de neve. A reunião não durou mais de 20 minutos e contou com cerca de 50 manifestantes, que abriram duas faixas onde se lia "Respeitem a Constituição Soviética" e "Exigimos um julgamento público para Sinyavsky e Daniel". Uns 200 espectadores acompanharam a movimentação à distância, eu entre eles. Quando oficiais da KGB chegaram, confiscando as faixas e prendendo os portadores, o ato terminou. No momento em que o público começava a se dispersar, fui abordado por outro colega, o professor Krasimir Ivanovich.

- Não esperava vê-lo por aqui, Vitya Vadimovich - saudou-me.

- Ah, como historiador, eu não perderia isso por nada deste mundo - justifiquei-me. - É a primeira vez desde a Grande Guerra Patriótica que realizam uma manifestação com fins políticos na União Soviética.

- Pensei que fosse uma manifestação legalista - avaliou ele.

- E o que poderia haver de mais político do que exigir o cumprimento da constituição? - Questionei.

Perante o silêncio do professor, peguei-o pelo braço e convidei:

- Venha, vamos tomar um chá. É por minha conta.

- [15-10-2018]