ELE SABE 6

"Solano agora aguarda em silêncio pela chegada de um acontecimento ainda inominado. Era o depois, o momento em que sua natureza protestaria contra a subtração irreparável da sua humanidade. Nada mudou, infelizmente. Ele continua o mesmo. Despede-se discretamente do morto com quem outrora dividira um outro crime.

A lástima da perda permaneceria oculta – no entanto –, senão inexistente."

[SEXTA PARTE]

Solano se permite esquecer por um instante dos conflitos morais que seu ato suscita. Ele mesmo não poderia ser mais salvo do que qualquer um. Consumar uma morte já anunciada não lhe condenaria a penas piores do que as que pagaria. Poderia, todavia, adiar o quanto possível o destino inevitável que o aguardava. Deixara seu país para isso. Fora-lhe dado o privilégio degradante de escolher ele mesmo os meios para a própria morte. Edgar, agora, é apenas um nome – percebe –, e o dele também logo seria. Alessia é outra que já esmaece em sua memória. Hilda parece não estar em condições de ser descartada. Mesmo que viva, não durará muito.

Ninguém irá, de todo modo.

Quando se afasta mais do corpo e reserva a ele seu devido descanso, lembra que a responsabilidade pela vida dos moribundos ainda é de sua competência. Unicamente em nome do menor resquício de ética que lhe resta, dedica-se a isto. No quarto ao lado, porém, silencio absoluto. Ela desistiu de lutar, ao que tudo indica. Solano tenta estender a leveza do seu sossego por um momento mais e o gosto viciante de uma paz desconhecida monta em seus sonhos uma cena perversa, embora não de todo absurda. Eliminando desde já o remorso e o arrependimento que dificilmente o abateria, não seria de mal gosto considerar interceder em seu benefício. Ele poderia sanar sua dor; antecipar sua partida; sacrificá-la, como em casos menos graves se faz a um bicho.

Se permitira-se ir ao extremo da barbárie com Edgar, nada o impediria de repeti-lo com Hilda. Desta vez, porém, o faria por pura bondade. Além do mais, o transtorno do plano mal-sucedido não a safaria da sua dívida. Caso saísse viva deste acidente, ele retornaria. Retornaria para submetê-la ao castigo que lhe era de direito. Solano, aliás, muito se admira de tê-la encontrado relativamente consciente. Fosse ele no seu lugar – lançado contra a lateral de um ônibus, pela força de uma moto a 120 km/h –, não teria escapado. Já ele não teria se exposto desta forma. Nem tanto por medo, apenas por cautela. Mas Hilda não temia muitas coisas, conquanto devesse tê-lo temido antes ou mais do que aquelas poucas. Alessia e Edgar já a haviam advertido para o risco de manter um hábito tão arriscado quando nenhum deles tinha qualquer garantia de se ou quando eles seriam descobertos.

Levou quatro anos para tanto, mas foram. Desde o primeiro dia, enquanto na sala daquele tribunal, os sete sabiam da possibilidade de estarem todos na mira dele. Não estavam. Ou talvez estivessem. Mais provável que ele os tenha enganado todo este tempo, aguardando o momento mais apropriado para se pôr em prática esta vingança a que tramava longe de suas vistas. Isto, ou outra coisa. Eles nunca poderiam ter certeza de nada. Por sinal, foi por isso que, naquele mesmo dia, decidiram assumir uma conduta exemplar. Todos, exceto ela. Hilda não os deu ouvidos, e poderia acabar pagando por este erro mais do que os outros. Duas vezes mais, para ser preciso – embora ele o pudesse evitar.

Ela agora descansa sobre a cama onde mal se deitava. Passava a maior parte do dia cruzando a cidade atrás de furos de reportagem, como sua própria história certamente se tornaria. Dizia-se no interior dos vastos meios da imprensa que Astuto era possivelmente a única repórter do mundo a ganhar mais que os âncoras de um mesmo noticiário. Ainda que em tempo algum tenha sido propriamente aclamada pela mídia, seu trabalho no campo da investigação criminal – inovadoramente espetaculoso – por anos alimentou as conversas de espectadores dos mais diversos níveis sociais.

Fama. A fama era sua maior conquista.

No ano anterior, ao tempo em que Solano aceitava a proposta de quase uma década e enfim se juntava a um grande colega de faculdade para estabelecer com ele um consultório em Buenos Aires, Hilda mudava de emissora, assinando um contrato que estendia em pelo menos mais dois anos sua estadia na empresa. Ela não pensava em fugir. Acusou-o de covarde todas as vezes que pode, impondo-o seus métodos notoriamente falhos de administrar questões de ordem prática, como precaver-se contra os males já previstos para o futuro. Se coubesse a ela a responsabilidade de decidir o destino dele, decerto que optaria por preservar sua vida. Hilda não era burra, era apenas insaciável.

Ele se recosta sobre a cabeceira da cama disposto a concluir a tarefa que incumbira a si mesmo. Ela nem ao menos tomaria conhecimento do fim da própria vida, e Solano não poderia imaginar melhor maneira de findá-la senão esta. Hilda descansaria esta única vez mais, até que não precisasse mais interromper o seu sono. Solano estica o braço em direção a gaveta a sua esquerda. Nela, frascos cheios e inviolados de morfina. A seringa na mão o desafiava a antecipar os numerosos dias que ainda estariam por vir. Solano sabe, “Ele” não os esperaria.

O telefone toca. Marcus explica que tem tentado falar com eles. Está se despedindo; mas morrerá no caminho.

– Como foi de viagem?

– Rápido.

– Muito bem. Só avise ao Edgar que fui embora. Não existe nada que me prenda aqui, pelo contrário. – Avisou, Marcus.

– Edgar já foi. Tento falar com ele mais tarde.

– Esse imbecil vai ficar em casa esperando a vez dele chegar?

– Isso quem sabe é ele.

– Muito bem. Espero não termos que nos ver de novo, você entende.

– Entendo.

– Certo.

– Certo. – E é Solano quem fica, e Marcus que se vai.