O EXTRAORDINÁRIO SR. GENTIL - O Homem do saco e outros contos
O EXTRAORDINÁRIO SR. GENTIL - O Homem do saco e outros contos
Certas coisas nos emocionam sem que a gente consiga explicar por quê. Toma-se conhecimento de figuras quase anônimas no tecido da sociedade com vidas que pouco ou nada têm a ver co'as nossas, onde a mera notícia de sua existência acaba por atrair d'uma maneira misteriosa à nossa sensibilidade e atenção. Foi assim com o extraordinário Sr. Gentil. Um homem cuja vida desinteressada e desinteressante repercutiu em minh'alma pela sua obstinação em ser feliz, custasse o que custasse. Sim, feliz, mas não uma felicidade vulgar como tantas que se vê por aí. Não. Não desejava o extraordinário Sr. Gentil a fumaça de uma carreira amplamente reconhecida ou a fantasia de um amor perfeito correspondido. Tampouco era a felicidade dos que se dizem autossuficientes e veem alegria e beleza em qualquer coisa que aparecesse diante de seus olhos, n'um engano de si mesmos que beira o patológico. Com efeito, a felicidade buscada por ele era muito peculiar, mas nada tinha da resignação afetada de tantos que, sendo infelizes, preferem sistematicamente ignorá-lo.
Se o Sr. Gentil não se contentava com pequenas coisas, tampouco se iludia com as grandes. Via o mundo como era, com uma lucidez que raras vezes a maioria de nós se permite. Ele tinha sua família e seu trabalho, como tantos, mas jamais os idealizava a ponto de afirmar que lhe bastavam. Sabia precisar de mais. Sabia haver em sua interioridade um universo inteiro a explorar e isso o divertia imensamente. Sem embargo, desconfiava sumamente dos sorrisos fáceis para embelezar rostos sob os holofotes, não confundindo nunca alegria com felicidade: ser admirado pelos outros lhe produzia uma indiferença absoluta e desejar tal disparate lhe parecia quase imbecilidade. Esperar pela aprovação de estranhos não contribuía em nada com seu desejo de ser feliz, ao contrário, parecia-lhe outra amarra na qual o espírito humano se prende para não lidar com o aleatório da vida. Ser livre, entendeu o extraordinário Sr. Gentil, era gostar do imprevisto e admirar a pessoa que nos tornamos à medida que as circunstâncias vão nos exigindo.
Mas tudo isto, embora filosófico, não era nada demais. O que fizera o Sr. Gentil, portanto, para se tornar extraordinário? Sim, vivera uma vida única, no limite entre a moralidade e o crime. Seu extraordinário feito fora d'uma ambiguidade absoluta, onde certo e errado não apenas se confundiam como se complementavam. Difícil dizer algo sobre a sua história senão que era extraordinária: Amor, dor, ódio, sexo, egoísmo, conveniência, ira, canalhice... Todas estas abstrações descrevem adequadamente sua vida sem esgotá-la. Eu mesmo, cada vez que recordo do Sr. Gentil, deparo-me com um viés novo cuja pertinência faz mudar radicalmente meu juízo sobre sua existência. No fundo é apenas por isso qu'eu, na falta de palavra melhor, qualifico a ele e sua vida de extraordinários. Escrevendo, convido o leitor a tirar as suas próprias conclusões.
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Gentil era um homem de quase cinquenta anos quando o conheci na casa de minha sogra. Era um solteirão bem apessoado com uma fala algo janota; algo aristocrática... Lembro-me que não me causara grandes impressões a princípio. Apertei-lhe a mão como a de tantos n'aquele dia em que conhecera a ele e seus irmãos. Era, com efeito, o mais expansivo e bem trajado dos três. Conhecera-os por ocasião do meu noivado, visto serem parentes ricos e distantes de minha noiva. Ela, muito jovem ainda, apresentara-me aqueles seus três primos com idade para serem tios dos quais jamais comentava, todos bem sucedidos e fora do seu círculo de convivência familiar. Quanto a mim, com vinte e poucos anos, eu não me interessava absolutamente pelos seus parentes. O Sr. Gentil, porém, tinha um hábito que logo me deu o que pensar: Usava ele uma espécie de piteira para fumar, de modo que seus dedos tão tinham as manchas de nicotina comuns aos fumantes. Embora não fosse inédito para mim saber de pessoas que evitassem tal nódoa, confesso que jamais tive notícia d'um homem não afeminado que o fizesse... Esta fora uma peculiaridade entre tantas que conheci a seu respeito, à medida que tomava conhecimento de sua vida. N'um segundo ou terceiro encontro -- tivemos uma convivência esporádica antes do meu casamento -- conheci sua filha e a mãe dela. Causou-me espécie o facto de que ele não só não usava aliança como demonstrava morar tanto com a filha -- uma menina tímida d'uns onze anos -- quanto com a mãe -- uma senhora quase tão velha quanto Gentil, mas que ele tratava como se sua empregada fosse... Engoli em seco minha curiosidade ao longo de todo aquele encontro e qual não foi minha surpresa ao indagar de minha sogra, que era tia d'ele, o porquê d'aquela estranha convivência. E ela, para meu pasmo, confirmou que aquela senhora era efectivamente a empregada doméstica de Gentil! Insisti, perguntando da filha, ao que ela se furtou de fazer qualquer comentário além do óbvio: "Era filha d'ele com a empregada"...
Aquela revelação esdrúxula me fez revisitar cada detalhe da fugaz convivência que tive com o Sr. Gentil. Marcara-me o carinho que tinha com a filha em contraste com a secura reservava à mãe. Sim, era uma coisa quase palpável o estranhamento que aquela singular família causava a todos ao redor. Ninguém comentava, como se a situação não fosse nenhuma novidade, mas todos pareciam pisar em ovos cada vez que falavam com o Sr. Gentil e ninguém, absolutamente ninguém, ousava dirigir a palavra à sua filha ou para a mãe d'ela. Apenas Gentil conversava com as duas, alternando o tom da voz entre uma e outra de modo quase bipolar, expressando ora o amor de pai; ora o rigor de patrão. Parecera-me ele junto d'elas uma pessoa assaz diversa d'aquela que conhecera em companhia só dos irmãos: Suas maneiras foram mais reservadas, muito pouco participando das conversas então. A filha, muito bem vestida e comportada, não se misturava às outras crianças que reinavam em brinquedos aqui e ali. Quanto a mãe, servia-o em tudo que se mostrasse, obsequiando-lhe os petiscos e as bebidas servidos no buffet da casa de minha sogra. Aos quais ele jamais agradecia! Julguei-o a partir de então da pior forma possível, como um canalha! Bem como a pobre mulher como uma espécie de prisioneira de circunstâncias inconfessáveis. Muito me aborreci com aquelas cenas que somente após o encontro lograva compreender minimamente: Sim, o Sr. Gentil era um miserável misógino a torturar a mãe da própria filha com uma servidão absurda, apenas isso explicava!
Passaram-se dez anos e muita coisa mudou, sobretudo eu. Meu casamento não dera certo e, embora dois filhos, separamo-nos após sete anos de convivência. Fora uma separação muito difícil, pois, havia apostado tudo que construí n’aquele casamento. Ao fim, fiquei sem patrimônio e sem a convivência diária com meus filhos. Todos os dias, levantar-me para trabalhar era um fardo, visto que quase tudo que obtivesse seria para o sustento de meus filhos longe de mim com minha ex-mulher… Não foi uma nem duas vezes em que perambulei pela cidade sem buscar senão distração para a insônia que me acometia. Vivia deprimido e angustiado n’um período a que chamava de “a noite mais escura” em versos ruins de mau perdedor. Fiz-me íntimo de bêbados, prostitutas e andarilhos na imensidão da cidade noite afora. Tinha trinta e poucos, mas parecia ter cinquenta! Foi então que, do nada, encontrei o velho Sr. Gentil n’um inferninho. A princípio, fingi não o reconhecer, mas ele saiu de sua mesa e veio em minha direção com seu inconfundível cigarro na piteira seguro entre os dedos.
Era ele, indubitavelmente. Saudou-me com um largo: “Há quanto tempo!”, ao que eu me encolhi junto ao balcão do bar enquanto uma gostosa seminua rebolava no palco ao som de “Promiscuous” e afins. Sempre muito constrangedor encontrar alguém do passado n’um lugar como aquele... Em todo caso, se quem está na chuva é para se molhar, quem está no inferno é para se queimar: Retribui a saudação do Sr. Gentil com toda a intimidade que jamais tivemos e o convidei a se sentar ao meu lado. Eu bebia uma cerveja qualquer mais uma dose de pinga entornando no copo lagoinha e ele pediu o mesmo para si.
Começou falando exacto do que não queria falar: -- “Soube do fim de seu casamento com minha priminha.” -- calhou-lhe de introdução -- “Desculpe-me a franqueza, mas você parece bem melhor agora.
Aquilo caiu em meus ouvidos como um imenso contrassenso, afinal, não enxergava em mim senão decadência. Pedi que ele continuasse: -- “Mulheres são complicadas. Não digo que sejam inimigas, mas com certeza não são companheiras. Ou melhor, digo “companheiras” no sentido primitivo da palavra, isto é, “com-pão-eiro”: Aquele com quem se reparte o pão”. Respondi-lhe intrigado: “Um tanto carola essa sua etimologia!…” Ao que ele, dando de ombros, assentiu: “De facto, eu já fui um homem religioso.”.
Bebericávamos a cerveja e, de tempos em tempos, entornávamos a cachaça. A noite só estava começando e as belas se sucediam no palco exibindo caras, bocas, pernas e bundas. Ele fumava seu cigarro na piteira enquanto eu olhava para as garotas encabulado: “Será que ele vai contar que me viu aqui para a família da minha ex? Quer saber: Foda-se!” E tornava a enxugar o lagoinha. Ele riu para si e comentou: -- “Quando lhe conheci, você parecia um ingênuo; um pato para ser depenado. E você não me decepcionou!”. Cada vez mais desconfiado com o caminho que aquela conversa tomava, resolvi dar vazão à minha antiga curiosidade e quis saber mais de sua vida, até para eu não dizer nada que comprometesse com a família da mãe de meus filhos: -- “Isso agora é passado, mas, e o senhor, casou-se com a mãe de sua filha?” -- Ele gargalhou como se eu lhe houvesse contado a maior piada do mundo. Ficou vermelho, sem fôlego, de tanto rir e exclamou interrogando: -- “O quê?!” -- e voltou gargalhar até chamar a atenção em volta e me deixar sem graça -- “Quer dizer que você tinha interesse em minha vidinha, heim?!” -- e completou -- “Mas que surpresa!” -- Para não ficar mais sem graça ainda (e tirar de mim o foco d’aquela conversa), concordei com ele: -- “É verdade: Aquela ocasião em que conheci sua filha e a mãe d’ela nunca me saiu da cabeça.” -- ao que o Sr. Gentil, com o mínimo de palavras, me desmascarou: -- “Mas, por quê?...” -- Pronto! Eu seria obrigado a lhe revelar meu mau julgamento d’antanho… Para que eu fui revirar o lixo humano do passado? Céus, se eu não tivesse bebido tanto, eu pagava uma garota d’essas para subir para algum quarto! Mas, no estado que me encontro, será apenas para broxar e queimar dinheiro… Não estou em condições para comprar uma trepada. Aliás, já apertei o botão de FODA-SE com esse cara mesmo: -- “Apenas achei fora do comum o facto de a mãe de sua filha ser sua empregada…” -- saí-me com esta. Ele não se intimidou. Acendeu outro cigarro e contou-me sua história.
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-- “Acho que você não sabe de nada. Então, vou começar do começo. Meu pai foi um homem tão rico quanto mal casado. Vivia como se fosse o mais miserável dos homens sob a tirania implacável de minha mãe que, aliás, fora a razão de sua fortuna e carreira. Trabalhava nas empresas de meu avô materno e lhe herdou a filha, o nome e a riqueza. Minha mãe o tratava pior do que você me vira tratando a mãe de minha filha. Se aos seus olhos ela era uma empregada; aos meus olhos meu pai era pouco menos que um escravo de minha mãe.”. Falava d’aquelas coisas íntimas e tristes sem qualquer emoção, com uma indiferença quase didática, dir-se-ia: -- ”Meu pai me fez prometer que jamais passaria pelo que ele passou e tenho cumprido minha promessa com louvor.” -- e ainda -- “Jamais me casei nem me casarei.”
-- “Mas, e sua filha” insisti. -- “O que é que tem?” -- indagou -- “Eu prometi nunca ser marido, não pai.” Ele pediu outra cachaça e virou n’uma talagada: -- “Eu contratei uma empregada e comecei a trepar com ela: Simples assim.” -- eu o olhava como se em meio a um lampejo de lucidez. Ele continuou: --“Eu sabia que ela queria dar o golpe, mas eu queria ser pai. Sim, eu queria. Tinha comigo uma ideia que chamava de "reserva afectiva", ou seja, um lugar no coração para uma relação realmente amorosa e perene. E esse tipo de relação só é possível com os próprios filhos. Um território d'alma protegido dos dramas da passionalidade ou dos excessos da sexualidade" -- eu o ouvia embasbacado com a novidade d'aquele conceito, negando-me a crer que tamanha sabedoria fossa apenas "papo de bêbado"... Indiferente a mim, ele continuou a sua história: "Quando ela veio me depenar, a menina já havia nascido. Eu a despedi com todos os direitos empregatícios e tomei a guarda dela alegando que a pobre não tinha como educar a menina. Ela se desesperou e eu me mantive impassível. Até que ela, para ficar perto da filha e ainda tornar a ter casa e emprego, se sujeitou a assinar de novo a carteira de trabalho como minha empregada. E foi a melhor mãe e mulher que alguém poderia desejar, paga com salário mínimo, décimo terceiro e férias!”
Ouvi aquilo embasbacado e, não podia negar, com certa inveja. Afinal, o que eu mesmo deixara e deixava com a mãe de meus filhos era muito mais para eu ter muito menos… Ele, o extraordinário Sr. Gentil, em sua canalhice dera um golpe de mestre. Ou melhor, um contra-golpe!
-- “Mas, e o amor?!” perguntei, embora a pergunta soasse tola desde o instante em que saíra de minha boca… Mesmo assim, ele respondeu: -- “O amor é um luxo a que nos permitimos quando moços. Olha para ti mesmo” -- a intimidade ébria já lhe permitia tratar por “tu” -- “Aqui n’este antro” -- olhou-me nos olhos frisando as palavras -- "a intimidade comprada que tens com qualquer uma d’estas garotas é incomparavelmente maior que a que tiveste com minha priminha!” E continuou: -- “Sexo é um encontro humano. É algo concreto; é um acontecimento. Já amor é uma abstração” -- e sorveu o resto da cerveja.
Pedi mais uma e fui para o banheiro. Esvaziei a bexiga que já doía de tão cheia e me olhei demoradamente no espelho: “Quem sou eu?”. Foi então que eu tive o meu momento de lucidez: "Percebo, enfim, que aquela história de piteira para não enodar os dedos era, nada mais nada menos, que a metáfora perfeita d'uma vida onde os vícios não deviam deixar marcas". Perguntei-me em voz alta, ainda diante do espelho, feito demente: -- “Quem diria que um canalha, no final das contas, teria razão?”.
Não sei quanto tempo permaneci ali parado, olhando-me. Só sei que quando retornei ao balcão do bar o extraordinário Sr. Gentil já havia ido embora.. E -- o melhor -- pago a conta toda! Saí d’aquela espelunca de alma lavada, livre, enquanto assobiava um samba antigo sob a luz da lua.
Betim - 08 09 2018