ELE SABE 5

– Se quer que eu saiba, então diga. O que mais eu preciso saber?

– Ele diz que no melhor caso... – a pausa segue os movimentos reprimidos – Paraplégica. Ou pior.

– Quase viva, Edgar. – Diagnostica, com rancor, e remorso.

– É claro. – Ele desvia o olhar para concordar levianamente.

– Não vou ficar e Solano não deveria ter vindo. Você, menos ainda.

– Quem sabe disso não sou eu, nem você. – Desenterra a mão do bolso trazendo nela o celular. Ele checa a tela em um só piscar e nela vê que as mensagens confirmam o argumento. Marcus o imita e as confere por si.

– É suicídio. – Sentencia.

"– Não adianta fugir, meu amigo. Você seria o primeiro alvo dele. – Marcus bufa em resposta.

– O terceiro. – Corrige. Edgar tenta medir o quanto de lamento cabe na relação entre eles. Nem mesmo o laço que dividem bastava. – É... O terceiro. – Testa concordar mais uma vez, ainda por falta de melhor resposta.

– Ela ainda está lá.

– Nós resolveremos isso. – E sai, para a própria morte."

[QUINTA PARTE]

Onze anos se passaram desde a última vez que houvera proferido algum bom sentimento por meios universalmente compreensíveis. Não é que não os tenha expressado. Ele apenas não os expressou de verdade. Se bem se recorda, datam de meados de 2007 seus mais recentes registros. Saía da faculdade – nas costas, alguns bons anos de experiência na área e um entorpecedor prazer pelo próprio futuro –, quando amou e disse que amava. Contrariando suas próprias expectativas, ele ainda guarda consigo a vaga lembrança do dia em que elogiou o cabelo de uma colega de turma pois, de fato, o havia achado bonito. Ela o usara preso em um rabo de cavalo extremamente alto – suas feições expostas da mais lisonjeira maneira que já havia visto em uma mulher de fisionomia tão pouco agradável. O ato durou um total de três segundos, e ele nunca mais voltou a desperdiçar este tempo com qualquer outra coisa tão ou mais medíocre. Entre ele e os seus sentidos, agora, a há muito assumida indiferença com o mundo.

Edgar Toledo Souza de Nobrega era o nome do seu legado. Aluízio Souza de Nobrega, o punho que o conduzira. Deste, a propósito, recebera incontáveis demonstrações de carinho. Assusta-o pensar como ao ser humano basta tão somente a impressão de ser amado, mesmo quando nada mais lhe é dado de fato. Descobriu esta verdade quando ainda adolescente, e desde então vem nutrindo um desgosto especial pelo que constatou se tratar de um amor relativo.

Nem o pai nem a mãe lhe permitiram muito além da estrita honra de ostentar os motivos pelos quais merecia ser amado. Neste quesito, Marcus sempre o compreendera melhor do que qualquer outro; ambos algemados por um título há gerações apregoado aos seus nomes. Seria mais cristão da sua parte conceder aos dois a merecida gratidão pelos generosos investimentos ao longo de sua vida, mas não o faria. Nunca foi dado ao cristianismo, ou crenças afins. Costumava dar maior preferência às teorias punitivas. Talvez fosse mesmo o mais maquiavélico dos sete, mas nem de longe era o único.

Na carreira escalou os exatos caminhos que a família antes percorreu. Vez ou outra penetrava a realidade deste fato e, sob a luz de uma mágoa ingênua, regozijava-se com a ilusão de usurpar de seus antepassados o triunfo que a eles pertencia. Nada os fora usurpado, é claro. Seu sucesso fora encomendado antes mesmo do seu próprio nascimento. Com a aposentadoria do pai viria a sua tão esperada herança indigna e, aos 27 anos, ele já alcançava patamares usualmente inatingíveis.

Herdou o posto de dono de um dos maiores escritórios de advocacia do país apenas cinco anos após concluir sua passagem pela universidade – tendo transitado, já naquele tempo, pelos mais abastados grupos do ramo. Dentre eles, a própria família. Pelos mesmos cinco anos anteriores dedicou-se exclusivamente a missão de deter para si o controle sobre o mundo do direito empresarial. Aos 28, enfim conseguira. Além de herdeiro, Edgar almejava ser o herói dele mesmo.

Por precaução, ele volta a pé para a casa de Hilda. Estaria desacordada, esperava, quando chegasse ao seu destino. Já não havia muito o que ele pudesse fazer por ela sem que tivesse que simular sentimentos os quais ela mesma bem sabia não existir. Solano fora categórico no diagnóstico, como sempre fora com tudo. Quando ela descobrisse a que fim fora sentenciada, tudo sobre a sua vida perderia seu sentido, e Edgar não queria estar presente para testemunhar o que estaria por vir.

Ela ainda estava acordada, mas não por muito tempo.

Enquanto era sedada, eles discutiam a gravidade do caso em um duelo ilógico de veredictos e prescrições. Edgar sabidamente desconhecia qualquer coisa sobre medicina. Solano, por sua vez, reconheceu prontamente o mal que o acometia. Medo, foi o que disse, e Edgar se provou devidamente diagnosticado ao desferir um soco súbito e certeiro contra o queixo do amigo. Sem dúvida era medo.

– Terminal, acredito.

– Disso eu não morro, meu caro.

– Nenhum de nós.

Um gemido ao longe desperta a ambos para a crueza de suas palavras, então. Havia sim alguém a quem a morte talvez não se abateria da mesma forma que aos demais. Hilda resmungava reclamações confusas em um tom irreconhecível, ao mesmo tempo em que lutava a todo custo contra a força que a arrastava até o escuro do seu inconsciente. Ainda sem conhecer a provação que a esperava ao expirar do efeito que lhe entorpecia as sensações, ela dispensa aquilo que provavelmente será o seu último momento de alívio. Eles se olham novamente.

– Não todos, eu garanto. – Edgar pondera.

– A maioria. – Contesta e, após uma pausa cortês, saca a arma da cintura. Sem mais solenidades, ele dispara contra o homem a sua frente.

Solano agora aguarda em silêncio pela chegada de um acontecimento ainda inominado. Era o depois, o momento em que sua natureza protestaria contra a subtração irreparável da sua humanidade. Nada mudou, infelizmente. Ele continua o mesmo. Despede-se discretamente do morto com quem outrora dividira um outro crime.

A lástima da perda permaneceria oculta – no entanto –, senão inexistente.