MORTE BRANCA
O despertar é lento e perigoso. Voltar do limbo dos sonhos sempre resgata memórias antigas de pecados inomináveis, lembranças que ele daria tudo e sacrificou tudo para esquecer e que a cada noite voltam para assombrá-lo, sem falta. Finalmente na segurança da solidão ele se dá conta de onde está. Os dentes cerrados relaxam no maxilar duro como alguém que sofre de bruxismo. A respiração rápida como a de um cão com raiva que baba selvagem e louco se acalma. Os punhos fechados se abrem e a consciência se ergue ante ao caos da confusão: mais um dia começa.
Não importa se ele vive como um sem-teto, dormindo em um saco de dormir no chão de um lugar abandonado com um barril enferrujado queimando lixo para aquecê-lo do frio noturno capaz de matar. Todos se foram para longe e aquela cidade estava remota, ele tinha aquele lugar todo para si. Durante o inverno ele vivia nas sobras da civilização que fugia das temperaturas congelantes, tal qual o último círculo do inferno ele estava condenado como Lúcifer à desolação. Era o mais próximo da humanidade que ele ousava se aproximar.
Caminhar e procurar sobras de comida para sobreviver a mais um dia naquele cenário fazia-o lembrar de quando assistiu pela TV o desastre de Chernobyl. De como as pessoas tiveram que deixar suas casas para trás e de como a radiação mudou os animais transformando-os em aberrações, em monstros... como ele. Não, não como ele. Nada poderia ser pior do que acontecera consigo, ele de fato era um amaldiçoado. Mesmo assim desejava viver em paz e falhou inúmeras vezes ao tentar tirar a própria vida. Então conseguiu uma maneira de ficar longe dos seus instintos e aprendeu que onde não há ninguém não há como haver morte, exceto a sua. E esta ele aceitava de bom grado desde que não fosse por suas próprias mãos.
A fome não se saciava com os enlatados que encontrava nas despensas, todos saiam e esqueciam coisas e quando voltavam nem se lembravam de como as coisas estavam. Seria um sonho viver ali para sempre, no frio, na luz que ardia os olhos ao se refletir na neve. Pensou inclusive em ir para Norilsk viver meses sem o pesadelo da noite. Porém ele sabia que não podia se sentir confortável demais. Uma hora a noite chega e quando ela vem a Besta iria tentar enganá-lo a se descuidar e liberá-la uma vez mais. E ele havia prometido que isso jamais iria acontecer novamente. Se não pudesse agrilhoar seu demônio interior, dessa vez ele apertaria o gatilho do rifle e daria cabo de sua vida de uma vez por todas.
A fome não deixa pensar direito. É carne e sangue que ela demanda. Então ele vai checar suas armadilhas. Quem sabe hoje ele não teria sorte? Horas se passam e nada. Os animais pressentem sua presença, seu cheiro, entendem que há um predador na área e fogem. A natureza sente seu rastro que macula o ar gelado, ele, a coisa que não deveria existir. Então, sobra caçar. O rifle está carregado, falta encontrar um bom ponto na floresta onde o vento não o denuncie para finalmente se saciar.
A espera é longa, sem se mexer, aguardando. A cabeça conjecturando possibilidades, considerando hipóteses, memórias de uma vida toda estraçalhada deixada para trás voltando como fantasmas para assombrar. Sem descanso de dia ou de noite ele está sempre a um passo de perder o controle, de enlouquecer. Eles nunca deixam seus pensamentos e ele nunca se perdoará pelo que fez. Mesmo que não tenha sido de fato ele, mas o outro que o habita.
Finalmente um cervo surge e ele camuflado na neve se prepara. Mira sem usar luneta, prende a respiração e atira. Ele se lembra da história do "Morte Branca", o soldado finlandês e maior franco-atirador que já existiu. Como ele, sua habilidade em caçar e matar era lendária, mas não com o rifle. Com as próprias mãos.
Um tiro rasga o ar e acerta em cheio o coração do animal que cai sem entender de onde veio a morte. A presa sangra na neve e ao se aproximar e sentir o cheiro do sangue suas mãos começam a tremer. Ele respira fundo o ar que chega a machucar os pulmões por causa do frio. Controle é tudo, mas a cada noite fica mais difícil. Hoje é um daqueles dias que ele não consegue estar no controle por completo.
De repente ele se joga no chão e rasteja selvagemente para a carcaça e bebe o sangue ainda quente que escorre por sua garganta e morde a carne crua sentindo a fibra dos músculos se romperem em seus dentes. Um deleite. Nada no mundo será tão bom e tão cruel quanto ceder aos seus instintos mais básicos e selvagens. E é neste momento de fraqueza e loucura que ele escuta com seus sentidos aguçados alguma coisa na floresta. E sua alma toma um choque.
Ele vê uma criança assustada e suja atrás de uns arbustos logo a frente. Os mesmos olhos grandes como o de seu filho e a lembrança de desmembrá-lo e sentir o gosto de sua carne macia e doce lhe deixa alvoroçado. As grades da prisão interior se rompem e a criatura toma controle. Ele avança em quatro patas rapidamente para um banquete voraz e o horror no rosto inocente ressurge para assombrá-lo mais uma vez. Ele jamais vai ser capaz de se perdoar pelo que fez com seu filho.
Finalmente acorda. O pesadelo passou. O gosto na sua boca é recente, mas pode ser apenas a lembrança do pecado tentando lhe seduzir. Esta será uma noite de lua cheia e durante as poucas horas do dia ele terá que tomar uma decisão. Será hoje que apertará o gatilho?
Enquanto não se decide a fome lhe faz começar tudo de novo sem realmente nunca saber o que é realidade e o que é sonho, vontade ou lembrança.