ELE SABE 4

"Seus cúmplices logo o encontrariam, se suas próprias mortes não o fizesse primeiro. Talvez não devesse lutar contra a sua fúria. A ira daquele homem jamais poderia ser apagada. Marcus compreende a dimensão deste fato. Era ele um dos culpados. Jamais se perdoaria pelos seus próprios crimes, assim como ninguém um dia iria perdoá-lo. Volta-se à mesa ao lado para desfazer-se da arma e se deixa refletir pela primeira e última vez sobre o seu fim. Pensando bem, o que está feito está feito. Seus erros não se dissipariam com a sua morte, então quem sabe não seria melhor que não morresse afinal. Nunca considerou a possibilidade de matá-lo, não até este momento."

[QUARTA PARTE]

À medida em que se une ao sofá para conformar-se mais adequadamente com a perspectiva de acrescentar aos seus muitos pecados a morte do homem a quem um dia chamou de amigo, ele tem a estranha impressão de ser confortado por uma atmosfera inesperadamente tranquila. Pelo olho mágico, Marcus comprova na imagem do corredor vazio a suspeita um tanto macabra; ele não está mais lá. Ainda não hoje ele o mataria, embora alguém ainda fosse morrer.

Está na hora de agir.

Marcus então recorre, meio trêmulo, ao auxílio do celular. Edgar era a pessoa mais próxima dele que não estaria dormindo. As horas, agora, já passam das duas. Quatorze horas e vinte e sete minutos. Nunca recorriam um ao outro depois do meio-dia ou antes da meia-noite. A um bairro dali, Hilda Astuto ainda estaria na cama, seguindo conforme as leis da sua rotina indistinta. Consultá-la enquanto recrutava ao quase-amigo estenderia em ínfimos e exasperantes segundos seu tempo de fuga. Hilda não respondera, ao menos não ainda. Edgar, por sua vez, retornara de imediato.

Ao que busca as teclas antes mesmo de ler a mensagem, já pronto para responde-lo no mesmo ato – e agora retornando do quarto de cofres esvaziados, passaporte em mãos e mochila ocupada –, sobressalta-se pela quarta vez naquele dia. A primeira, a cena que dera início àquelas que se seguiram e, esta, a terceira provocada pelo alarde de quem reclamava sua companhia. Mais uma vez ele se surpreende, então; a sucessão de espantos fazendo-os ainda mais repentinos. Na tela do aparelho, o outro homem lhe responde algo a princípio indecifrável. Diz-lhe que não há como ajuda-lo sem que ele antes o ajude. "Minha ajuda só depende da sua", escrevera, "mas ao menos está vivo".

Sobra-lhe presença de espírito suficiente para devolvê-lo a cortesia, vagando meio ao pavor evidente em seus dedos embriagados. "Ainda", ele o diz. Mas eis que a porta finalmente se abre de rompante, entoando um estrondo harmonioso, antes que ele pudesse satisfazer-se por completo com a resposta que o retribuíra. Por esta ele já esperava, embora não por quem se mostra ser a sua visita.

Não era ele à porta, e sim outra pessoa.

Edgar estuda o lugar de corpo travado dos joelhos aos ombros, e a lentidão do mover dos olhos revela uma apreensão que beira ao pânico. Ainda em um estado de incontestável temor, – suas articulações meio atrofiadas –, ele vai o seu encontro com um caminhar prudente que não lhe é habitual. Edgar nunca fora prudente. Contudo, naquele momento, este seria o único traço de sua racionalidade que se permitiria exercer.

– Soube por mim, ou...? – A pergunta antecipando as prováveis mortes das quais ele mesmo ainda não saiba.

– Não, mas sim. – As mãos se afundam nos bolsos para acompanhar o corpo, que se curva em um pesar pouco perceptível, mas contundente.

– Como? – quem?

– Hilda. – O nome saído em um só sopro. – Ontem. – Ele explica, e a Marcus também não resta nada além de baixar a cabeça. – Ela está viva, Marcus. Disso ele não sabe.

– Viva... – Replica a ideia como se tentando contê-la – Então é possível... Sobreviver.

– Quase.

– Não preciso de mais informação do que isso.

– Não somos exatamente amigos, Marcus, mas cúmplices somos – com certeza. Solano chegou hoje cedo. Está como ela agora.

– ...quase viva. – Completa.

– Quase morta. – Conserta.

– Se quer que eu saiba, então diga. O que mais eu preciso saber?

– Ele diz que no melhor caso... – a pausa segue os movimentos reprimidos – Paraplégica. Ou pior.

– Quase viva, Edgar. – Diagnostica, com rancor, e remorso.

– É claro. – Ele desvia o olhar para concordar levianamente.

– Não vou ficar e Solano não deveria ter vindo. Você, menos ainda.

– Quem sabe disso não sou eu, nem você. – Desenterra a mão do bolso trazendo nela o celular. Ele checa a tela em um só piscar e nela vê que as mensagens confirmam o argumento. Marcus o imita e as confere por si.

– É suicídio. – Sentencia.

– Não adianta fugir, meu amigo. Você seria o primeiro alvo dele. – Marcus bufa em resposta.

– O terceiro. – Corrige. Edgar tenta medir o quanto de lamento cabe na relação entre eles. Nem mesmo o laço que dividem bastava. – É... O terceiro. – Testa concordar mais uma vez, ainda por falta de melhor resposta.

– Ela ainda está lá.

– Nós resolveremos isso. – E sai, para a própria morte.