ELE SABE [Parte 1 à 8]

Alessia está mais calma esta noite. Sem o celular por perto, ela consegue planejar três tarefas para o fim do dia. Meia garrafa de whisky ainda resta no bar. Nada mais a impede de separar os pés dos sapatos. Ninguém também a ouviria se decidisse por gritar agora, e então decide por fazê-lo. Causa nela uma emoção sem sentido a forma como a luz amarelada no teto ilumina a cozinha. São só cinco passos até lá; uma insignificância incomum para o seu estilo de vida. Do lado da pia está um copo vazio com vestígios de uso e, nele, nem um gole – talvez – daquele mesmo whisky. Os pés deveriam estar no sapato. Ela não deveria ter gritado; ou já deveria tê-lo bebido. Não era para ela estar ali, alguém mais a acompanha na casa.

Pouco está ao seu alcance. As facas foram guardadas todas na mesma gaveta, do lado oposto do balcão onde ela se encontra. A abertura vertical das portas dos armários de louça faz inútil a vantagem de estarem exatamente sobre a sua cabeça, já que o movimento amplo demais faria daquela uma escolha estúpida. Direção alguma parece segura. Virar-se é impossível. Avançar é arriscado. De repente, soa-lhe místico o ribombar estridente do silêncio contra os tímpanos, mas desvia sua atenção por um segundo a inesperada presença de uma respiração inconstante.

Poderia ser qualquer um. Melhor se fosse, na verdade.

Contorna o seu próprio eixo sem medir exatamente o ângulo mais oportuno para a fuga mais rápida. Depara-se consigo mesma no reflexo de um vidro enublado. O mesmo armário que há pouco prostrava imóvel e indiferente ao seu lado, agora participa da trama tomando partido contra aquela a quem deve seus serviços. Enquanto também se instala em sua mente a imagem do telefone que mais cedo descartara, ela aguarda que os próprios olhos desvendem com clareza a imagem que guarda ambas identidades. Antes que pudesse considerar alternativas improváveis, às anula todas a constatação a que chegam os seus olhos. A figura se aproxima e, sem deixar mais qualquer dúvida, revela-se de imediato na nítida visão do seu rosto.

Seria perigoso demais arriscar um diálogo. É tarde demais para elaborar discursos. Não há no mundo quem possa ajudá-la, nem mesmo aqueles que testemunharam e foram cúmplices dos seus atos. Todas as suas escolhas culminaram neste encontro. Talvez ela seja a primeira pessoa a quem ele revela a verdade, e morrerá em poucos instantes sem que possa avisá-los. Os outros terão que antever por si mesmos. De agora em diante ela não estará mais em campo.

Ante a faca erguida na mira das suas costas, ela encara o início do que todos eles terão de encarar mais tarde. Em seu último pensamento, ela se pergunta se a cada um deles está reservada a mesma sorte. Arrependimento, enfim. Dúvida, como sempre. Uma certeza, no entanto. Nos olhos do homem, o anúncio redundante que proclamava sua morte: ele sabe.

É certo que falharam em algum ponto decisivo. Do contrário, alguém deve tê-los enganado. Se não, alguma tarefa não foi concluída –, ou a concluíram de forma equivocada. Ocupar-se destas ou demais teorias não os valeria de nada, no entanto – já que uma delas por si só se sobrepunha a qualquer uma de suas suspeitas:

Todos serão punidos, logo, todos são culpados.

Embora soe absurda, a premissa condiz precisamente com as circunstâncias que a evocam. Pesa-se sobre elas as particularidades repugnantes de um feito moralmente hediondo. Não por acaso, nenhum dos sete acusados ousaria contradizê-la – tampouco se prestariam ao papel de negá-la. Seria desnecessário até mesmo testá-la. Afinal de contas, não há o que ser refutado. Sobre toda suposição pairava um fato: todos são culpados.

Nem todos eles se importam, mas há um que acaba de ser convencido.

Marcus observa o corpo de Alessia sendo drenado em quase toda sua totalidade. As mãos se apoiam uma em cada lado do batente. De cabeça baixa, os olhos vasculham o ambiente contra sua vontade. Às suas costas, a entrada estreita do apartamento; seu posto, o centro de uma imagem emoldurada. A sua frente, na extrema esquerda, a sala vazia – isolada em sua permanência estática. Tão impecável, ela lhe parece pavorosa. Tudo nela continua em seu lugar, apesar da ausência irrevogável da vida que antes a fazia útil. Ela jamais poderá mudar a posição dos móveis. Se algum novo elemento acabara por se mostrar uma alteração desastrosa, melhor que ela a tenha superado: não haverá mais como desfazê-la. Caso ele mesmo decidisse por intervir no arranjo, este que agora mesmo avalia com pesaroso esmero, ela jamais saberia. As mesmas chances que ela teria de impedi-lo – permitiu-se conjecturar mais a fundo –, ela teria de terminar o que ficou adiado. Sua sala, e cada coisa nela, foi deixada para trás.

No fundo iluminado do canto, à direita, o ponto final da sua história. A cozinha também não parece muito desarrumada, mas esta – por sua vez – dá inquestionáveis sinais de uso. Assim como a sala, a morte da moradora encerra por completo a sua utilidade. No caso deste cômodo, no entanto, a mácula de um rio de sangue escorrendo lentamente pelos azulejos corrompe para sempre aquele que fora o propósito da sua existência. Aquilo nunca mais será uma cozinha. Qualquer pessoa que um dia souber do passado que esta casa carrega, saberá que este se trata – sobretudo – do local de um crime.

Ele se pega tentando prever onde será o seu leito de morte. Será possível que seu lar seja preservado? Talvez morrer em um lugar qualquer não o preserve de nada. Pode ser que assim seja, realmente, mas não se pode ignorar a morbidez atordoante de ter seu lar ensanguentado pelo fruto legítimo da sua própria morte. O fluxo da corrente já conduz o líquido espesso a encharcar o corpo e seus arredores; seus fios louros agora tingidos de vermelho. A pessoa que outrora caminhava e falava, ria e comia, morta sobre o chão da sua casa. Deitada assim, de bruços e petrificada, ela parece perder a altura estonteante que fizera de sua figura a de uma mulher invejada. Nem seu nome, nem sua beleza, valem de nada mais. Tudo o que fica agora é o segredo, e mesmo este já prestes a ser revelado.

Uma verdade o ocorre, de repente: eles não se amavam. Nenhum dos dois saberia dizer o que sentiam de fato, aliás, caso os perguntassem. Mais provável que o pecado de que compartilhavam fosse a única força a uni-los. Uma ligação de natureza suja, mas genuína. Importa-o apenas, porém, que – pelos poucos dias de vida que ainda o resta –, sentiria sua falta. Retirou-se da sua presença inútil, isentando-se com isso do dever de velá-la. Nem uma alma sequer daquele grupo valeria o esforço necessário. Não os cabia, de igual modo, o privilégio de estar de luto. Foi ela quem o alertara para esta máxima, certa vez, utilizando-se exatamente destas mesmas palavras. Antes de se livrar de qualquer indício de sua vinda, pronunciou em voz alta – uma última vez – o seu nome.

Marcus já está do lado de fora – a quatro andares de distância do corpo que agora jaz sobre o chão da cozinha, alheio aos objetos a sua volta – e, de pé sobre a calçada larga da rua movimentada, sente uma necessidade urgente de limpar as mãos na roupa que vestia. Queria se ver livre do fardo que parecia fazê-las pesadas. De algum modo, ele se sente culpado. Até o momento da sua morte – no entanto –, ou mesmo após isso, este ainda não será um feito possível.

Havia ainda algumas tarefas mais a serem feitas, e elas exigiriam dele a mesma lisura que lhe impunham os contínuos deveres da desonestidade. A primeira de todas, alertar os demais. Selecionou nome por nome da lista de contatos da qual também faz parte; as identidades ocultadas pelos pseudônimos que há um ano mantinham suas conversas inofensivamente expostas, enquanto totalmente privadas. Para todos os efeitos, ele jamais deveria suspeitar de nada.

Digitou palavras breves e as enviou sem muita pressa. Daquele ponto no globo até onde alguns deles se encontravam, continentes, mares e países de distância. Três ao todo tentaram se espalhar pelo mundo e viver terminantemente submersos em suas farsas. Agora seria a sua vítima aquilo que os obrigaria a voltar a superfície.

Uma vez em casa, certificou-se de estar sozinho. Dentro de horas ele já não poderia mais se assegurar disso com a mesma facilidade; a expectativa crescente progredindo em conjunto com o avançar dos minutos. Talvez fosse justamente o pavor de conviver com a incerteza constante a mais cruel vingança que ele os teria preparado. Ao menos Alessia fora poupada disto; o desfecho do pensamento levando-o subitamente a uma compreensão mais sensata. Agora que todos já foram avisados, Marcus se dá conta de que acaba de mover as peças do jogo a favor do seu adversário.

A mera ameaça já o bastava. Ele queria que eles fossem alertados.

Este não é ele. Jamais cometera erro tão grotesco, e assim se esforçava para recobrar-se. Também não sabe, e nem pretendia, ser tão grotescamente manipulado. Se cabe a alguém a autoridade máxima deste mesmo ofício, seria ele – e apenas ele – seu maior detentor e grande soberano. Executivo em ascensão. Uma mente destemida. Insubstituível pela inteligência. Indispensável pela elegância. Mas não mais, ao que parece. Vê-se despejado sobre o sofá-cama incerto demais do que deve temer. Não houve sinais relevantes. Eles os teriam notado. Se alguém percebeu, no entanto, ninguém o alertara. Ela não pode fazê-lo, é claro, e agora ele teria que elaborar uma solução sozinho e o quanto antes – como Alessia certamente também não pudera fazer.

Enquanto se permite prolongar um suspiro entrecortado, ouve romper na sala o ruído oco de dois solenes pares de batidas à porta. De olhos alarmados, e um tanto já secos, prefere conferir – pela janela – o lado de fora, antes de se encaminhar até o seu visitante.

Junto a árvore mais próxima, do outro lado da rua, um homem de óculos escuros se recosta de braços cruzados. Tão suspeito quanto humanamente possível, o sujeito veste um sobretudo num tom de cinza muito escuro, e leva na cabeça um chapéu que não lhe parece ter o menor propósito plausível, senão o de elevar-se a um brilhantismo exacerbado. Logo assim que decide fechar as cortinas, o homem lhe devolve o olhar erguendo a cabeça com um movimento lento – em um gesto afetado de formalidade dissimulada. Interrompida a tarefa de afastar-se da janela, Marcus pondera sobre suas possibilidades.

Ainda mantendo a postura impecável, a qual lhe condicionara o peso do sobrenome que sempre o antecedera, põe-se de lado, como se num estado contemplativo – sem soltar as cortinas ou afastar-se. Eis que mais uma vez as batidas ecoam no apartamento, desta vez com intervalos tão longos que o soam agressivos, e ele agora desloca o corpo para uma distância segura da visão do seu observador. Ele não está mais seguro. Será assassinado.

Seus cúmplices logo o encontrariam, se suas próprias mortes não o fizesse primeiro. Talvez não devesse lutar contra a sua fúria. A ira daquele homem jamais poderia ser apagada. Marcus compreende a dimensão deste fato. Era ele um dos culpados. Jamais se perdoaria pelos seus próprios crimes, assim como ninguém um dia iria perdoá-lo. Volta-se à mesa ao lado para desfazer-se da arma e se deixa refletir pela primeira e última vez sobre o seu fim. Pensando bem, o que está feito está feito. Seus erros não se dissipariam com a sua morte, então quem sabe não seria melhor que não morresse afinal. Nunca considerou a possibilidade de matá-lo, não até este momento.

À medida em que se une ao sofá para conformar-se mais adequadamente com a perspectiva de acrescentar aos seus muitos pecados a morte do homem a quem um dia chamou de amigo, ele tem a estranha impressão de ser confortado por uma atmosfera inesperadamente tranquila. Levanta-se. Pelo olho mágico, Marcus comprova na imagem do corredor vazio a suspeita um tanto macabra: ele não está mais lá. Ainda não hoje ele o mataria, embora alguém fosse morrer.

Está na hora de agir.

Marcus recorre, meio trêmulo, ao auxílio do celular. Edgar era a pessoa mais próxima dele que não estaria dormindo. As horas, agora, já passam das duas. Quatorze horas e vinte e sete minutos. Nunca recorriam um ao outro depois do meio-dia ou antes da meia-noite. A um bairro dali, Hilda Astuto ainda estaria na cama, seguindo conforme as leis da sua rotina indistinta. Consultá-la enquanto recrutava ao quase-amigo estenderia em ínfimos e exasperantes segundos seu tempo de fuga. Hilda não respondera, ao menos não ainda. Edgar, por sua vez, retornara de imediato.

Ao que busca as teclas antes mesmo de ler a mensagem, já pronto para responde-lo no mesmo ato – e agora retornando do quarto de cofres esvaziados, passaporte em mãos e mochila ocupada –, sobressalta-se pela quarta vez naquele dia. A primeira, a cena que dera início àquelas que se seguiram e, esta, a terceira provocada pelo alarde de quem reclamava sua companhia. Mais uma vez ele se surpreende, então; a sucessão de espantos fazendo-os ainda mais repentinos. Na tela do aparelho, o outro homem lhe responde algo a princípio indecifrável. Diz-lhe que não há como ajuda-lo sem que ele antes o ajude. "Minha ajuda só depende da sua", escrevera, "mas ao menos está vivo".

Sobra-lhe presença de espírito suficiente para devolvê-lo a cortesia, vagando meio ao pavor evidente em seus dedos embriagados. "Ainda", ele o diz. Mas eis que a porta finalmente se abre de rompante, entoando um estrondo harmonioso, antes que ele pudesse satisfazer-se por completo com a resposta que o retribuíra. Por esta ele já esperava, embora não por quem se mostra ser o seu acompanhante.

Edgar estuda o lugar de corpo travado dos joelhos aos ombros, e a lentidão do mover dos olhos revela uma apreensão que beira ao pânico. Ainda em um estado de incontestável temor, – suas articulações meio atrofiadas –, ele vai o seu encontro com um caminhar prudente que não lhe é habitual. Edgar nunca fora prudente. Contudo, naquele momento, este seria o único traço de sua racionalidade que se permitiria exercer.

– Então ele sabe. – Atesta logo que conclui a varredura.

– Soube por mim, ou...? – A pergunta antecipando as prováveis mortes das quais ele mesmo ainda não saiba.

– Não, mas sim. – As mãos se afundam nos bolsos para acompanhar o corpo, que se curva em um pesar pouco perceptível, mas contundente.

– Como? – quem?

– Hilda. – O nome saído em um só sopro. – Ontem. – Ele explica, e a Marcus também não resta nada além de baixar a cabeça. – Ela está viva, Marcus. Disso ele não sabe.

– Viva... – Replica a ideia como se tentando contê-la – Então é possível... Sobreviver.

– Quase.

– Não preciso de mais informação do que isso.

– Não somos exatamente amigos, Marcus, mas cúmplices somos – com certeza. Solano chegou hoje cedo. Está como ela agora.

– ...quase viva. – Completa.

– Quase morta. – Conserta.

– Se quer que eu saiba, então diga. O que mais eu preciso saber?

– Ele diz que no melhor caso... – a pausa segue os movimentos reprimidos – Paraplégica. Ou pior.

– Quase viva, Edgar. – Diagnostica, com rancor, e remorso.

– É claro. – Ele desvia o olhar para concordar levianamente.

– Não vou ficar e Solano não deveria ter vindo. Você, menos ainda.

– Quem sabe disso não sou eu, nem você. – Desenterra a mão do bolso trazendo nela o celular. Ele checa a tela em um só piscar e nela vê que as mensagens confirmam o argumento. Marcus o imita e as confere por si.

– É suicídio. – Sentencia.

– Não adianta fugir, meu amigo. Você seria o primeiro alvo dele. – Marcus bufa em resposta.

– O terceiro. – Corrige. Edgar tenta medir o quanto de lamento cabe na relação entre eles. Nem mesmo o laço que dividem bastava. – É... O terceiro. – Testa concordar mais uma vez, ainda por falta de melhor resposta.

– Ela ainda está lá.

– Nós resolveremos isso. – E sai, para a própria morte.

Onze anos se passaram desde a última vez que houvera proferido algum bom sentimento por meios universalmente compreensíveis. Não é que não os tenha expressado. Ele apenas não os expressou de verdade. Se bem se recorda, datam de meados de 2007 seus mais recentes registros. Saía da faculdade – nas costas, alguns bons anos de experiência na área e um entorpecedor prazer pelo próprio futuro –, quando amou e disse que amava. Contrariando suas próprias expectativas, ele ainda guarda consigo a vaga lembrança do dia em que elogiou o cabelo de uma colega de turma pois, de fato, o havia achado bonito. Ela o usara preso em um rabo de cavalo extremamente alto – suas feições expostas da mais lisonjeira maneira que já havia visto em uma mulher de fisionomia tão pouco agradável. O ato durou um total de três segundos, e ele nunca mais voltou a desperdiçar este tempo com qualquer outra coisa tão ou mais medíocre. Entre ele e os seus sentidos, agora, a há muito assumida indiferença com o mundo.

Edgar Toledo Souza de Nobrega era o nome do seu legado. Aluízio Souza de Nobrega, o punho que o conduzira. Deste, a propósito, recebera incontáveis demonstrações de carinho. Assusta-o pensar como ao ser humano basta tão somente a impressão de ser amado, mesmo quando nada mais lhe é dado de fato. Descobriu esta verdade quando ainda adolescente, e desde então vem nutrindo um desgosto especial pelo que constatou se tratar de um amor relativo.

Nem o pai nem a mãe lhe permitiram muito além da estrita honra de ostentar os motivos pelos quais merecia ser amado. Neste quesito, Marcus sempre o compreendera melhor do que qualquer outro; ambos algemados por um título há gerações apregoado aos seus nomes. Seria mais cristão da sua parte conceder aos dois a merecida gratidão pelos generosos investimentos ao longo de sua vida, mas não o faria. Nunca foi dado ao cristianismo, ou crenças afins. Costumava dar maior preferência às teorias punitivas. Talvez fosse mesmo o mais maquiavélico dos sete, mas nem de longe era o único.

Na carreira escalou os exatos caminhos que a família antes percorreu. Vez ou outra penetrava a realidade deste fato e, sob a luz de uma mágoa ingênua, regozijava-se com a ilusão de usurpar de seus antepassados o triunfo que a eles pertencia. Nada os fora usurpado, é claro. Seu sucesso fora encomendado antes mesmo do seu próprio nascimento. Com a aposentadoria do pai viria a sua tão esperada herança indigna e, aos 27 anos, ele já alcançava patamares usualmente inatingíveis.

Herdou o posto de dono de um dos maiores escritórios de advocacia do país apenas cinco anos após concluir sua passagem pela universidade – tendo transitado, já naquele tempo, pelos mais abastados grupos do ramo. Dentre eles, a própria família. Pelos mesmos cinco anos anteriores dedicou-se exclusivamente a missão de deter para si o controle sobre o mundo do direito empresarial. Aos 28, enfim conseguira. Além de herdeiro, Edgar almejava ser o herói dele mesmo.

Por precaução, ele volta a pé para a casa de Hilda. Estaria desacordada, esperava, quando chegasse ao seu destino. Já não havia muito o que ele pudesse fazer por ela sem que tivesse que simular sentimentos os quais ela mesma bem sabia não existir. Solano fora categórico no diagnóstico, como sempre fora com tudo. Quando ela descobrisse a que fim fora sentenciada, tudo sobre a sua vida perderia seu sentido, e Edgar não queria estar presente para testemunhar o que estaria por vir.

Ela ainda estava acordada, mas não por muito tempo.

Enquanto era sedada, eles discutiam a gravidade do caso em um duelo ilógico de veredictos e prescrições. Edgar sabidamente desconhecia qualquer coisa sobre medicina. Solano, por sua vez, reconheceu prontamente o mal que o acometia. Medo, foi o que disse, e Edgar se provou devidamente diagnosticado ao desferir um soco súbito e certeiro contra o queixo do amigo. Sem dúvida era medo.

– Terminal, acredito.

– Disso eu não morro, meu caro.

– Nenhum de nós.

Um gemido ao longe desperta a ambos para a crueza de suas palavras, então. Havia sim alguém a quem a morte talvez não se abateria da mesma forma que aos demais. Hilda resmungava reclamações confusas em um tom irreconhecível, ao mesmo tempo em que lutava a todo custo contra a força que a arrastava até o escuro do seu inconsciente. Ainda sem conhecer a provação que a esperava ao expirar do efeito que lhe entorpecia as sensações, ela dispensa aquilo que provavelmente será o seu último momento de alívio. Eles se olham novamente.

– Não todos, eu garanto. – Edgar pondera.

– A maioria. – Contesta e, após uma pausa cortês, saca a arma da cintura. Sem mais solenidades, ele dispara contra o homem a sua frente. Ele então aguarda em silêncio pela chegada de um acontecimento ainda inominado. Era o depois, o momento em que sua natureza protestaria contra a subtração irreparável da sua humanidade. Mas nada mudou, infelizmente. Ele continua o mesmo. Despede-se discretamente do morto com quem outrora dividira um outro crime. A lástima da perda permaneceria oculta, senão inexistente.

Solano se permite esquecer por um instante dos conflitos morais que seu ato suscita. Ele mesmo não poderia ser mais salvo do que qualquer um. Consumar uma morte já anunciada não lhe condenaria a penas piores do que as que pagaria. Poderia, todavia, adiar o quanto possível o destino inevitável que o aguardava. Deixara seu país para isso. Fora-lhe dado o privilégio degradante de escolher ele mesmo os meios para a própria morte. Edgar, agora, é apenas um nome – percebe –, e o dele também logo seria. Alessia é outra que já esmaece em sua memória. Hilda parece não estar em condições de ser descartada. Mesmo que viva, não durará muito.

Ninguém irá, de todo modo.

Quando se afasta mais do corpo e reserva a ele seu devido descanso, lembra que a responsabilidade pela vida dos moribundos ainda é de sua competência. Unicamente em nome do menor resquício de ética que lhe resta, dedica-se a isto. No quarto ao lado, porém, silencio absoluto. Ela desistiu de lutar, ao que tudo indica. Solano tenta estender a leveza do seu sossego por um momento mais e o gosto viciante de uma paz desconhecida monta em seus sonhos uma cena perversa, embora não de todo absurda. Eliminando desde já o remorso e o arrependimento que dificilmente o abateria, não seria de mal gosto considerar interceder em seu benefício. Ele poderia sanar sua dor; antecipar sua partida; sacrificá-la, como em casos menos graves se faz a um bicho.

Se permitira-se ir ao extremo da barbárie com Edgar, nada o impediria de repeti-lo com Hilda. Desta vez, porém, o faria por pura bondade. Além do mais, o transtorno do plano mal-sucedido não a safaria da sua dívida. Caso saísse viva deste acidente, ele retornaria. Retornaria para submetê-la ao castigo que lhe era de direito. Solano, aliás, muito se admira de tê-la encontrado relativamente consciente. Fosse ele no seu lugar – lançado contra a lateral de um ônibus, pela força de uma moto a 120 km/h –, não teria escapado. Já ele não teria se exposto desta forma. Nem tanto por medo, apenas por cautela. Mas Hilda não temia muitas coisas, conquanto devesse tê-lo temido antes ou mais do que aquelas poucas. Alessia e Edgar já a haviam advertido para o risco de manter um hábito tão arriscado quando nenhum deles tinha qualquer garantia de se ou quando eles seriam descobertos.

Levou quatro anos para tanto, mas foram. Desde o primeiro dia, enquanto na sala daquele tribunal, os sete sabiam da possibilidade de estarem todos na mira dele. Não estavam. Ou talvez estivessem. Mais provável que ele os tenha enganado todo este tempo, aguardando o momento mais apropriado para se pôr em prática esta vingança a que tramava longe de suas vistas. Isto, ou outra coisa. Eles nunca poderiam ter certeza de nada. Por sinal, foi por isso que, naquele mesmo dia, decidiram assumir uma conduta exemplar. Todos, exceto ela. Hilda não os deu ouvidos, e poderia acabar pagando por este erro mais do que os outros. Duas vezes mais, para ser preciso – embora ele o pudesse evitar.

Ela agora descansa sobre a cama onde mal se deitava. Passava a maior parte do dia cruzando a cidade atrás de furos de reportagem, como sua própria história certamente se tornaria. Dizia-se no interior dos vastos meios da imprensa que Astuto era possivelmente a única repórter do mundo a ganhar mais que os âncoras de um mesmo noticiário. Ainda que em tempo algum tenha sido propriamente aclamada pela mídia, seu trabalho no campo da investigação criminal – inovadoramente espetaculoso – por anos alimentou as conversas de espectadores dos mais diversos níveis sociais.

Fama. A fama era sua maior conquista.

No ano anterior, ao tempo em que Solano aceitava a proposta de quase uma década e enfim se juntava a um grande colega de faculdade para estabelecer com ele um consultório em Buenos Aires, Hilda mudava de emissora, assinando um contrato que estendia em pelo menos mais dois anos sua estadia na empresa. Ela não pensava em fugir. Acusou-o de covarde todas as vezes que pode, impondo-o seus métodos notoriamente falhos de administrar questões de ordem prática, como precaver-se contra os males já previstos para o futuro. Se coubesse a ela a responsabilidade de decidir o destino dele, decerto que optaria por preservar sua vida. Hilda não era burra, era apenas insaciável.

Ele se recosta sobre a cabeceira da cama disposto a concluir a tarefa que incumbira a si mesmo. Ela nem ao menos tomaria conhecimento do fim da própria vida, e Solano não poderia imaginar melhor maneira de findá-la senão esta. Hilda descansaria esta única vez mais, até que não precisasse mais interromper o seu sono. Solano estica o braço em direção a gaveta a sua esquerda. Nela, frascos cheios e inviolados de morfina. A seringa na mão o desafiava a antecipar os numerosos dias que ainda estariam por vir. Solano sabe, “Ele” não os esperaria.

O telefone toca. Marcus explica que tem tentado falar com eles. Está se despedindo; mas morrerá no caminho.

– Como foi de viagem?

– Rápido.

– Muito bem. Só avise ao Edgar que fui embora. Não existe nada que me prenda aqui, pelo contrário. – Avisou, Marcus.

– Edgar já foi. Tento falar com ele mais tarde.

– Esse imbecil vai ficar em casa esperando a vez dele chegar?

– Isso quem sabe é ele.

– Muito bem. Espero não termos que nos ver de novo, você entende.

– Entendo.

– Certo.

– Certo.

Marcus entra no carro e mantém as janelas fechadas. Poucos minutos se passam até que ele não possa mais suportar o chiado das suas ideias em choque, distorcendo e desviando repetidamente a direção do seu raciocínio. Ele precisa se distrair. No rádio, nada vale a pena. Sua respiração comprometida mal o preserva a vida, quem dirá lhe servir de alento. O tamborilar dos polegares contra o volante volta e meia perde o seu ritmo. Volta sua atenção para o chacoalhar irregular do celular contra as paredes de plástico do compartimento onde se aloja – mas isto também não é o suficiente. A contragosto, abre as janelas. Consola-o saber, porém, que o tumulto das ruas cedo ou tarde se acumulará nos seus ouvidos até que se misture ao som dos seus pensamentos. Nem que tenha que viajar por doze, ou vinte horas, mesmo que tenha que cruzar estados, ou países, partirá dali.

Ele tenta acessar o número de Edgar novamente. É absolutamente inadmissível que ele não o atenda, sob qualquer circunstância, a essa altura dos acontecimentos. Estava morto, é evidente. O infame advogado Edgar Toledo Souza de Nobrega, impiedoso e desmedido, fora derrotado. Marcus não se privaria da satisfação de apreciar sua morte. Edgar merecia morrer. Não mais do que os outros, certamente. Ele apenas merecia. Dele, contudo, sentiria menos falta –, e ainda não havia conhecido quem de fato a sentiria.

Norma Toledo de Nobrega – sua tia – e Aluísio Souza de Nobrega – o tio – sentiriam muitas coisas. Dentre todas elas, entretanto, não estava a saudade. Ele mesmo, agora, parecia experimentar um certo alívio. No momento em que toda a família enfim tomasse ciência do que fizeram, e não demoraria muito este dia chegaria, eles também o experimentariam. Não por retidão moral, menos ainda por honradez; ou honestidade; escrúpulo; pudor; decência. A hora em que os tios agradecessem a perda do próprio filho, eles o fariam unicamente por autopreservação. Não poderia julgá-los; não por isto. É verdade que por um bom tempo Marcus viveu inadvertido das forças por trás deste instinto. Mas, hoje, ele as conhecia muito bem. Fora apresentado a elas anos antes, pelo primo, durante a conversa que mudaria o curso da sua vida. Assim que as viu, não as reconheceu de imediato, em parte porque era ainda muito novo para isso:

– Se está tão perdido assim, venha comigo. Eu te apresento a todos os figurões, amigos meus. Futuros amigos seus.

– Não quero ser advogado, Edgar.

– E não precisa.

– O que você quer?

– Não se faça de vítima, você já é um homem.

– E o que você quer?

– Eu trato de proteger os interesses dos empresários, Marcus, mas não sou um.

– Porque não quer. Eu não tenho nada a ver com isso.

– Ano que vem você vai tentar o vestibular, certo?

– Isso, mas adiante de uma vez essa conversa, por favor.

– Você deveria participar mais desta família, tenho pensado.

– Da sua família?

– Da nossa.

– Não acho que haja lugar para mim ali, muito menos entre os teus amigos.

– Clientes. Eles são clientes.

– E qual minha parte nisso?

– Liderar uma empresa é gerenciar a economia, Marcus, e a economia são eles.

– E você acha que eu posso ser também. Por que não você?

– Porque eu já sou. Estou sendo agora.

– Você parece seguro demais disso.

– Não se preocupe, você também logo estará.

Edgar era – daqueles com quem mantinha a menor relação afetiva – seu parente mais rico; milionário, se apegasse-se a precisão dos números. A distância entre eles talvez se devesse mais a isto do que a personalidade aristocrática do outro e seus antecessores. O dinheiro se mostrara uma nuance intransponível quando somada a supremacia do seu longo histórico de sucesso largamente reconhecido. Uma história de fortuna e poder. Mais velho e mais afortunado, Edgar sempre tirou um proveito particularmente prazeroso em testar com o primo seus conhecimentos na arte que havia consagrado o nome da família. A manipulação, frequentemente classificada como uma retórica tão abrupta quanto atraente, sempre lançou os seus membros às mais altas castas do setor corporativo.

Quando em campo, os Nobrega pareciam materializar por entre o bom uso da terminologia jurídica a premonição dos anseios dos seus nobres congêneres. Na fala bem-posta, suas ambições mais indizíveis sabiamente camufladas. Marcus, conhecido entre eles por representar a parte mais simplória dos que a quem seu nome se estendia, abdicou das pretensões do pai de seguir carreira na arquitetura para aventurar-se – sem qualquer recurso ou prática precedente – no mundo dos negócios, junto ao seu primo distante.

Tão logo percebeu as vantagens de atribuir ao meio-sobrinho a proteção do título, Aluísio decretou ao seu meio irmão – pai de Marcus – que o permitisse cuidar pessoalmente dos seus estudos. Primo e tio – pai e filho – buscavam encontrar nele não o parentesco por anos desprezado. Acima de tudo, buscavam um aliado. Ao decorrer dos cinco anos de faculdade, paga com a garantia de aboná-lo de todo custo e cobrança, Marcus se tornara seu novo discípulo. Por este feito, Edgar e Aluísio conquistaram a admiração de Marcus, e a inveja dos seus irmãos, também a gratidão do pai, bem como a confiança da mãe – esta, morta pouco tempo depois, acometida pelo câncer de intestino que consumira metade dos seus parentes.

No tempo em que Edgar chegava ao seu quarto e último ano trabalhando ao lado do pai – no mesmo escritório que um ano mais tarde ele herdaria –, Marcus se formava por uma das maiores escolas de negócios do mundo. Prestes a iniciar o programa de pós-graduação que também lhe foi prometido, ele se preparava para seguir a carreira que nunca o pertenceria. A aliança, que os dois tão antes planejaram, para sempre estaria à frente de toda e qualquer escolha sua. Antes de ser o homem de negócios a quem hoje tantos temem e reverenciam, Marcus era um devedor, e a memória do dia em que firmou em sua mente a plena clareza sobre este fato é a mesma que o corrói agora.

O sinal aberto não lhe diz nada; nem mesmo a sinfonia de buzinas alardeando-se em vão na tentativa de puni-lo pelos segundos de distração egoísta. Um acidente agora poderia ter lhe custado a vida. Estaria neste exato momento preso à uma sucessão infindável de burocracias, impedido de cumprir a fuga que talvez nem mesmo viesse a mantê-lo à salvo. Quase que imediatamente, ele cai em si. O trânsito de fato precisava seguir. E falhou na tarefa de assegurá-lo. Cometeu um erro, e todo erro tem suas consequências. Esta é a verdadeira natureza da vida. É irônico que a primeira coisa que o venha à cabeça ao recuperar-se de mais este descuido seja uma compreensão já tão antiga. Era nisto que pensava todas as vezes que se recordava do seu crime: como tudo, algum dia, ele teria suas consequências. Neste caso, a vingança de uma vítima que só seria saciada pela morte dos seus algozes. Uma resposta justa, para o mal que sofreu primeiro. Marcus não seria tão estúpido a ponto de questionar sua sede de sangue. E quem seria, afinal? Edgar, talvez.

Não. Fausto.

Fausto sempre soube compreender o peso dos seus atos e, por este exato motivo, ele os fazia. Diferente de Edgar. Edgar nunca precisou descobrir o preço dos seus erros; eles o eram descontados sem que ele sequer tivesse tempo de lamentá-los. Já Fausto, melhor que ninguém, conhecia com uma exatidão impressionante a causa e o efeito de tudo. Destacava-se entre eles por razões diversas, mas havia nele um traço específico que sempre os tirara o sono. Para Fausto, não havia nada que fizesse que fosse um equívoco. Suas ações, todas, eram preciosa e meticulosamente calculadas. Fosse como fosse, aquilo que fizesse era nem mais menos do que pretendera fazer.

Se havia alguém menos capacitado para arcar com seus próprios malfeitos, era ele. Possivelmente porque, de todos, ele era o único que tinha verdadeiro prazer em assistir e infligir sofrimento ao outro. Estava aí a pior das suas características. Fausto era um homem violento. Sempre foi assim, aliás. Desde criança; até a adolescência; mesmo quando adulto. A profissão, tão óbvia quanto contraditória, confundiu a uns e afastou a muitos. Era estranho que alguém tão perverso encontrasse satisfação em resguardar a vida de outras pessoas, a não ser por aquelas às quais cessaria livremente.

Iniciou sua carreira como policial militar na cidade aonde a maioria deles havia se mudado, assim como tantas pessoas faziam. Uma cidade grande, turística, conhecida e desordenada. Seu eventual posto de 1º Sargento foi de enorme ajuda no plano que agora os assombrava, mas a fama desonrada que corria pelos corredores marcara o seu nome. Sádico e detalhista, Fausto se tornava a cada movimento o elo mais fraco do grupo. Era apenas a sua incontestável dedicação a minúcia, tão prezada pelos colegas, a única coisa de que os demais não poderiam abrir mão. Não havia nada a temer, ele os assegurava, provas não haviam. Realmente, era incontestável. Fausto não deixava vestígios. A menos que, por algum motivo, ele o quisesse – como já havia feito. Era claro, e tarde demais, mas ele poderia tê-los traído. Seja lá por qual razão – ainda a ser descoberta –, ele bem poderia.

Apesar de por anos ter seu nome ligado a inúmeros casos de corrupção, Fausto Aquino dos Anjos escapara ileso das acusações que o acompanhavam e partira há menos de dois anos para os Estados Unidos. Junto a esposa e dois filhos, ele vive hoje de rendimentos de aplicações na bolsa de valores. Uma prática comum entre eles, mas que dera frutos em tal grau somente a um. Ao menos era o que aparentava, embora não explicasse totalmente suas posses exorbitantes. Em todo caso, o melhor a ser feito era mantê-lo distante. Contando que estivesse longe, eles não o questionariam – como os era de praxe. Agora já não importa muito quem deles está próximo, Marcus não suportaria a presença de nenhum.

Ele ainda não sabe, mas Fausto está de volta.

Marcus não consegue conceber a possibilidade dos outros tramarem qualquer plano, juntos. Restara-o nada e ninguém em quem pudesse confiar, e podia apostar que todos aqueles que ainda foram poupados pensavam o mesmo. Sem sombra de dúvidas, ele precisava fugir. Por enquanto manteria seu primeiro destino, a pousada dos pais de Fabrícia – uma velha amiga, dos tempos de escola. Nenhum deles sabia da sua existência; nem da pousada, nem da mulher. Por sorte jamais teve a oportunidade – ou motivos – de apresentá-los. Estaria seguro lá, se tudo ainda estivesse no seu lugar – embora isso, porém, ele não fosse se arriscar a descobrir. Bastaria uma ligação e alguém poderia esbarrar em algum rastro do seu paradeiro. Apenas a sua chegada lhe diria com certeza qual seria o rumo deste plano – que na prática mal havia.

Já está escuro. A parada está próxima. Menos de 3 km o separam de uma noite comum de descanso inocente – Marcus fabula. Teria se comunicado com Fabrícia, não estivesse em tamanho perigo. Mais à frente, o caminho que supostamente o levaria a fachada do edifício conduz os olhos até um portal. Por ele, luzes iluminam para além do jardim. As árvores e arbustos, que pouco se veem na visão limitada, se espremem junto a parede que os contêm. Pelo modo como o brilho fluorescente se projeta para fora da passagem, parece que lanternas estão postas ao longo do chão. Como em uma pousada, imagina. Não que seja possível ainda dizer ao certo. Os muros altos escondem a vista. Ele não sabe se o plano está mantido, mas é certo que o lugar não estará vazio. Marcus avança com a lentidão excessiva a que jamais antes se permitiria e reserva às últimas dúvidas um tempo razoável da tarefa que executa.

Desfizera-se dos seus laços sanguíneos. Subjugara-se a valores alheios. Utilizara-se de meios escusos. Participara de esquemas indevidos. Foi ele quem começou tudo, e ele o terminaria. Aquele a quem mais culpava já estava morto. Edgar não pagaria pelos seus atos, uma vez que nem a cadeia o apartaria do mal que fizera. Falta-lhe apenas culpar a si. Agora que há poucos metros, a imagem da pousada já se assenta na paisagem. Manobra o carro em direção a passagem. Atravessa a entrada sem preocupar-se demais com o gosto amargo que o vem a boca. Uma madeira de tom laranja cobre a totalidade da casa. A cor alegre de alguma forma o assusta. Das nove janelas três estão acesas. Através da porta aberta atrás da cerca que corre a varanda, ele vê uma silhueta transitar pelo interior da pousada, mas é a sombra de mais alguém que o chama a atenção agora. Nem um minuto se passa e já está ofegante.

Desce os curtos degraus da varanda uma mulher franzina de cabelos batidos. A noite não o ajuda a reconhecê-la, mas aquela não era Fabrícia. Ele mesmo sai do carro e decide por cessar o medo que tem o impedido de agir normalmente. É preciso lucidez. Pouco interessa quem seja aquela pessoa. Além do mais, sua arma está a mão. Assim que incorre em cálculos e planos alternativos, a reconhece. É Olga, com a mesma aparência centrada de sempre. Ele não sabia que ela planejava vir. Se a mente inabalável optara também por juntar-se a eles, talvez ele devesse rever seu plano de fuga. E ele o faria, fosse este o real motivo da sua vinda. Não era.

Ela sorri para ele. Parece bem. Descansada. Como se estivesse aqui muito mais do que um dia.

– Olga?

– Marcus.

– Então devo presumir que sua estadia aqui é mera coincidência?

– Gostaria que sim, mas não.

– Parece que ele tem entrado na cabeça de todos, até nas mentes mais firmes.

– O medo é também uma resposta coerente.

– Concordo.

– É claro que sim. Mas não é a mim a quem deve temer.

– Não importa se é mando dele ou não. Já sabemos que quem participa também comete o crime.

– Então está com medo de mim agora.

– Uma análise banal para o custo dessa consulta.

A grama farfalha. Quatro passos são ouvidos ao fundo.

– Pois não deveria – Ele ouve, às suas costas. A voz inconfundível. Marcus não adia a cena; vira-se sem mais demora.

– Você, Fausto, é digno de medo em qualquer ocasião possível.

– Mas nunca houve uma tão especial quanto esta.

Olga vem chegando mais perto do seu encalço e Marcus assiste a mais uma etapa da sua previsão seguindo o seu curso. Estava bem ali o propósito de toda aquela vingança. Eles passariam a temer até mesmo à presença um do outro.

Em Edgar jamais confiara. Solano, se necessário, seria capaz de tudo. Hilda dispensava o uso do bom discernimento para todos fins a que se dedicasse. Alessia agia apenas em benefício próprio. Fausto, em última instância, comprometia-se mais com seu gosto pela perversidade do que com qualquer um. Embora sempre tão assustadoramente sóbria, Olga - por outro lado - jamais o representou uma ameaça. De agora em diante, porém, ela também o seria. Pune-se instantaneamente pelo pensamento contra o qual vinha tentando lutar: ainda que nutrissem entre eles uma relação incompreendida, deviam um ao outro um trato menos vil.

Não era verdade. Estaria se enganando para além da ingenuidade se buscasse por um tempo em que algum um deles cultivara quaisquer virtudes. Não era este o caso. Não é que eles tenham mudado. Nem que só agora tornaram-se pessoas tão desprezíveis. Tudo estava igual. É ele que nunca antes fora a vítima. Continuavam, todos, o que sempre foram - ele, inclusive.

– Já estou de partida. – Ela o diz.

Marcus a encara por um momento; os olhos constrangidos. Eles a pedem em silêncio que o permita o mesmo. Não seria necessário por em palavras a sua resposta, mas é Fausto quem o faz – por fim.

– Não.