ELE SABE 3

"Uma verdade o ocorre, de repente: eles não se amavam. Nenhum dos dois saberia dizer o que sentiam de fato, aliás, caso os perguntassem. Mais provável que o pecado de que compartilhavam fosse a única força a uni-los. Uma ligação de natureza suja, mas genuína. Importa-o apenas, porém, que – pelos poucos dias de vida que ainda o resta –, sentiria sua falta. Retirou-se da sua presença inútil, isentando-se com isso do dever de velá-la. Nem uma alma sequer daquele grupo valeria o esforço necessário. Não os cabia, de igual modo, o privilégio de estar de luto. Foi ela quem o alertara para esta máxima, certa vez, utilizando-se exatamente destas mesmas palavras. Antes de se livrar de qualquer indício de sua vinda, pronunciou em voz alta – uma última vez – o seu nome."

[TERCEIRA PARTE]

Marcus já está do lado de fora – a quatro andares de distância do corpo que agora jaz sobre o chão da cozinha, alheio aos objetos a sua volta – e, de pé sobre a calçada larga da rua movimentada, sente uma necessidade urgente de limpar as mãos na roupa que vestia. Queria se ver livre do fardo que parecia fazê-las pesadas. De algum modo, ele se sente culpado. Até o momento da sua morte – no entanto –, ou mesmo após isso, este ainda não será um feito possível.

Havia ainda algumas tarefas mais a serem feitas, e elas exigiriam dele a mesma lisura que lhe impunham os contínuos deveres da desonestidade. A primeira de todas, alertar os demais. Selecionou nome por nome da lista de contatos da qual também faz parte; as identidades ocultadas pelos pseudônimos que há um ano mantinham suas conversas inofensivamente expostas, enquanto totalmente privadas. Para todos os efeitos, ele jamais deveria suspeitar de nada.

Digitou palavras breves e as enviou sem muita pressa. Daquele ponto no globo até onde alguns deles se encontravam, continentes, mares e países de distância. Três ao todo tentaram se espalhar pelo mundo e viver terminantemente submersos em suas farsas. Agora seria a sua vítima aquilo que os obrigaria a voltar a superfície.

Uma vez em casa, certificou-se de estar sozinho. Dentro de horas ele já não poderia mais se assegurar disso com a mesma facilidade; a expectativa crescente progredindo em conjunto com o avançar dos minutos. Talvez fosse justamente o pavor de conviver com a incerteza constante a mais cruel vingança que ele os teria preparado. Ao menos Alessia fora poupada disto; o desfecho do pensamento levando-o subitamente a uma compreensão mais sensata. Agora que todos já foram avisados, Marcus se dá conta de que acaba de mover as peças do jogo a favor do seu adversário.

A mera ameaça já o bastava. Ele queria que eles fossem alertados.

Este não é ele. Jamais cometera erro tão grotesco, e assim se esforçava para recobrar-se. Também não sabe, e nem pretendia, ser tão grotescamente manipulado. Se cabe a alguém a autoridade máxima deste mesmo ofício, seria ele – e apenas ele – seu maior detentor e grande soberano. Executivo em ascensão. Uma mente destemida. Insubstituível pela inteligência. Indispensável pela elegância. Mas não mais, ao que parece. Vê-se despejado sobre o sofá-cama incerto demais do que deve temer. Não houve sinais relevantes. Eles os teriam notado. Se alguém percebeu, no entanto, ninguém o alertara. Ela não pode fazê-lo, é claro, e agora ele teria que elaborar uma solução sozinho e o quanto antes – como Alessia certamente também não pudera fazer.

Enquanto se permite prolongar um suspiro entrecortado, ouve romper na sala o ruído oco de dois solenes pares de batidas à porta. De olhos alarmados, e um tanto já secos, prefere conferir – pela janela – o lado de fora, antes de se encaminhar até o seu visitante.

Junto a árvore mais próxima, do outro lado da rua, um homem de óculos escuros se recosta de braços cruzados. Tão suspeito quanto humanamente possível, o sujeito veste um sobretudo num tom de cinza muito escuro, e leva na cabeça um chapéu que não lhe parece ter o menor propósito plausível, senão o de elevar-se a um brilhantismo exacerbado. Logo assim que decide fechar as cortinas, o homem lhe devolve o olhar erguendo a cabeça com um movimento lento – em um gesto afetado de formalidade dissimulada. Interrompida a tarefa de afastar-se da janela, Marcus pondera sobre suas possibilidades.

Ainda mantendo a postura impecável, a qual lhe condicionara o peso do sobrenome que sempre o antecedera, põe-se de lado, como se num estado contemplativo – sem soltar as cortinas ou afastar-se. Eis que mais uma vez as batidas ecoam no apartamento, desta vez com intervalos tão longos que o soam agressivos, e ele agora desloca o corpo para uma distância segura da visão do seu observador. Ele não está mais seguro. Será assassinado.

Seus cúmplices logo o encontrariam, se suas próprias mortes não o fizesse primeiro. Talvez não devesse lutar contra a sua fúria. A ira daquele homem jamais poderia ser apagada. Marcus compreende a dimensão deste fato. Era ele um dos culpados. Jamais se perdoaria pelos seus próprios crimes, assim como ninguém um dia iria perdoá-lo. Volta-se à mesa ao lado para desfazer-se da arma e se deixa refletir pela primeira e última vez sobre o seu fim. Pensando bem, o que está feito está feito. Seus erros não se dissipariam com a sua morte, então quem sabe não seria melhor que não morresse afinal. Nunca considerou a possibilidade de matá-lo, não até este momento.