Tribulações

E quando minha secretária, a Srta. R., entrou no meu consultório pela manhã e apresentou-me a agenda do dia, notei que havia algo errado.

- Você marcou uma consulta para 18:30 h e eu só atendo até às 17 h - questionei, encarando-a nos olhos.

- Eu informei isso, doutor, - defendeu-se a jovem, de pé à minha frente, desviando-se do meu olhar - mas a pessoa pediu-me que o convencesse a abrir uma exceção, e que pagaria o triplo do valor da consulta para vê-lo neste horário.

Ela estava visivelmente tensa, o que não era de estranhar. Eu também ficaria tenso se tivesse que fazer meu patrão trabalhar meia hora além do seu horário normal, mesmo com a promessa de receber em triplo pela tarefa. Ou haveria algo além disso?

- Uma pessoa, você disse... - comentei, olhando para a anotação ao lado da hora na agenda. - Barão J.? Eu o conheço?

- É a primeira consulta dele, doutor - explicou R. - Está chegando à cidade vindo do norte, e disse que provavelmente seu voo não pousaria antes das 17:30 h. Portanto, pediu-me que tentasse conseguir um atendimento para a hora que marquei. Mas, claro, o senhor pode recusar e eu ligarei para ele cancelando a consulta.

- Ele justificou a razão de ter que vir hoje, após o meu expediente? Não poderia esperar até amanhã e ser atendido no horário comercial, pagando o preço de tabela? - Insisti.

- O barão disse que era um assunto de extrema urgência e gravidade, tanto que sequer passaria no hotel antes de vê-lo. Virá direto do aeroporto para cá.

Agora a Srta. R. resolvera fazer contato visual; fixo, sem piscar.

- Está bem - acedi. - Diga que o receberei... e certifique-se de que o valor combinado esteja em minha conta antes do horário da consulta. O triplo, não é?

Ela abriu um sorriso; de alívio, não de alegria.

- O triplo, doutor. Grata!

- Não há de quê - respondi, reclinando-me na minha cadeira.

Quando me vi novamente sozinho no consultório, abri a terceira gaveta da escrivaninha e dela retirei um exemplar do "Almanaque Marítimo". Como eu já desconfiava, aquela noite seria de lua cheia. E, mais importante: por ser outono, o pôr do sol se daria às 17:15 h. Portanto, meu convidado chegaria com o crepúsculo.

- Muito conveniente, barão J., muito conveniente - comentei com meus botões, guardando o livro novamente na gaveta.

* * *

Às 18 h, despedi-me da Srta. R., a qual me pareceu genuinamente surpresa.

- Não vai querer que eu fique para atender o barão, doutor? - Indagou.

- Você mora longe - ponderei - e o transporte público nessa área da cidade não é dos melhores. Pode sair no seu horário normal e deixe que eu cuido do barão sozinho.

Ela se foi, agradecendo a minha gentileza. Na verdade, como eu estava antecipando, ter a Srta. R. ali comigo, naquela noite, poderia ser uma péssima ideia.

Sentei-me numa poltrona da recepção da casa que usava como clínica, e aguardei em expectativa, até que o relógio de pêndulo fizesse soar uma nota avisando que já eram 18:30 h. Ergui-me, no exato instante em que tocaram a sineta da porta. Abri.

Parado na calçada em frente aos três degraus que levavam à entrada, estava um homem alto e magro, de sobretudo de pele negra, um antiquado chapéu-coco na cabeça, luvas de couro nas mãos.

- Doutor? - Indagou ele com uma voz profunda e um sorriso descolorido.

- Barão J., eu presumo - retruquei.

- Não me convida a entrar?

- Só se me responder algumas questões, antes, barão. Considere que faz parte da sua consulta - retorqui.

- Mas aqui... - ele girou o torso, para um lado e outro da rua deserta, sob as sombras do crespúsculo. - Sua atitude é pouco hospitaleira, devo dizer.

O tom de voz agora era gélido.

- Lamento, e sei o quanto deve estar cansado, barão. Foi uma viagem longa até aqui, imagino. Veio no seu próprio jatinho?

- Sim, eu tenho um jato executivo - declarou ele, secamente. - Mas pensa mesmo em conduzir esta entrevista do lado de fora da casa?

Nesse instante, o telefone na mesa da recepção tocou duas vezes: era o sinal combinado.

- Na verdade, eu só estava ganhando tempo - retruquei, dando um passo para trás, mão na maçaneta da porta. - Parece que o senhor não declarou o seu caixão com terra às autoridades alfandegárias.

E fechei a porta nas fuças do atônito barão.

* * *

E na manhã seguinte, quando a Srta. R. entrou no meu consultório com a agenda do dia, convidei-a a sentar-se numa das poltronas reservadas aos clientes.

- O senhor está bravo comigo, doutor? - Perguntou ela, ressabiada.

- Penso que deveria, mas de fato, você acabou me fazendo um favor - argumentei. - Quanto o barão J. lhe pagou para encaixar aquela consulta extraordinária de ontem?

Ela arregalou os olhos.

- Mas doutor, eu não...

Fiz-lhe sinal de que se calasse.

- Se continuar mentindo para mim, não vou pensar duas vezes em demiti-la - alertei. - Já descobri que o barão te subornou para ter o privilégio de ser atendido fora de hora. Ocorre que ele tem necessidades muito específicas, e uma delas é que não pode andar por aí à luz do dia... outra é que transporta um caixão com terra da sua cidade natal a bordo do jatinho executivo. Infelizmente para ele, não declarou o objeto às autoridades alfandegárias e consegui que fosse confiscado - e destruído - enquanto vinha à minha procura aqui.

- Então, o barão... - começou a dizer ela, aturdida.

- O barão estava esperando um convite meu para entrar - atalhei. - Mas, francamente, não sou da opinião de que devamos dar abrigo a todo tipo de estrangeiro que bate em nossas portas.

"Principalmente", pensei, "estrangeiros com dentes longos e afiados".

- [18-08-2018]