Noite Silenciosa

Véspera de Natal, 1990.

A previsão era de que nevaria. E nevou. Parada na sala, olhando pela vidraça, eu ia a neve se acumular nas calçadas e nos telhados das casas vizinhas.

Connor já deveria ter chegado da sua viagem, mas estava atrasado como sempre.

Faltava pouco para a meia-noite, e a mesa já estava servida com a ceia de Natal. O bolo de nozes, e o peru que demorei um tempão para assar e quase deixei queimar as frutas e o vinho. Estava faminta, e ansiosa pela volta do meu amor.

Ele havia ligado no início da noite, me avisando que já estava deixando o hotel e pegado a estrada. Enquanto Connor não chegava, preparei nossa primeira ceia, desde que nos casamos. Por um instante, lembrei do nosso casamento… De como ele suava frio segurando a minha mão, de como seus dedos tremiam ao colocar as alianças.

“Você tem apenas vinte anos, Kendra! Se você se casar agora, perderá muitas oportunidades na sua vida. Perderá um tempo na sua juventude, que não voltará!” – foi o que disse minha mãe.

Mas não me arrependi de ter casado com Connor. Todos perdemos e ganhamos. Se perdi oportunidades, ele também perdeu. E mesmo assim, continuamos nos amando. E muito.

Joguei a bituca de cigarro no cinzeiro. Minha ansiedade havia devorado quase um maço inteiro. Lá fora, a rua estava vazia. As luzes coloridas piscando nas casas e nas árvores, bonecos de neve malfeitos, espalhados pelo quarteirão. E eu sozinha, esperando a volta do meu amor, enquanto exatamente nesse momento, as pessoas no globo terrestre inteiro; se reuniam ao redor das mesas com suas famílias para confraternizar.

Quando pensei ter ouvido ele me chamando, eu já havia tomado metade da garrafa de vinho, reservada para a nossa ceia.

Caminhei até a porta e a abri, imaginando encontrá-lo, com seu sorriso no canto dos lábios e os seus olhos brilhantes miudinhos. Mas não havia ninguém. Apenas uma lufada de vento e neve, que entraram pela fresta, que eu havia aberto.

Voltei desanimada para a mesa. Fiquei sentada olhando para a mesa posta. Senti um nó na garganta. Enchi minha taça com o vinho novamente e fiquei bebericando, enquanto batia ansiosamente o garfo no prato de porcelana.

O barulho dos fogos estourando lá fora, e os sinos tocando na igreja próxima, anunciavam a meia-noite.

Feliz Natal!

Caminhei até a janela e ergui a taça num brinde silencioso, antes de engolir tudo num único gole. Os clarões coloridos dos fogos iluminavam a rua nevoenta, e não conseguia avistar Connor, vindo através dela.

Era triste pensar, que mesmo depois de tanta dedicação e carinho em todos os detalhes, nada do que planejei deu certo; e deveria esperar mais um ano para a próxima ceia novamente. É claro, que amanhã, almoçaremos juntos na casa dos meus pais, mas não é a mesma coisa. Só queria que Connor chegasse logo, e me desse um longo beijo de boa noite.

O sono já estava vindo, minhas pálpebras estavam ficando pesadas.

“Espero que tenha uma boa explicação para me dar, Sr. Connor!” – resmunguei comigo mesma, enquanto eu juntava o lixo da cozinha.

Quando saí para a rua, senti um frio danado. Cortante. O vento gelado passando pela minha nuca, empurrando os flocos grudentos de neve no meu rosto e cabelos.

Em algum lugar, alguém cantava Silent Night. O vento espalhava o eco dessa música por toda parte, ecoando o coro do seu canto. Acompanhei a melodia, cantarolando em voz baixa. Mesmo sozinha, eu continuava encantada pela magia que esse momento representava.

Coloquei o saco de lixo dentro da lixeira. Enterrei o pé na neve. Ainda levaria um tombo com isso... Entrei em casa, olhei para ceia ainda sobre a mesa, intocada, apesar de eu ter bebido toda a garrafa de vinho.

Mesmo triste comecei a guardar os talheres, os pratos, a colocar a comida no forno, para quando ele chegasse.

Sentei no sofá em frente a árvore natalina que montamos (apesar dele ter quebrado quase todos os enfeites mais delicados), e eu ter que comprar tudo de novo; o resultado foi perfeito. Bonita, brilhante e cheio de presentes embaixo dela.

Foi quando uma lágrima quente rolou no meu rosto, que percebi que estava chorando. Respirei fundo e parei inquieta, novamente na janela olhando a rua. A neve estava parado de cair. Connor ainda não estava vindo.

“Se existisse uma forma de localizá-lo, poderia me tranquilizar… As estradas cobertas de neve e escorregadias eram perigosas…” — pensei.

Adormeci sentada no sofá. Não sei o tempo que permaneci dormindo, mas sentia dores no pescoço quando acordei. Mesmo começando a pensar mil e uma possibilidades pelo seu atraso: um acidente, um pneu furado, falta de gasolina, a estrada interditada pela neve, uma amante ou um assassino com um machado; decidi esperá-lo deitada na nossa cama. Ao menos era mais aconchegante. Não diminuiria em nada minhas preocupações, mas afinal, a cama era mais quente do que o sofá.

Apaguei as luzes da sala, deixando aceso apenas o pisca-pisca da árvore e das guirlandas, que iluminavam intermitentemente.

No quarto, liguei o aquecedor na tomada e tirei minha roupa. Vesti minha camisola e meu roupão, tão brancos como os lençóis da cama, e deitei sentindo o colchão frio.

Percebi que o vinho já começava a fazer efeito e me senti um pouco confortável com isso. Virei para a parede, a fitando como se fosse um projetor de imagens; passando os meus pensamentos inquietos.

Acordei com o barulho na porta do quarto, se abrindo lentamente. Se Connor tivesse me ouvido e colocado o óleo lubrificante nas dobradiças, eu não teria acordado com a sua chegada.

O barulho no quarto silenciou assim que a porta foi fechada. Era provável que ele não queria me acordar. Talvez porque não quisesse interromper o meu sono ou mesmo temendo uma discussão. Fiquei calada e com os olhos fechados, fingindo dormir pesadamente. Ao menos uma coia boa: não senti cheiro de bebida no ar, tampouco o cheiro de algum perfume adocicado e vulgar.

Continuei imóvel ouvindo os sons dos seus passos arrastados pelo assoalho. Seus gemidos de cansaço. Minha vontade era de me virar na cama e pular e seus braços, o beijando. Mas ainda estava muito magoada, e preferi continuar com o meu teatrinho de Bela Adormecida; esperando pelo beijo de boa noite que não recebi.

Se começássemos a conversar, acabaríamos por discutir; e eu não queria uma briga na madrugada de Natal.

Quando ele deitou ao meu lado, senti o seu corpo afundando na cama, agora macia e quente. Mantive-me quieta, sem mover nenhum músculo. O quarto agora parecia mais frio, um ar gelado vindo de algum lugar. O som do seu corpo se arrastando sobre os lençóis brancos, se aproximando de mim.

Um arrepio percorreu todo o meu corpo nesse momento, porque quando ele tocou nas minhas costas, seu corpo estava gelado. Gelado de ter caminhado sob a neve, vindo da rua. O calafrio gostoso que senti, me deixou ais protegida. Connor estava comigo, finalmente, deitado na nossa cama.

Connor poderia ter domado uma ducha para se aquecer, ou tirar a sujeira e neve assim que chegou; mas não o fez. Continuava deitado de conchinha nas minhas costas, com o seu corpo gélido, seus pés enregelados tocando nos meus que estavam quentinhos.

A mão dele subiu tocando os meus braços, até enlaçar na minha cintura, e pousou fria alisando o meu ventre. Sua respiração pausada no canto do meu ouvido e pescoço provocou outro calafrio.

Sentia o seu hálito, seu bafo gélido na minha nuca, fazendo os pelinhos ficarem em pé. Então seus lábios tão gelados como a neve, tocaram o meu cangote e deram um beijo ávido; arrancando um pequeno gemido, que estava escondido no fundo da minha garganta.

“Feliz Natal, meu amor!” – pensei ter o ouvido sussurrar, como uma voz dentro da minha mente.

E assim, adormeci entrelaçada ao seu corpo frio; na madrugada natalina, fria e silenciosa.

O meu coração disparou e parecia que ia saltar pela boca, quando despertei assustada com o som do telefone tocando e ecoando dentro do quarto. Estava ao lado da minha cabeça, no criado-mudo.

Sonolenta, tateei com os olhos semicerrados, para atender a extensão telefônica, cuja campainha tocava insistentemente.

Meus dedos primeiro tocaram o porta-retratos, com nossa foto vestidos de noivos e cortando o bolo do casamento, e sem querer o derrubei, fazendo com que se quebrasse.

Connor continuava frio ao meu lado, sentia seu corpo pesando no colchão ao meu lado, nem se moveu com as chamadas estridentes do aparelho, que não parava de tocar, num tom de sinistra urgência.

Levantei meu corpo, me apoiando no cotovelo. Tirei o fone do gancho. Achei que fosse minha mãe, ansiosa e perguntando que horas chegaríamos para o almoço. Mas não era minha mãe. Daria tudo nesse mundo pra que fosse ela, no outro lado da linha.

“Alô! Sra. Gamble? Kendra Gamble?” – perguntou uma voz grossa do outro lado da ligação.

“Sim, eu mesma!” – respondi entre um bocejo e outro.

“Aqui é do Hospital Louis Creed! Lamentamos informar, mas precisamos que venha para cá agora… É urgente!”

Sentei na beira da cama. Meu sono pareceu desaparecer num passe de mágica.

“Connor Gamble, sofreu um grave acidente! Seu carro foi encontrado e chamaram a emergência. Lamentamos Sra. Gamble, mas ele já estava morto quando foi encontrado, estava preso entre as ferragens...”

O fone escorregou da minha mão trêmula e caiu sobre os estilhaços do porta-retratos.

Não podia ser verdade.

Tinha que ser um sonho.

Só então me dei conta…

Foi o maior susto da minha vida.

Virei minhas costas devagar, em estado de torpor. Olhei para a cama onde eu estava dormindo até poucos minutos atrás.

Comecei a gritar como uma louca. Senti minhas pernas perderem a sustentação.

Caí sentada ao lado da cama, tomada pelo desespero mais agoniante, que jamais conseguiria descrever.

Entre gritos e soluços de desespero, o coração batendo na boca (como se fosse saltar para fora), o gosto da bile amarga na garganta, não consegui me segurar e comecei a vomitar sobre o assoalho, e nas minhas próprias pernas.

Connor não estava lá.

Não havia ninguém deitado na cama ao meu lado. Ninguém!

Os lençóis brancos no lado da cama de Connor, estavam desfeitos, como se alguém estivesse deitado ali. O travesseiro amassado. Todo o seu lado da cama, tinham o exato contorno de uma pessoa.

Estavam sujos de sangue o travesseiro e o lençol, e haviam pegadas ensanguentadas no assoalho, que vinham desde a porta fechada do quarto, e terminavam ao lado da minha cama.

FIM

Escrito em 30/03/2018 e 31/03/2018 (curiosamente, na Páscoa).

Amigo Leitor,

Espero que tenha gostado do conto acima.

Solicito que após a leitura, deixe nos comentários o seu feedback, pois ele é muito importante para mim.

Agradeço sua visita,

Abraços!

Rangel Elesbão
Enviado por Rangel Elesbão em 11/08/2018
Reeditado em 12/08/2018
Código do texto: T6415747
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