ELE SABE 2

"Ante a faca erguida na mira das suas costas, ela encara o início do que todos eles terão de encarar mais tarde. Em seu último pensamento, ela se pergunta se a cada um está reservada a mesma sorte. Arrependimento, enfim. Dúvida, como sempre. Uma certeza, no entanto. Nos olhos do homem, o anúncio que proclamava sua morte iminente: ele sabe."

[SEGUNDA PARTE]

É certo que falharam em algum ponto decisivo. Do contrário, alguém deve tê-los enganado. Se não, alguma tarefa não foi concluída –, ou a concluíram de forma equivocada. Ocupar-se destas ou demais teorias não os valeria de nada, no entanto – já que uma delas por si só se sobrepunha a qualquer uma de suas suspeitas:

Todos serão punidos, logo, todos são culpados.

Embora soe absurda, a premissa condiz precisamente com as circunstâncias que a evocam. Pesa-se sobre elas as particularidades repugnantes de um feito moralmente hediondo. Não por acaso, nenhum dos sete acusados ousaria contradizê-la – tampouco se prestariam ao papel de negá-la. Seria desnecessário até mesmo testá-la. Afinal de contas, não há o que ser refutado. Sobre toda suposição pairava um fato: todos são culpados.

Nem todos eles se importam, mas há um que acaba de ser convencido.

Marcus observa o corpo de Alessia sendo drenado em quase toda sua totalidade. As mãos se apoiam uma em cada lado do batente. De cabeça baixa, os olhos vasculham o ambiente contra sua vontade. Às suas costas, a entrada estreita do apartamento; seu posto, o centro de uma imagem emoldurada. A sua frente, na extrema esquerda, a sala vazia – isolada em sua permanência estática. Tão impecável, ela lhe parece pavorosa. Tudo nela continua em seu lugar, apesar da ausência irrevogável da vida que antes a fazia útil. Ela jamais poderá mudar a posição dos móveis. Se algum novo elemento acabara por se mostrar uma alteração desastrosa, melhor que ela a tenha superado: não haverá mais como desfazê-la. Caso ele mesmo decidisse por intervir no arranjo, este que agora mesmo avalia com pesaroso esmero, ela jamais saberia. As mesmas chances que ela teria de impedi-lo – permitiu-se conjecturar mais a fundo –, ela teria de terminar o que ficou adiado. Sua sala, e cada coisa nela, foi deixada para trás.

No fundo iluminado do canto, à direita, o ponto final da sua história. A cozinha também não parece muito desarrumada, mas esta – por sua vez – dá inquestionáveis sinais de uso. Assim como a sala, a morte da moradora encerra por completo a sua utilidade. No caso deste cômodo, no entanto, a mácula de um rio de sangue escorrendo lentamente pelos azulejos corrompe para sempre aquele que fora o propósito da sua existência. Aquilo nunca mais será uma cozinha. Qualquer pessoa que um dia souber do passado que esta casa carrega, saberá que este se trata – sobretudo – do local de um crime.

Ele se pega tentando prever onde será o seu leito de morte. Será possível que seu lar seja preservado? Talvez morrer em um lugar qualquer não o preserve de nada. Pode ser que assim seja, realmente, mas não se pode ignorar a morbidez atordoante de ter seu lar ensanguentado pelo fruto legítimo da sua própria morte. O fluxo da corrente já conduz o líquido espesso a encharcar o corpo e seus arredores; seus fios louros agora tingidos de vermelho. A pessoa que outrora caminhava e falava, ria e comia, morta sobre o chão da sua casa. Deitada assim, de bruços e petrificada, ela parece perder a altura estonteante que fizera de sua figura a de uma mulher invejada. Nem seu nome, nem sua beleza, valem de nada mais. Tudo o que fica agora é o segredo, e mesmo este já prestes a ser revelado.

Uma verdade o ocorre, de repente: eles não se amavam. Nenhum dos dois saberia dizer o que sentiam de fato, aliás, caso os perguntassem. Mais provável que o pecado de que compartilhavam fosse a única força a uni-los. Uma ligação de natureza suja, mas genuína. Importa-o apenas, porém, que – pelos poucos dias de vida que ainda o resta –, sentiria sua falta. Retirou-se da sua presença inútil, isentando-se com isso do dever de velá-la. Nem uma alma sequer daquele grupo valeria o esforço necessário. Não os cabia, de igual modo, o privilégio de estar de luto. Foi ela quem o alertara para esta máxima, certa vez, utilizando-se exatamente destas mesmas palavras. Antes de se livrar de qualquer indício de sua vinda, pronunciou em voz alta – uma última vez – o seu nome.