As Duas Faces

Anita despertou-se lentamente de um de seus sonhos bizarros, onde fugia de algo que não conseguia ver. Aos poucos abriu os olhos e acostumou-se com a claridade do quarto, lembrando-se que hoje tinha muitos afazeres em seu trabalho, até que levantou-se rapidamente quando percebeu onde estava: não estava em seu quarto, mas sim em um quarto onde parecia ser de uma ala psiquiátrica. O sol batia na janela, refletindo suas grades extremamente reforçadas e a cama de hospital. O quarto era todo branco, sem decoração alguma, exceto pela foto de um casal abraçado, de aproximadamente quarenta anos, que Anita não reconheceu.

- Merda, merda, merda, merda, merda! – ela falava consigo mesma – Onde é que eu estou?

Olhou ao seu redor e reconheceu um guarda-roupa comum. Abriu-o procurando por alguma pista que a explicasse o que estava acontecendo, mas encontrou apenas algumas roupas de moletom confortáveis, que logo percebeu que não eram suas e vários vestidos brancos desses de hospital. Ao remexer entre as roupas, encontrou uma calça de lã vermelha escuro, e logo se deu conta do que estava acontecendo.

Há alguns dias atrás, chegara do trabalho e abriu a porta de seu apartamento. Demorou um tempo até perceber que muitas de suas coisas estavam fora do lugar. Seu apartamento parecia revirado, mas sem sinais de arrombamento por lá. Ao entrar no banheiro, encontrou uma blusa de lã vermelha escura jogada na banheira. A blusa não era sua, mas precisava verificar. Ela demorou um tempo até perceber que a blusa na verdade estava toda manchada de sangue, já que a cor dela era praticamente igual ao do sangue que estava na mesma.

Rapidamente ela atirou a blusa de volta à banheira, soltando um grito de desespero. Alguém estivera ali e não era a primeira vez. Há algumas semanas que ela começou a reparar que as coisas em sua casa estavam fora do lugar. Um dos vizinhos chegou inclusive a reclamar do som alto de sua televisão em um dia em que ela não estava em casa, mas como seu vizinho é idoso, não deu muita importância.

Percebeu que demorara muito para ir até a delegacia e que agora tinha uma blusa manchada de sangue em sua casa. Se comunicasse à policia, poderiam achar estranho. E se aquele sangue fosse de alguém assassinado e ela fosse presa por um crime que não cometeu? Foi então que decidiu queimar a blusa e trocar todas as fechaduras de sua casa.

Ela voltou a si mesma e recostou-se sobre a cama. Pensou arrependida sobre não ter comunicado tudo à policia antes, pois aparentemente fora incriminada por um crime que não cometeu. Colocou as mãos sobre a cabeça, pensando em tudo o que estava acontecendo e percebeu em seu pulso, uma etiqueta de hospital: T. Agostina, quarto 34.

T. Agostina? Quem diabos é T. Agostina? Olhou para seu outro braço, e percebeu nele algo escrito com canetão, uma letra que não era sua: D. Oliveira, 302-t-47. Já estava entrando em pânico, quando a porta do quarto se abriu:

- Bom dia, Srta. Agostina – um enfermeiro de aproximadamente 30 anos, bem vestido, atraente e dos olhos azuis trazia consigo uma bandeja com um copo d’água e comprimidos.

- Eu... Onde estou? – Anita estava perdida e sentia-se enjoada.

- Você está no mesmo lugar de sempre, tome – ele entregou-lhe o comprimido e o copo d’água.

- Não, eu não posso tomar isso! – ela encolhia-se para o canto da cama.

- Srta. Agostina, não vamos tornar tudo mais difícil, sim? Tome o comprimido, você não quer voltar pra camisa de força igual na semana retrasada, quer?

Ela pensou por um momento: semana retrasada estava viajando à negócios em outro estado. Ontem mesmo estava deitada em sua cama, pensando na palestra que deveria dar hoje em seu emprego. Semana retrasada? Isso não é possível! Mas temendo entrar em uma camisa de força, ela pegou o comprimido e colocou-o debaixo da língua.

O enfermeiro sorriu pra ela e recolheu o copo:

- O café será servido em quinze minutos. Não se atrase.

Ele saiu do quarto e ela tirou o comprimido debaixo da língua. Jogou-o no ralo da pia que encontrava-se à sua esquerda. Tentou manter-se sã e calçou as pantufas de hospital que encontravam-se debaixo de sua cama. Sentindo-se em um filme de terror, Anita saiu para o corredor, onde percebeu haverem outros quartos com pacientes, alguns gritando, outros em camisa de força, e alguns enfermeiros pelo corredor. Desceu as escadas, sempre seguindo as placas indicando para o refeitório. Nele havia várias mesas compridas, com vários pacientes diferentes sentados à mesma. Ela encaminhou-se até a mesa onde serviam o café, pegou uma bandeja de plástico e um dos enfermeiros pouco amigáveis lhe serviu um copo plástico contendo um líquido laranja, um pão com manteiga já frio e uma maçã.

Olhou ao redor e percebeu que todas as pessoas a olhavam de canto, dando um jeito de ocuparem os espaços vagos nos bancos para que ela não pudesse se sentar. De forma estranha, Anita teve a impressão de que alguns lhe tinham medo, pois quando olhou para uma das pacientes à mesa, a mesma abaixou a cabeça e disse, quase chorando:

- Pode ficar com o meu pão, eu não ligo! – e levantou-se rapidamente da mesa, sentando-se em outro canto.

Anita observou a bandeja sem dizer nada e continuou caminhando por entre as mesas. Estava quase desistindo de tomar café, quando ouviu uma voz feminina lhe chamar:

- Agostina! Agostina! Aqui! – Anita olhou para o lado e percebeu uma mulher de cabelos castanhos, cacheados e maltratados lhe acenando e apontando um lugar ao seu lado. Sem muita opção de escolha, Anita encaminhou-se até ela e sentou-se ao seu lado. Era uma mulher de aproximadamente trinta anos, trajando um vestido igual ao seu e com várias cicatrizes pelo braço. Ela parecia animada quando Anita sentou-se ao seu lado.

- Eu sabia, sabia que tinha algo de diferente! – ela dizia rapidamente, de forma paranóica – Eles substituíram o nosso suco! Você também percebeu? Não é mais natural, mas eu já sei, eu já sei... – ela apontava loucamente para o copo plástico – eles colocaram aquele suco artificial pra economizar na nossa refeição e desviar verba, aaah, aquele filho da puta do diretor!

Anita observou em seu pulso uma etiqueta com os dizeres: F. Soares, quarto 57. Começou a comer seu pão calmamente, já que sua barriga parecia roncar de fome, e arrependeu-se de não pegar o outro pão que lhe foi oferecido pela paciente medrosa. Escutou a mulher ao seu lado falar durante quase dez minutos sobre como o hospital estava desviando verba para a NASA, e sobre sua teoria de que o diretor do hospital era na verdade, um alienígena disfarçado, pronto para dominar o planeta terra em sua primeira oportunidade.

- Você já reparou em como ele bebe água? – ela continuava – Exatamente, ele não bebe! Ninguém nunca o viu beber! Isso só pode significar que ele com certeza é um alienígena que não precisa de água. Como será que ele sobrevive? Hein? Agostina?

Anita olhava fixamente para os dizeres em seu braço: D. Oliveira, 302-t-47. O que seriam essas palavras?

- Agostina?

- Meu nome não é Agostina! – ela dizia calmamente, ainda olhando para seu antebraço.

- Aaaah – ela não parecia muito surpresa – Bom, o meu nome é Flora.

- Entendi. Escuta, Flora, eu acordei nesse hospital hoje, mas tenho certeza que fui julgada por um crime que não cometi! Eu preciso de ajuda pra sair daqui! Você precisa me ajudar!

- Sair daqui? – ela agora parecia com medo – Ah não, não... É impossível sair daqui! Já tentamos muitas vezes, não se lembra? Da última vez eu acordei em uma camisa de força, nunca mais vou tentar isso de novo, não...

- Que? Flora, escuta, eu cheguei aqui ontem e... – ela pensou melhor e percebeu o que estava acontecendo. Flora era muito amiga de T. Agostina, ambas planejaram a fuga onde somente Agostina conseguiu escapar, armando para que a pessoa encontrada fosse Anita. Ela tentou se lembrar como isso poderia ter acontecido, mas imaginou que os remédios que lhe deram ontem, pudessem estar afetando sua memória. – Espera. Sim, é verdade. É uma idéia maluca, não te colocarei mais nessa situação, me desculpe, Flora...

- Tudo bem – ela continuava, melancolicamente – Além do mais, eu acho que nós merecemos estar aqui, sabe? Eu, com toda essa mutilação, e você ter feito aquela coisa horrível... Não é à toa que as pessoas tem medo de você aqui.

- Coisa horrível? Que coisa?

- Você sabe, eu não quero te julgar, longe de mim, mas acho que esse foi o pior crime que alguém poderia cometer. Matar os próprios pais? Isso requer coragem e muito sangue frio!

Matar os pais? Anita era órfã desde muito pequena. Perdera seus pais em um acidente de carro onde ela estava junto. Saiu ilesa, exceto por uma cicatriz de aproximadamente cinco centímetros na coxa esquerda. Depois disso, fora criada por sua avó materna até conseguir se estabilizar na vida.

- Isso... Isso não é possível, escuta, eu não fiz nada disso!

- Aaaah, claro... Eu me esqueci, me desculpe, Anita!

- Ta, eu... Espera... Como você sabe que meu nome é Anita?

- O que? – ela parecia nervosa – você... você me disse...

- Não, eu não disse! – Anita estava extremamente nervosa e curiosa – Me diga, como você sabe?

- Eu... eu não sei, não sei de nada!

- É claro que sabe! E eu acho melhor você me contar agora! – Anita segurou-a pelo pulso. Em um movimento brusco, Flora soltou-se rapidamente e atirou a bandeja com suco para cima, chamando a atenção de todos e sentando-se em posição fetal no banco, abraçando os joelhos e balançando seu corpo para frente e para trás. As enfermeiras rapidamente vieram até o local e carregaram Flora pelo braço, que continuava a gritar e a arrancar fios de cabelos com as próprias mãos.

Outros funcionários vieram limpar o local e todos os olhares do refeitório recaíram sobre Anita. O enfermeiro que abriu a porta de seu quarto mais cedo, agora caminhava em sua direção.

- Srta. Agostina, já terminou o desjejum? Acho melhor tomarmos sua segunda dose – Ele segurou-a levemente pelo braço e ambos caminharam pela escada acima.

Os dois encontravam-se no quarto 34 enquanto ele a ajudava a se vestir.

- Não precisa – ela recusou a ajuda dele – acho que ainda me lembro como se veste uma blusa.

Ela continuou a vestir-se e ele lhe entregou outro comprimido. Era muito bondoso com ela.

- Eu não fiz nada pra ela – ela dizia. Ele a olhou sem dizer nada e continuou a procurar o outro comprimido – Ela teve um ataque quando lhe fiz uma pergunta. Você não vai me colocar na camisa de força, vai?

- É claro que não! – ele lhe entregava outro comprimido, mas dessa vez, verificou se ela o havia engolido.

- Srta Agostina, você precisa engolir. Não quero ser obrigado a usar a força!

Penosamente, ela engoliu o comprimido. Ele retirou-se do quarto e ela deitou-se, tentando esquecer de todo aquele pesadelo por alguns segundos.

Ao entardecer, ela sentia-se mais leve, porém mais atenta. Teve alguns flashbacks de sua perna sangrando, enquanto ela tentava inutilmente estacar o sangramento. Alguém lhe dava pontos na coxa esquerda enquanto ela gritava de dor.

- Estou tendo pesadelos acordada! Estou tendo pesadelos acordada! – ela colocou a mão suavemente no ferimento, que parecia agora estar latejando por conta do pesadelo. Desceu até a sala de estar do hospital e encaminhou-se até a prateleira. Escolheu um dos livros e sentou-se ao sofá para ler. Quando chegou à terceira página do livro, percebeu que já conhecia a história do mesmo e que provavelmente o lera no ensino médio.

Anita sentiu-se mal e nervosa por algum momento. Queria algo, mas não sabia o que. Então encaminhou-se para o jardim e lá, avistou um dos pacientes fumando um cigarro. Era isso. Ela queria um cigarro. Como era possível que ela sentisse vontade de dar um trago, sem nunca o ter feito antes? Ela estalou os dedos nervosamente e pensou em como abordaria a paciente para que lhe desse um dos cigarros de bom grado.

Quando havia terminado de preparar um diálogo em sua mente, avistou o enfermeiro que lhe cuidava sentar-se ao seu lado. O sol refletia em seus olhos azuis como reflete no oceano. Era muito bonito e muito gentil. Talvez pudesse lhe ajudar a sair de lá.

- Eu só estava...

- É isso? – ele tirou um cigarro de seu bolso e entregou à ela.

- É... Sim, uau! – ele lhe acendeu o cigarro e tirou outro do bolso para ele.

- Sem problemas, mas não conte pra ninguém, ok?

Ela sorriu e começou a tragar o cigarro. Deu algumas tossidas no começo, mas logo se acostumou.

- Aqui não é o meu lugar – ela começou a dizer, olhando para dois pacientes montando um quebra-cabeças no gramado – Sei que todos dizem isso e que posso parecer louca, mas aqui realmente não é o meu lugar.

- Sei que não, Anita.

Ela encarou-o nos olhos, surpresa. Fitou-o por alguns segundos e então desceu os olhos até o crachá do enfermeiro. D Oliveira. Demorou um pouco até que conseguisse dizer algumas poucas palavras:

- Você... Você sabe quem eu sou?

Ele levantou-se, jogou a bituca de cigarro fora e deu-lhe a mão em um gesto cavalheiresco.

- Venha comigo.

Eles passaram por alguns corredores e e desceram alguns lances de escada. Chegaram até um corredor vazio. Encontravam-se muito abaixo do piso térreo, sua curiosidade crescendo a cada passo.

- Você sabe quem eu sou? Você sabe que não matei ninguém? – eles continuavam a caminhar rapidamente.

- É claro que sei, você não seria capaz. Você é inocente de tudo.

- Então, você vai me ajudar a sair daqui? Você entregaria a verdadeira culpada? Eu não posso ficar aqui! Meu nome é Anita Santiago, eu tenho uma vida fora deste lugar, preciso voltar para o meu trabalho!

- Anita, acalme-se – ele a segurou gentilmente. Estavam em frente a uma porta de numeração 302 – Agora é com você. Vai encontrar todas as respostas lá dentro.

Ela olhou-o profundamente e consentiu. Não imaginou o que iria acontecer agora, mas sabia que algo ali dentro mudaria seu rumo para sempre.

- Ela está lá dentro? – Anita perguntava, com medo.

- Você está segura aqui. Agora vá! – ele lhe abriu a porta e ela entrou.

Encontrava-se dentro de uma sala escura e comprida. Ela tateou pelas paredes até encontrar o interruptor. A luz se acendeu e ela pode agora observar aonde se encontrava: era uma sala grande, com enormes prateleiras enfileiradas, que ela imaginou conter livros, mas logo percebeu que eram fitas. Estava em uma sala de vídeo.

Ela caminhou por um momento entre elas, imaginando se se encontraria com T. Agostina naquele momento, e um calafrio lhe subiu pela espinha.

- O que eu faço? Onde ela está? – pensava consigo mesma.

Andou por alguns minutos lá dentro, perambulando sem rumo e constatando que não havia ninguém além dela mesma lá dentro. Foi quando olhou de relance para seu antebraço, e viu novamente a inscrição D. Oliveira, 302-t-47, agora já quase apagada nele.

Percebeu que as prateleiras eram organizadas por ordem alfabética. Caminhou até a prateleira T e examinou-a. Nela, continham várias fitas, cada uma com sua numeração. Chegou até a fita de número 47.

Cuidadosamente, ela retirou a fita do lugar e examinou-a. Estava em uma capa preta, comum, apenas com o número 47 escrita em fonte média e branca. Olhou para o fundo da sala e reconheceu uma televisão e um aparelho de vídeo cassete. Caminhou até lá e colocou a fita no aparelho. Encontrou o controle, sentou-se no chão com as pernas cruzadas em cima da outra e deu play.

A fita começava com uma paciente virada de costas, com os cabelos loiros e lisos sentada em uma cadeira. Na sua frente, um médico vestido totalmente de branco, de aproximadamente cinqüenta anos. Não era possível ver o rosto da paciente.

- Paciente Tiana Agostina, quarto 34, dia 28. – o médico dizia olhando para a câmera – Algo que gostaria de compartilhar hoje, Tiana?

A paciente nada disse. Dez minutos se passaram e ele desligou a câmera.

***

Logo depois, o mesmo cenário. Dessa vez, a paciente estava na mesma posição, mas seu cabelo se mostrava um pouco mais maltratado que o normal.

- Paciente Tiana Agostina, quarto 34, dia 57. Tiana, há quase dois meses estamos em terapia. Como você se sente hoje?

- Com vontade de incendiar esse lugar de merda – ela respondeu secamente.

- Receio que não será dessa forma que vamos conseguir te ajudar.

- Você me perguntou como me sinto, eu contei como me sinto. Me sinto horrível, a cada dia que se passa, me sinto pior.

- Bom, é por isso que hoje, nós começaremos uma nova forma de terapia. Há quase dois meses estamos trabalhando nessa, e receio que não está dando resultados. Você gostaria de tentá-la?

- Adianta se eu disser que não?

O médico fitou-a por alguns minutos e depois desligou a câmera.

***

Novamente a câmera foi ligada, mas dessa vez, o médico e ela se encontravam em uma sala mais aconchegante, com um divã e alguns instrumentos de hipnose. O cabelo da paciente dessa vez parecia mais maltratado que o normal, e a raiz escura do cabelo de quase um palmo era vista claramente entre os fios loiros.

- Paciente Tiana Agostina, quarto 34, dia 77. Me conte sobre você.

- Me conte sobre você? – a paciente ria – Mais do que já contei? Você já sabe de tudo.

- Essa sessão é uma revisão – ele dizia calmamente – hoje daremos início à sua transformação. Me conte, desde o começo.

Ela deu um suspiro de cansaço, mas começou:

- Muito bem. Começou quando o conheci. Ele sabia tanta coisa, me entendia... Me entendia tanto! Mas não podíamos ficar juntos. Nossos pais não se gostavam, uma briga de gerações e gerações... – ela parecia querer chorar.

- Acalme-se. Tome o tempo que precisar.

Ela respirou por alguns segundos e retomou:

- Nós precisávamos fazer alguma coisa, foi quando ele teve a idéia. Iríamos esperar até o anoitecer, quando meus pais estivessem dormindo. E então entrei no quarto de fininho enquanto ele me esperava na sala. Primeiro esfaqueei o meu pai, e depois minha mãe acordou com os gritos de agonia dele. Foi quando ela pegou um canivete na gaveta ao lado pra se defender e acertou minha coxa esquerda. Sem pensar duas vezes, passei a faca em seu pescoço e a assisti agonizar até a morte.

- Como era a sensação?

- Era boa. Eu senti o sangue escorrer entre os meus dedos e o vi pintar o quarto todo de um vermelho escuro. Nunca me senti mais viva.

- Me conte o máximo de detalhes que se lembrar.

- Minha mãe usava uma camisola antiga e comprida, rosa. Meu pai vestia apenas uma bermuda velha, e eu... Eu usava uma calça preta e aquela blusa de lã, vermelha... Era um vermelho escuro que me lembrava o sangue que escorria na minha frente.

- O que você fez com a roupa que usava?

- Lavei-a na banheira de casa. Eu não podia levar pra lavanderia, senão a empregada encontraria o sangue. Eu mesma lavei e a guardei de volta.

- E quanto ao seu amante?

- Nós fugimos. Demos um jeito de nos livrarmos do corpo, mas não foi bom o suficiente. Logo a polícia estava atrás de nós e precisamos fugir. Até que me encontraram.

- O que aconteceu com ele?

- O que você acha que aconteceu com ele? Ele fugiu, seu idiota! – ela parecia muito brava – Eu assumi toda a culpa. Mas sei que ele vai me tirar daqui um dia, ah vai... Ele me prometeu que vai. Douglas...

- E você acredita nisso?

Ela ficava em silencio por alguns minutos, e depois partia para cima do médico. Ele chama os enfermeiros que lhe aplicam um sedativo e a colocam em uma camisa de força. A cena termina.

***

Logo, a cena volta para a mesma sala aconchegante. Dessa vez, a paciente era quase irreconhecível. Seu cabelo já estava quase inteiramente preto e ondulado, e ela encontrava-se em uma camisa de força, aparentemente dopada.

- Paciente Tiana Agostina, quarto 34, dia 162. Agostina?

- Quem? – ela falava com certa moleza, parecia fraca.

- Me conte sobre seus pais.

Ela demorou um pouco para que conseguisse raciocinar.

- Meus... Pais? Eles... Eles estão mortos? – ela parecia não ter certeza do que falava. O médico assentiu.

- Como eles morreram?

- Eu... Assassinados?

- Não, não... Vamos lá, pense! Como eles morreram?

Ela demorou mais que o normal para responder, até que falou:

- Acidente. Acidente de carro.

- Exatamente... Acidente de carro. É, foi uma perda e tanto! – o médico mostrava uma falsa piedade. – Como você conseguiu a cicatriz na sua perna?

- Eu... Não me lembro...

- Vamos, se esforce... Como foi que você conseguiu a cicatriz? Você não quer voltar pra solitária novamente, quer?

Ela parecia ao ponto de chorar, quando ao final respondeu com alívio:

- Foi no acidente! No acidente de carro! Eu me machuquei...

- Oh sim, você se machucou sim... Mas não se preocupe, nós vamos lhe cuidar!

Ele dirigia-se em direção à câmera e a pegava com as mãos. Virou a câmera em direção à paciente e filmou-a enquanto ela chorava de cabeça baixa. Então gentilmente, ele colocou as mãos no queixo dela e ergueu sua cabeça. A moça de expressões tristes olhava para a câmera com olhar de piedade.

- Não se preocupe, nós vamos cuidar de você! – ele repetia – Qual é mesmo o seu nome?

- Anita. – ela dizia, chorando – Anita Santiago.

*****

Anita pausou a fita e começou a chorar. De repente, começou a ter flashbacks de tudo o que lhe havia acontecido. Pegou um pedaço de papel que estava na sua frente e escreveu seu nome: Anita Santiago. Logo embaixo, escreveu outro nome: Tiana Agostina. Fez a ligação. Anita Santiago era um anagrama para Tiana Agostina.

Seu mundo caiu, ela sentia-se enjoada. Tomou coragem e voltou a dar play na fita.

A fita foi cortada, parecendo que alguém gravara algo por cima. A cena agora era de Tiana em frente a câmera, naquela mesma sala de vídeo. Estava agora irreconhecível, quase idêntica à Anita, não fosse por alguns fios de cabelos ainda loiros e pelo cigarro em sua mão. Ela sentou-se em frente a câmera e começou a falar:

- Anita, Anita, Anita... Minha própria farsa! – ela acendia o cigarro – Se você estiver assistindo isso agora, é porque já descobriu o que fizeram comigo. Eu sei que é difícil aceitar, mas eu estive aqui primeiro. E preciso do meu corpo de volta. Há alguns meses atrás, Douglas reapareceu em minha vida. Ele deu um jeito de voltar ao hospital como enfermeiro, e está me ajudando a recuperar a minha sanidade. Não foi fácil no começo, quando não o reconheci. Até hoje tenho certa dificuldade, mas com o tempo tenho algumas lembranças e me recordo mais facilmente. A questão é que, o Doutor Valdomiro, aquele mesmo que me tratava, implantou em mim outra personalidade. Acreditei por um bom tempo que me chamava Anita, e me esqueci completamente de quem verdadeiramente sou. Mas agora, tudo vai mudar, e você sabe por quê?

Ela deu uma pausa dramática e acendeu outro cigarro.

- Porque nós conseguimos matá-lo. Ele não revelou à ninguém o tipo de terapia que estava fazendo comigo. Somente quem sabia era eu e Douglas. É por isso que poucas pessoas, fora a Flora, me conhecem ai dentro pelo nome de Anita. Mas não se preocupe, não é sua culpa... Você foi criada para me substituir, mas eu já estou de volta. Somos apenas uma. Você pode não acreditar por enquanto, mas irá. Embaixo do tapete da sala de vídeos, tem uma coisa pra você. Procure-a.

Anita tateou embaixo do tapete e encontrou um papel. Era a fotografia em seu quarto, mesma fotografia, exceto que esta não estava cortada. Embaixo do casal abraçado, Anita conseguiu se reconhecer quando era criança, sorrindo para a foto. Começou a chorar.

- Aos poucos, Douglas vai nos ajudar a reconstruir a nossa memória. Fique do lado dele. Todos os dias há alguns meses, você está sendo redirecionada pra essa sala, à assistir essa fita. Com mais alguns meses de lembranças, seremos apenas uma novamente!

A fita acabou e Anita viu-se sentada no chão, ainda olhando para a televisão na sua frente. Sentiu que alguém a tocava gentilmente em seu braço. Era Douglas, que a havia esperado lá fora, como o havia feito todos os dias desde que a descobriu lá dentro do hospital. Ele gentilmente pegou um canetão e reforçou a escrita em seu antebraço: D. Oliveira, 302-t-47. Ele delicadamente passou os dedos pelo ferimento em sua coxa, e ela sentiu novamente que estava segura.

- Eu vou te tirar daqui, meu amor! – ele lhe dizia, olhando-a nos olhos.

- Eu sei que vai! – ela realmente sabia.

Os dois se beijaram lentamente, lembrando-se de como planejaram tudo de forma perfeita, e do quanto se amavam. Ele lhe subiu o vestido e ela abriu-lhe o zíper. Ele começou a penetrá-la enquanto ela gemia de prazer, ao mesmo tempo em que chorava de emoção. Suas lembranças agora se misturavam e era difícil dizer qual era sua realidade, mas sabia que em pouco tempo aquilo acabaria. Logo em seguida, acenderam um cigarro e ficaram ali abraçados, por um tempo.

*****

No dia seguinte, ela acordou com a mesma etiqueta no braço.

- Quem demônios é T. Agostina?

Seus pensamentos foram longe e ela imaginou que deveria ter ido antes até à polícia. Fora incriminada injustamente. Em seu antebraço, a inscrição D. Oliveira, 302-t-47 podia ser lida.

O quarto abriu-se e um enfermeiro atraente, dos olhos azuis, adentrou ao mesmo:

- Bom dia, Srta. Agostina. Hora da sua medicação. Dormiu bem?