Kingdom Park
01
O Guarda-Chuva Branco
Vejo uma mulher caindo do céu e ouço seu grito agoniante. Já assisti a esse pesadelo algumas vezes. O relógio acusa 02h57min/ am. Bate um forte vento, que descobriu metade do meu corpo enquanto dormia, a janela está aberta e as cortinas obedecem à brisa fria, quase congelante. Sento na beira da cama e meus pés ainda não tocam o chão, porém um pouco mais sinto um leve choque do solo rígido. Encontrando o equilíbrio, corro e tranco as janelas perturbantes, nunca se sabe quando o perigo lhe fará uma visita. Fecho as cortinas e o meu quarto escurece ainda mais. Parece que o frio ficou e agora se ouve as janelas pedindo outra chance. Deitei outra vez.
03h42 min/am. O sono não voltou. Corpo pesado. Persisto.
– Cansei! - Com pouca voz, disse a mim mesmo.
Em um longo bocejo, novamente me levanto. Me inclino e com água nas mãos lavo meu rosto, em seguida, olho os meus olhos avermelhados no espelho, a pele incolor e delicadamente amortecida. Um apático me encarando. O que está olhando? Pensei.
Na verdade, depois de tudo que aconteceu já não sinto muitas coisas.
Com duas meias em cada pé, mais por velho hábito, sento-me na poltrona mais aconchegante e mais próxima. Não diria que é uma sala de visitas, se parece mais com uma bagunça organizada de um escritório. Na prateleira, se apertam vários livros de todos os possíveis gêneros, contudo os romances se destacam em quantidade. Não é meu preferido, na verdade agora nem suporto mais, mas, Samantha é como uma escrava. Fascinada. Deve ser a causa de ser tão, tão, tão amorosa.
Lembro-me de quando nos conhecemos. Eu estava com dezenove anos. Um dia bastante chuvoso com fortes relâmpagos e trovões que como uma máquina fotográfica queriam registrar aquele momento. No vendaval, eu pude vê-la pela primeira vez. Com um vestido preto escorrido, corria o mais rápido possível desviando-se das poças, e nas pontas dos pés com cuidado para não escorregar. Doce! Muito delicada e sensível. Antes que ela encontrasse uma cobertura eu a surpreendi com um guarda-chuva branco, sobre a cabeça. Olhou para cima e antes mesmo que olhasse meu rosto ela agradeceu de forma educada, pois um tanto fria.
– Obrigado. Isso já não é necessário. - Dizia isto pois já estava encharcada, e seguiu seu caminho. Calei-me e a persegui com o guarda-chuva ainda sobre sua cabeça.
– Moço, já agradeci. Não é necessário! - Repetiu e desta vez olhou em meus olhos.
– Então talvez visto que a chuva já lhe alcançou, não precisa mais correr, não acha?
– Só estou à procura de um abrigo. - Disse áspera.
Insisti e lhe constrangi: – Já encontrou!
Percebi, escondido um sorriso frágil. Sorte seria se chovesse para sempre. Assim, ficamos debaixo do mesmo guarda-chuva por apenas vinte e dois minutos e meio. A chuva parou e ela correu!
Por alguns, dias eu passei à procura daquela moça de cabelos longos e pretos, e a pele bem clara. Simples. Magnífica. Estranhamente cativante. Desisti! Decidi não voltar mais. Será que Sam fugia de mim ou apenas essas ruas e praças não faziam parte de sua rota diária? Não sei. Só decidi esquecer tal encanto.
Chego em casa e, como um vício, pego uma xícara de café, forte, amargo e altamente quente, afinal estávamos em um inverno severo. Subo as escadas até a melhor parte do meu dia. No sótão, com certeza muito peculiar da minha identidade, uma sala de artesanato e pintura. Na parede deixei uma pintura mal acabada de uma paisagem, com uma árvore em um penhasco, no galho mais alto um balanço com cordas desfiadas, vegetação pálida, alguns urubus famintos e o pôr do sol para trazer luz a uma paisagem falida que atravessava uma roda gigante. Com as manchas de tintas por toda parte, os quadros e pincéis espalhados, materiais minuciosos e ferramentas de artesanato no chão, nas mesas e prateleiras, com toda certeza me identifico e sei que esse é o meu lugar.
Minhas obras, meus quadros contam histórias reais, por isso, pintei um quadro com o título: O Guarda-Chuva Branco. Estava fazendo um passeio “artístico” com um lápis de desenho e uma caderneta que na primeira página estava uma dedicatória que me trouxe nostalgia: “Ao meu amigo e quase filho, o menino de poucas palavras.” Busquei uma nova paisagem, cena que me trouxesse inspiração. Poucos minutos após sair de casa, começou a chover. Eu não havia levado um guarda-chuva então, corri, obviamente afim de permanecer seco. De repente percebo que o teto mais próximo mesmo assim está longe. Quando sobre minha cabeça apareceu um guarda-chuva branco e uma voz calma dizendo uma frase solo: – Já encontrou! - Sim! Era aquela moça chamada Samantha. Ainda com receio - uma forma de proteção - todavia, estava ali por vontade própria. Parece ter vindo buscar algo... ela esqueceu alguma coisa? Eu sabia que aquela seria a pintura mais importante e satisfatória de toda minha vida. A chuva parou e ela ficou!
Dentro de três anos, nos casamos. Conheci sua irmã mais nova, Lara, e seu pai. Sua mãe falecera quando Sam tinha quatro anos. Ela nunca conseguiu vencer por completo a falta da sua mãe. Aprendeu a sobreviver, mas mesmo assim eu fui avisado pelos psiquiatras de que Sam tinha pequenas tendências a depressão. Tivemos um grande amigo, Oliver e logo nasceu nosso filho Estevão. Todos com frequência nos visitavam e fazíamos várias refeições e eventos juntos. Mas, confesso que não tenho mais forças para contar toda a "bela história de romance de nossas vidas".
Vou lhe mostrar agora minha história de romance. Não é um sonho, não é o clichê... É Samantha Kee!
Eu amo minha esposa. Incrível, dedicada, muito estudiosa e esforçada. A sua culinária era irresistível. Organizada no nível exato. E além de esposa uma mãe fabulosa. “Sinto falta!” Entretanto, no tempo em questão, eu não compreendia só sei que existia um vazio dentro de si, nunca foi rabugenta, mas sempre insatisfeita com algo e um medo excessivo, doentio de me perder. Por muito tempo, por amor a ela, eu vivi sua rotina. Por onde fosse, queria que eu a acompanhasse e ainda sim queria algo mais. Não obstante, nem ela sabia a resposta. Chegou um tempo em que o choro era incessante, dentro do nosso quarto trancada dias e dias e o consolo do seu marido, pelo qual era obcecada, já não lhe atendia mais. Ali, certamente estávamos em crise. Começamos a frequentar psicólogos, psiquiatras, grupos de apoio, igrejas e tudo que nos parecesse a solução. Nada! Nada! Nada serviu para cura.
Seus longos cabelos começaram a cair, as pontas dos seus dedos sangravam por culpa de um cacoete novo de roer as unhas e além. Quando uma pessoa começa a morder os próprios dedos acho que é hora de dopá-la. Feridas por todo corpo, insônias e já não se alimentava. A família achou melhor que para o bem de todos, inclusive de Samantha, seria o internamento em um hospital psiquiátrico. Eu relutei! Não poderia permitir que minha esposa fosse para um hospício. Hoje me arrependo. Talvez fosse melhor.
Em uma noite de lua fraca e frio aborrecedor como de praxe, encontrei-a cantando uma música mélica. Me senti em um filme de terror, ou em alguma história de Stephen King. Bizarro! Chorava ininterrupto, onde se engasgava entre o soluço e a expiração. Sentada no chão com as pernas cruzadas e mãos trêmulas.
– Estevão volte para o seu quarto agora! - Gritava Sam.
– Filho. Não chore, está tudo bem. Papai está aqui. Volte a dormir, volte a dormir filho. - Cochichei mansamente, levando-o de volta ao quarto.
– Papai...
– Fique tranquilo. Mamãe está um pouco doente. Ela vai melhorar! Agora durma, Estevão. - Chamei-o pelo nome para que ele percebesse a seriedade e sentisse segurança. Quando voltei, a sala estava vazia. No andar de cima, ouvi barulhos, provavelmente um quadro caiu. Subi mais depressa, acreditando que Sam estava lá. Não havia ninguém além do gato do vizinho, Bobby, tedioso e macabro, que de vez em quando nos visitava sem avisar. Passei por todos os cômodos da casa. Sam já estava no quarto deitada, respirava fundo, parecia ter se acalmado e até adormecido. Deitei leve para não incomodá-la e levei cerca de dez minutos para dormir. Logo, acordei outra vez e ainda estava escuro. Senti muita dor no peito. Percebi que o lençol estava com muito sangue e ainda estava quente. Levantei assustado e preocupado com Sam, mas minhas pernas falharam e não pude manter-me em pé. Olhei em volta, gritei com a voz rouca e lutando com a respiração:
– Samantha! Samantha!
Vi a luz do banheiro acesa e rastejei até a porta e lá estava Sam dentro da banheira toda ensanguentada, seus cílios molhados e os olhos irritados. Mais uma vez cantarolando, chorando, mas agora, com um sorriso suave de como se estivesse aliviada e satisfeita.
– Meu amor. - Continua, com a voz inconstante. – Agora está tudo bem! Ficaremos juntos para sempre. Finalmente encontrei a cura... Já encontrei abrigo. - Terminou Sam, levantando o guarda-chuva branco, manchado de vermelho. No chão e encostado na parede, próximo a banheira estava um punhal escorrendo sangue e em suas mãos uma caixa feita de madeira toda trabalhada, branca e prata com pedras brilhantes. Eu podia ouvi-lo dentro da caixa. Ele ainda estava vivo. Mantinha seu ritmo e estava mais acelerado do que nunca...
Samantha havia roubado meu coração.
Apaguei...
2
Paralelo
Essa poltrona tem um cheiro de mofo de café. Como sei disso? Derrubei café uma vez e Sam ficou furiosa comigo. Não fiz nada... Preferi assim. Sinto falta! Falta de farejar. Falta de salivar quando sentia o cheirinho de torta de ricota com frango e requeijão, ou brócolis com molho branco e bacon... Culinária "La Chefe Samantha Kee". Sim. O sabor era divino! Paladar? Visão? Olfato? Tato? Audição? Não sei. Eu não imaginei que seria assim. Pensei que a partir daquele dia minhas pálpebras ficariam coladas para sempre, pela primeira vez eu colocaria um paletó metido a chique - odeio roupas sociais -, iria morar dentro de uma caixa do tamanho do meu manequim e cantariam hinos fúnebres com misto de lágrimas e flores. Engraçado... Em vez de descansar em paz, simplesmente acordei, mas agora completamente diferente. Sam não me ouve mais, não me vê, não me sente... Aos poucos os meus sentidos se distanciam... Minha família, meus amigos, minha vida estão desaparecendo. Ainda vejo alguns flashes. Flashes? Para que? O que posso fazer com isso? Nada.
– Ei Viktor. Nada de surpresas esta noite. - Disse o Malabarista, com traje a rigor bordô escuro. Alto e magro. Com os cabelos brancos penteados para trás como um empresário riquinho, mas sem a maleta preta e sem dinheiro. Às vezes com uma cartola de veludo amarelo-mostarda. Alguém tira essa coisa da cabeça dele! Confesso que é bem presente e bonito, embora seja bem esquisito.
– Não sei do que está falando. - Fiz-me desentendido.
– Sem disfarces, desmaios ou fugas. - Deu como se fosse uma ordem, retirando a cartola.
– Não me importo. Vai tirar um coelho da cartola? - Larguei as palavras e tentei mudar de assunto de forma agressiva.
– Você precisa aceitar o que aconteceu, Viktor. Não! Eu não sou um mágico ou algo do tipo...
– Faz uma mágica pra mim? - Provoquei.
– Viktor...
– Tranque as portas e sele as janelas, para que eles não entrem. Desse jantar eu não participo.
– Desculpe Viktor! Você não tem escolha. Todos vamos na reunião do porão e entregaremos a caixa.
Essa já era a terceira reunião. Três homens de máscaras brancas são os responsáveis. Fazem de tudo para apunhalar meu coração. Eles querem a caixa branca e prata de pedras brilhantes. Por favor, não deixem que executem essa crueldade. Serei exilado... Para um céu? Um inferno? Um limbo? Não faço idéia. Só deixe-me ficar. Ainda amo minha esposa e filho. Eu amo! Está bom assim. A cada flashe eu sobrevivo outra vez por mais alguns segundos... É pouco, mas é meu!
A caixa eu escondi. E isso vai ficar assim! Essa é a única forma de eu existir... Mesmo sem visão, tato, audição, paladar e olfato para o mundo real, pois os sentidos estão em perfeito estado para o mundo dos mortos... Agora faço parte do mundo dos mortos... Paralelo.
3
Puxe Uma Cadeira
– Sente-se. - Ordenou o Malabarista.
– Boa noite senhores. - Cumprimentei, com um sorriso de homem educado.
– Mais uma vez na reunião do porão. O assunto em questão deverá ser decidido hoje, sem objeções. Os registros são imutáveis, portanto, o que uma vez for decretado não haverá anulação. Está aberta a seção. - Disse o Rei, com as barbas que varrem a poeira e roupas semelhantes a de um mago.
– Viktor, está na hora de aceitar. Queremos lhe ajudar. E se nos entregar a caixa você voltará a ter paz. - Disse o Máscara 1.
– Haaaa! Eu já tenho paz.
– Viktor. Você não compreende? Nós lhe daremos vida outra vez.
– Sim Vik... Agora não parece, mas assim será melhor. - Disse a mulher com poderes de vidência. Lembro-me de quando ia a um parque com meu pai. Lá, conheci a Madame Cassandra, uma mulher forte e robusta de uns cinquenta anos, com os cabelos enrolados que pareciam ser queimados pelo sol. Um batom vinho fazia sua boca parecer maior e um rubor nas bochechas nada atraente. Na verdade, a única coisa em comum entre elas é uma intuição sobre o futuro... que sinceramente, eu nem acredito nessas coisas, pelo menos, não agora. Algo nesta mulher traz lembranças de Sam. Com certeza ela tem postura e carrega uma beleza muito maior que a Madame Cassandra.
– Vida? - Repeti, desacreditando.
– Esse lugar tem um odor diferente. Algo está fedendo e aposto que é aquele coração apodrecido. Por favor, acho que já não devemos ser tão flexíveis. Viktor Kee, seja maduro! Vamos lá, você sabe que chegou a hora. E se não nos der, nós vamos encontrá-lo. - Falou firme o Máscara 2.
– São os ratos!
– Do que está falando?
– O... Oo cheiro ruim que você disse. É. São os ratos. - Respondi me lembrando de manter o controle. - Se eles procurarem não vão encontrar... Eu acho.
Toc toc toc.
– Que barulho é este? - Perguntou o Rei.
Bam bam bam bam...
– O que tem ali dentro?
– Esperem! Não sabemos o que tem aí dentro. - Gritou a Vidente.
Com as duas mãos tocando o rosto da Vidente, revelando intimidade, o Malabarista diz: – Acalme-se. Não importa o que estiver lá dentro eu prometo que ficará lá!
Uma espécie de medo consome a reunião, mas a curiosidade nos provoca. A verdade é que eu sou responsável pela criatura que habita lá... Deveria ficar lá dentro, pois ele sabe onde está a caixa... Facilita o fato de que é mudo, entretanto acho bom mesmo que não esteja à vista. Suas mímicas são perigosas e possuem mais potência do que um grito.
Na fechadura foram lerdos, com medo e prevenidos. Ao abrir a porta foram ligeiros, de uma vez só e num só puxão o menino mudo cai no chão, totalmente amarrado em lençóis. Uma mordaça de camiseta - Mas ele não é mudo? - bem apertada lhe deixa marcado.
– Quem é esse? - Questiona surpreso, o Máscara 3.
– Ai meu Deus! O que aconteceu? Você está bem? Quem fez isso com você meu amor? - Desesperada e em prantos, a Vidente se esquece de qualquer postura e rala os joelhos tentando libertá-lo do emaranhado.
No rosto do menino está claro que já suportou muita dor, está aí, talvez a causa desse seu silêncio eterno. Na pergunta da Vidente, basta um olhar do menino mudo, o Malabarista voa como um urubu faminto e sem pensar, suas mãos me sufocam. De fato ele aperta minha garganta sem dó... Parece mesmo que quer me matar:
– Louco, louco, louco... Homem sem coração! - Berrou o malabarista.
Cof, cof...
– Solte-o agora! Agora! - Salvou-me o Rei.
Cof, cof, cof... Estou tentando me recompor. Vamos lá, Viktor... Inspira... Expira... Inspira... Expira. – Tem razão! Sou um homem sem coração. - Fiz questão de reafirmar.
– Vik. Por favor! Estamos cansados. O que está acontecendo com você? Entregue a caixa. Você será livre. - Ainda no chão, a Vidente, com a voz chorosa e o menino nos braços me comove, mas, não permito.
Todos agora estão mudos. O silêncio mostra um certo cansaço. É horrível! Os máscaras estão em um canto qualquer junto com os ratos e as tralhas de porão, assustados. O Rei está assistindo ao rancor sem palavras do Malabarista, que por sua vez, está sentado, mirabolante em algum plano que com certeza me envolve. E a Vidente consolando o menino com uma canção no seu ouvido e um leve balanço que o acalma.
Essa cena tenta me condenar, me culpar, mas, não me deixo levar. Agora não é hora de fraqueza. A quem quero enganar... Esse silêncio todo está me corroendo.
Nesse deslize eu corro! Subo as escadas como se fosse saltá-las sem pisar degrau a degrau. Vou de um extremo ao outro, no meu cantinho que agora está desativado, meu ateliê. Tranco a porta e me isolo até que desistam de suas conspirações maléficas. Ainda ouço alguns resmungos e murmúrios, já devem ter subido ao térreo. Não é possível compreender. As palavras não chegam aqui. Uma armadilha?
Deve ser isso. Chegamos em um tempo crítico. Nunca imaginei que o Malabarista, o Rei, a Vidente e o Menino mudo me deixariam só. Traição! Agora estão do lado de lá?
Você não lembra? Foi você, Malabarista, que me ensinou a viver nesse mundo calo... O Rei me acolheu como um pai... A Vidente me alegrava e de uma forma suave e macia me fazia lembrar de Sam... E o Menino mudo me implorava para contar alguma história e isso, me trazia a dor da ausência de Estevão... uma dor atraente. Uma dor que me fazia sorrir.
Você lembra? Foi você, meu amigo Malabarista... Que a dez minutos atrás tentou me matar!
4
Kingdom
– Inspire! Quando eu contar até três, você solta o ar bem devagar e aperta o gatilho apenas com a ponta do dedo. 1, 2, 3! - Ensinou como um bom soldado.
Pow!
– Você não aprende, não é?! Você é igual sua mãe, uma decepção para mim, não serve para nada. - Repreendeu-me quando não acertei no alvo, que me faria ganhar algum brinquedo. – Você é um fracassado!
Acho que algumas crianças não querem virar um soldado. Mas, entendi a mensagem a respeito do fracasso. Caminhamos pelos corredores de barracas e brinquedos gigantes da alta temporada do famoso parque Kingdom. Meu pai logo me deixou em qualquer lugar e foi conversar com um sujeito mal-encarado que usava um macacão sujo que estava escrito o nome do parque. Esse traje maltrapilho era o uniforme do pessoal da manutenção. Sinceramente, andar sem meu pai era um alívio. Para uma criança, um parque pode significar diversão e terror. E não estou falando isso só por causa da “Hell’s Mansion” que era um brinquedo tradicional com um trilho escuro com alguns relâmpagos de zumbis, fantasmas e caveiras. Digamos que existem outras coisas que nos assustam, e eu acabei as conhecendo de uma forma um tanto cruel. Quando eu fiz oito anos, minha mãe conseguiu um emprego na sorveteria do parque. É por esse motivo que toda vez que não conseguia algo eles resolviam com uma taça de sorvete de morango com menta. O lado bom de ser o filho de uma funcionária é que tinha um passe livre para os brinquedos, entretanto, nas barracas para ganhar os prêmios, eu tinha que pagar e disputar como qualquer criança. Me admirava com os talentos de um homem, que manipulava objetos com destreza. Ele transferia sua cartola para minha cabeça e passeava pelo Kingdom me equilibrando em seus ombros e jogando cinco “pinos de boliche” para cima. Geralmente esse tipo de artista não faz parte da equipe dos parques e sim dos circos, mas a verdade é que Kingdom fazia de tudo para entreter o público, visto que existem parques como Disneyland Park ou Beto Carreiro World. Meu pai, me levava todos os finais de semana para aquele lugar mágico. Naqueles dias eu não imaginava que Kingdom me acolheria e me ensinaria a sobreviver.
Na parte infantil, no final da tarde começava o espetáculo de teatro de vinte minutos com intervalos de dez, que se repetiam por umas quatro vezes em dias de pouco movimento. Quando Kingdom lotava, era no mínimo doze apresentações e sem revezamentos de atores. Eu sei disso, por que ao final de cada drama eu tinha acesso aos camarins, e foi assim que eu conheci o senhor Antony. Ele era um ator de setenta e dois anos e ainda sim, parecia muito jovem. Já não tinha muito cabelo e usava umas roupas com cheiro de naftalina, mas sem dúvida, era o homem mais sábio daquele parque. Além disso, era um ótimo contador de histórias. Na peça oficial, ele interpretava um rei, e nos contos que eram só para mim, ele me deixava escolher seu personagem. O famoso ator me deu um caderno de folhas limpas, um tipo de diário para desenhos, e disse que eu deveria criar minhas próprias histórias sem limites imaginários. Nessa oportunidade, comecei minha jornada nos rabiscos. Podia passear sozinho e explorar o gigantesco Kingdom. Com exceção da Hell’s Mansion e os brinquedos muito radicais, por que eu tinha medo e a minha idade não permitia. Na frente dessa mansão do inferno, existia uma tenda formosa e cheia de pedras penduradas enfileiradas do topo ao chão. Alguns sinos dos ventos, bambus e penas, um cheiro muito doce, as vezes até uma fumacinha, e algumas coisas desconhecidas para o mundo infantil, que até hoje não sei para que servem. Em um cartaz maçante tinha uma mulher que escondia seus cabelos em panos e estava escrito “Madame Cassandra... Esqueça o passado, resolva o presente e descubra o futuro.” Achei engraçado, como alguém poderia saber sobre as coisas que não aconteceram ainda?! Espiei por uma fresta que descobri enquanto cercava a tenda. Vi alguns objetos estranhos e o cheiro era ainda mais intenso. Tinha duas cadeiras vazias e um pássaro que um tempo depois eu soube que era um corvo.
– Entre garoto! - Disse uma voz do além. – Entre!
Esperei em silêncio, sem mover um músculo, quando no buraco em que eu olhava apareceu um rosto.
– Aaaaa!!! - Pulei para trás, num grito, do qual depois fiquei com vergonha.
A senhorita riu de mim e estendeu a mão em sinal de ajuda. Vi nos seus punhos muitas pulseiras cheias de símbolos e nas partes aparentes do seu corpo, muitos desenhos. Fiquei curioso. Era diferente ver que uma pessoa não desenhava no papel.
– Como é o seu nome? - Perguntou-me, forçando a sentar na cadeira perto do corvo.
– Vik... Viktor. - Respondi com dificuldade e ela sorriu.
– Não fique com medo! Eu já vi você correndo por aqui. Finalmente veio me visitar. Com certeza você é filho de algum funcionário. Não se preocupe, menino. Eu sei que essa tenda lhe arrepia a espinha, mas acredite, aqui é um bom lugar para se esconder. Deixe-me ver sua mão!
Cassandra era obscura, vidente e cigana, mas como ela mesmo diria: “Possui um espírito de protetora e uma alma de águia”.
– Huum... seu pai é um homem cruel e você é um artista! Cabelos longos de uma jovem. - Com os olhos fechados franziu o cenho como se tivesse com dor. – Uma sala pequena com um portal de aço... e... e... - No crocitar do corvo junto com a trilha de um temporal, a madame se livra muito rápido sem terminar a sessão. Um pouco distraída, com as mãos inseguras pegou uma xícara de chá de camomila e maracujá e me serviu. Em seguida, se ajoelhou em minha frente com muito amor, e eu percebi que seus olhos estavam carregando um fardo. – Escute Vik, você é um bom rapaz! Em sua aura há ternura, e como um guerreiro terá que enfrentar veredas tortuosas.
As luzes do parque já estavam se apagando e não existiam mais filas para os brinquedos. Os portões de castelo de Kingdom Park já estavam fechados. Com certeza, eu perdi a noção do tempo e não faço ideia de como isso aconteceu. O temporal parecia piorar e o vento fazia os grandes brinquedos gemerem. Percebi que era hora de ir, quando ouvi um grito de uma mulher como se fosse um alarme de despertar. Corremos para fora da tenda e não vimos nenhuma alma viva, ou morta.
– Acho melhor você esperar aqui, Vik. - Disse a madame, que parecia saber de um futuro ruim.
Resolvi obedecer a ordem, mas neste instante mais um grito ecoou. Agora, Cassandra pegou um guarda-chuva branco e sabia exatamente onde estava o perigo. Esqueceu que eu era uma criança, e andou apressada para o sinal. Eu a segui na chuva e me deparei com uma mulher nas alturas da roda gigante. Eu era inocente, mas podia sentir que aquilo não parecia brincadeira. Em um relâmpago, que pareceu ter durado uns dois segundos a mulher pulou, e de surpresa o homem malabarista me puxou de forma muito agressiva para tapar os meus olhos e me virar de costas para o corpo voador. Mesmo assim, eu a reconheci... me sacudi com força e corri até minha mãe. Eu não consegui ver seu rosto, pois já não existia uma parte do seu corpo no lugar. Tudo o que vi, foi o sangue se espalhando depressa como uma tinta vermelha e grossa. Eu abracei o que parecia uma boneca sem face. O homem mais uma vez me puxou sem dó e tirou os meus pés do chão para que eu não pudesse correr. A madame estava em choque e apenas chorava. O senhor Antony, correu para pedir ajuda quando o brinquedo começou a girar. Logo, os banquinhos do brinquedo romântico estavam funcionando, a comando daquele homem de macacão que estava na cabine, onde se controla o brinquedo. Mas, não era esse homem que me chamou atenção. Do topo, desceu uma criatura... Eu vi o rosto do meu pai pela última vez! Ele estava armado e saiu do brinquedo como um psicopata maníaco.
– Vik. Menino imprestável! Eu disse que sua mãe não era uma boa mulher. Aceite que ela nunca foi uma boa mãe, também. Agora, ela ficará em paz e eu vou seguir meu caminho. Não seja covarde. Venha aqui se despedir do seu pai. - Gritou para qualquer lugar, pois não sabia onde o homem havia me escondido.
Mesmo a distância, eu pude receber sua última mensagem. Nunca mais ouvi falar do meu pai.
Virei um menino mudo. E até os dezoito anos de idade morei em Kingdom. O malabarista, a vidente e o rei se tornaram minha família.
5
Portal de Aço
De um jeito monstruoso, a maçaneta circular da porta está sendo sacudida. Eles ameaçam arrombar. Eu já não tenho para onde fugir. Eu poderia pular da única janelinha que tem no sótão... ninguém morre duas vezes. Antes, eu preciso pegar a caixa que está atrás das prateleiras que suportam algumas tralhas de pintor. Após algumas latas de tinta eu encontro uma pequena porta... quem dera fosse um caminho para o País Das Maravilhas... sem maçaneta, apenas um pequeno pedaço da parede que se abre. Lá está a caixa. O meu coração está violento como se quisesse ter um corpo para desempenhar sua função de latejar compulsivamente. No canto do cofre tem algo brilhando. É o punhal. Sam, deve ter lavado e guardado aqui.
– Viktor. Você não tem para onde fugir. - Disse calmamente um homem com uma máscara hospitalar enroscada nas orelhas e abaixo do queixo. Este personagem eu ainda não conheço. Está vestindo roupas sociais e não parece querer me atacar, pelo contrário, descansa as mãos nos bolsos.
– Vocês não vão pegar a caixa! - Falo firme, sem perceber que estou apontando o punhal em sinal de guerra.
– Viktor, meu filho. Você precisa abaixar essa faca. - O Rei tentou apaziguar enquanto um a um entravam na sala.
– Senhor Antony, não vou machucá-lo.
– Viktor. Eu não sou o senhor Antony e muito menos um rei.
– Você precisa ver a realidade! - Disse o Malabarista. – Eu também não sou um malabarista.
– Vik... - Chamou-me a atenção a voz carinhosa e chorosa da Vidente. – Por favor, querido. Olhe a sua volta e veja onde chegamos.
– Eu sei, Cassandra, eu sei. Só não entendo porque eles querem o meu coração... - Falei com mais humanidade, para que lembrassem que estamos do mesmo lado, e confuso com a faca no meu pescoço.
– Papai... - Correu o menino mudo, sem medo do punhal, e envolveu seus braços no meu corpo colocando sua orelha na minha barriga como se quisesse escutar um coração.
Papai... Quando ouvi o menino me chamar e me abraçar eu senti o contato humano, o calor do corpo frágil do meu filho, Estevão. Eu senti amor. Senti de novo alguma coisa pulando dentro do meu tórax. Um coração de carne que voltou a respirar! As escamas dos meus olhos caíram e de uma forma surpreendente e dolorosa reconheci o rosto do meu amigo, Oliver, o Malabarista que foi como um irmão órfão, Lara, a Vidente que me protegeu e o pai da Samantha, o Rei que foi o conselheiro. Caí de joelhos em frente a caixa que carrega um coração. Um fedor de carniça pairou no ar enquanto eu abria. Os psiquiatras distribuíram máscaras e todos ficaram em silêncio, esperando o luto tomar conta de mim. Deixei cair uma lágrima que se uniu ao sangue seco e pareceu uma gota viva. Na minha mente nada faz sentido. Uma turbulência me incomoda dizendo que pareço meu pai, com palavras duras: “Você não é uma boa esposa” ou “Você é inútil, prefiro ficar sozinho...” Naquela noite de lua fraca e frio aborrecedor, Sam já estava dormindo. Eu me deitei para acompanhar e acordei mais uma vez na chacoalhada daquele pesadelo de uma mulher gritando. Eu pensei em pedir desculpas para Sam, apesar de saber que ela já não era mais a mesma. É como se eu tivesse lhe contaminado com um vírus sem cura. Mesmo que eu pedisse perdão, seria difícil trazê-la de volta. Quando me virei a favor, senti sua falta. A luz do banheiro estava acesa e com enrosco na garganta gritei pelo seu nome e não fui correspondido. Levantei com muito frio, e lá estava Sam, dentro da banheira de sangue com o punhal fincado na barriga. Me aproximei como culpado, e não soube o que fazer com tantos furos que já havia feito em seu corpo. Foram várias vezes que a lâmina penetrou que algumas parte já estavam rasgadas como uma boneca de pano. Seus olhos estavam me olhando friamente e sua pele estava tão branca que acredito que todo seu sangue escorreu pelo ralo. Me senti como “Hitler” que incitava sentimentos de depressão e suicídio em suas mulheres. Me senti como aquele soldado que matou minha mãe. Em cima, no armário do espelho, tinha uma caixa branca e prata que Sam guardava algumas joias. Pensei em guardar uma joia valiosa para mim... Eu não empurrei a minha esposa de uma roda gigante, entretanto não demonstrei o quanto a amava.
– Meu amor. - Falei, chorando de forma selvagem. – Agora está tudo bem! Ficaremos juntos para sempre. Finalmente encontrei a cura... Já encontrei abrigo. - Rasguei a única parte que ainda estava intacta. Eu podia ouvi-lo... ele ainda estava vivo. Mantinha seu ritmo e estava mais acelerado do que nunca...
Eu roubei seu coração!
Olhei em volta, como Lara havia pedido e senti uma dor no peito muito forte. Essa é prova de que ainda tenho um coração de carne, pelo menos, por que o meu coração de alma ficou naquela caixa. Me rendi! Entreguei a caixa e permiti que me levassem a sala do hospital psiquiátrico... A sala com o portal de aço.
Apaguei...