O QUARTO (versão Ela disse)
*Esse texto contém a mesma trama apresentada originalmente no texto O QUARTO (publicado em 27/05). Nesse apresento a versão da outra personagem narrando os fatos contados na históriia.
Sempre desejei minha morte. Sei que é assustador ouvir isso de uma criança, mas é a verdade. Nunca fui feliz. Cheguei a pedir varias vezes a Deus para que me libertasse desse mundo, sobretudo depois que papai me tocava, porém Ele parecia não ouvir minhas preces. Talvez também não entendesse Libras ou estivesse ocupado demais olhando qualquer outra coisa. Pedia também para ser uma criança normal e quem sabe assim ser amada de verdade pelos meus pais. Meu nome é Estefânia, fui abusada e fui surda. Agora finalmente estou morta.
A morte trouxe-me uma nova compreensão dos fatos que vivi e que não eram assimilados por minha imaturidade. Trouxe-me ainda autocritica para analisar e questionar: Como tudo poderia ser diferente? Por esse motivo faço dessas linhas um confessionário, não para expiar minha culpa, mas para justificar os meus atos. Sei que não sou inocente.
Acho que tudo seria diferente se eu não fosse surda. Minha surdez foi congênita, ou seja, nasci assim. Penso que no inicio mamãe me amava, ao menos antes de dar-se conta de que eu seria uma decepção, ou ainda, um fardo sempre a lembra-la de que não deveria ter bebido durante a gravidez. Nisso sou inocente, surda devido a ela ser uma alcoólatra e não o contrario.
Éramos pobres e morávamos num casebre que mais parecia um barraco. Eu, meu pai, minha mãe e irmão. Eu era feliz e me achava normal. Isso ao menos até Jackson, meu irmão dois anos mais novo nascer.
Quando Jack nasceu que me dei conta do quanto estava enganada. Eu não era normal e claro teria inúmeras limitações para me fazer entender por toda a vida. Senti que o amor que me era ofertado logo trocou de dono. Como não amar Jack se ele ouvia e falava? Até eu o amava. Ele era tão pequeno e inocente. Sobrou pra mim o lugar de aberração da família como tantas vezes mamãe me fez lembrar. Estou me adiantando aos fatos. No inicio ela me amava e não bebia todos os dias, mas acho que contribui para piorar o seu vicio, principalmente depois do que fiz com papai.
Embora Jackson e eu sermos irmãos não tínhamos uma relação próxima. Ele era um menino que gostava de coisas de menino e eu tinha inveja dele e também ele tinha muita dificuldade para compreender os meus sinais. Ele gostava de ver desenhos na TV enquanto comia bolachas com leite. Eu ficava isolada. Como podíamos conversar se ele não tirava os olhos da TV? Pra mim aqueles desenhos eram apenas imagens coloridas que eu não conseguia entender. Sem som e sem legenda pra mim era o mesmo que sem compreensão. Por isso enquanto ele via os desenhos eu preferia ficar no quarto, deitada na cama ou brincando com minhas bonecas. Mamãe já não me dava tanta atenção e ficava arrumando alguma coisa na cozinha ou paparicando o filhinho ouvinte dela. Ela ainda não bebia com tanta frequência.
Papai trabalhava a noite. Primeiro foi metalúrgico, depois trabalhou numa indústria têxtil, numa fabrica de refrigerantes e muitas outras que se sucedeu em poucos anos. Ele também bebia; razão pela qual não parava muito tempo no mesmo emprego. Quando chegava pela manhã e entrava no quarto para dormir na cama do meu irmão (era o quarto mais fresquinho da casa, segundo mamãe dizia na época) eu saia de minha cama e ia me aconchegar junto dele. Papai era carinhoso e eu ainda não tinha medo dele. Eu gostava de sentir o ronco subindo e descendo pela barriga dele. Eu ainda era inocente. Logo isso mudou e passei a desejar a morte.
Com sete anos deixei de ser inocente. O homem entrou no quarto e trancou a porta. Eu brincava com uma boneca Barbie sem braço e descabelada, mas parei a brincadeira assim que ele me chamou “Vem deitar aqui com papai”. Intui que algo nele estava diferente, mas não hesitei, afinal era só o pai que eu amava me pedindo pra fazer algo que sempre fiz de modo voluntario. Larguei minha boneca e fui me deitar junto dele. Em alguns minutos ele passou a tocar no meu corpo de um jeito estranho, um modo que não deveria eu já podia instintivamente saber, embora ninguém tivesse me dito que aquilo era errado. Ninguém tinha paciência para dar atenção a uma menina surda. Fiquei assustada, mas deixei. Depois do acontecido sai do quarto chorando e fui pro quintal atrás de mamãe. Ela estava com uma garrafa de cachaça na mão, me lançou um inesquecível olhar de desprezo e falou: “Finalmente seu pai conseguiu. Agora você é a putinha dele. Já não é mais uma aberração”. Sim, ela sabia mas nunca fez nada para me defender. Eu a odiava por isso.
Penso que homens como meu pai precisam de mulheres fracas como minha mãe e eu para se sentirem fortes. Recorrem inclusive à violência. Inúmeras vezes eu vi isso e enquanto eu tinha cada vez mais nojo do homem, seu corpo largo e peludo, mais ele era violento com minha mãe e consequentemente mais ela bebia e menos comida tínhamos em casa. Entramos num circulo vicioso. Um pacto de silencio, medo, violência e cumplicidade. Éramos minha mãe e eu duas iguais: mulheres fracas e vulneráveis aquele homem. Em vez de nos unirmos passamos a nos ver como rivais. Uma luta desigual e injusta de quem suportava mais tempo.
Jackson era o único inocente. Eu não podia contar para uma criança de seis ou sete anos o que o nosso pai me obrigava a fazer. Eu também era só uma criança e ainda fazia xixi na cama. Eu era infeliz e já desejava a morte, entretanto passei a usar a situação a meu favor. Meus pais viviam me lembrando de que eu era uma menina sem importância, burra, surda, pobre e que nunca conseguiria nada na vida. A esses adjetivos mamãe ainda acrescentava puta e aberração para rebaixar ainda mais minha autoestima. Falavam e eu acreditava, então que chances eu tinha? Como poderia ser diferente? Se era através do sexo que eu conseguiria alguma coisa e um pouco de atenção, precisava aceitar meu destino e foi o que fiz. Vivia uma guerra silenciosa em casa e buscava sobreviver mesmo que ironicamente desejasse o fim de tudo aquilo. Minha mãe se agarrou a Jack e as bebidas como tabuas de salvação e extraoficialmente passei a ser a verdadeira mulher de meu pai.
Gostaria de dizer o contrario e que ficava feliz por meu irmão não fazer parte daquela podridão toda, mas acredito que nenhum ser humano é assim. Estando afundando num mar de lama não olhamos com compaixão para aqueles que estão enxutos num barco. Eu já tinha inveja dele por não ser surdo e por ter o amor de minha mãe. Tinha uma relação ambivalente com ela de amor e ódio que nem mesmo conseguia entender; portanto não achava justo que somente Jack permanecesse inocente. Fui egoísta, mesquinha e senti que precisava corrompê-lo com minha sexualidade para me sentir mais forte, menos suja e afetar também nossa mãe. Tentei inúmeras vezes, mas nunca funcionou. Sabia que Jack me odiava. Ele tinha uma violência represada por não saber lidar com as situações de nossa vida cotidiana. Sei que ele tinha alguns problemas de comportamento na escola. Como ele poderia ser diferente?
Ainda que visse meu pai como um mal necessário, eu tinha muito medo dele e do que poderia fazer comigo ou com minha mãe. Numa ocasião ele a agrediu na mesa simplesmente por ela se atrever a tentar repartir entre mim e meu irmão um pedaço de carne (esse era um dos meus ridículos privilégios. Um luxo numa casa cada vez mais privada de alimentos). Ele a puxou pelos cabelos e esbofeteou seu rosto. Era revoltante, senti ódio dele pela demonstração gratuita e desproporcional de violência, afinal era só um pedaço de carne. Enquanto a mulher e o menino aceitavam de cabeça baixa a humilhação e o absurdo da situação, ele me desafiava com o olhar intercalando a visão entre mim e a faca afiada em suas mãos. A ameaça estava velada. Deveria comer quieta o meu pedaço de carne.
Eu estava com quatorze anos quando aquele inferno em que vivíamos acabou. Finalmente Deus ouviu as minhas preces e mamãe agiu para acabar com a guerra entre nós.
Acordei numa tarde com um forte cheiro de gasolina na casa. Não tinha ido pra escola. Nessa época já vivia quase que exclusivamente a disposição dos desejos de meu pai. O homem deitado do meu lado dormia profundamente saciado pelo sexo feito depois que minha mãe trouxe para ele uma latinha de cerveja e para mim um copo de leite quente. Estranhei a gentileza, mas não podia prever que o ato era premeditado e que ela tinha posto sonífero nas bebidas. Era a única explicação, pois o homem não acordava. Por um descuido deixei meu copo cair e, portanto não bebi.
O cheiro forte logo se converteu em fumaça. Dei-me conta de que estava presa no quarto e que a casa ficava cada vez mais quente e abafada. Sim, era mesmo um incêndio. Eu estava sufocando e não podia gritar por socorro. As chamas devoravam o lugar e apesar de sempre desejar a morte não imaginava que sentiria tanto medo. Estava presa e talvez pagando pelos pecados dos quais não sou inocente. Presa para em seguida finalmente minha alma ser liberta.