O QUARTO (versão Ele disse)
Eu já fui inocente. Nessa época minha maior alegria era ficar em casa assistindo desenhos na TV enquanto minha mãe fingia que cuidava de nós. Eu tinha uma família com mãe, pai, irmã e morávamos numa casinha simples que eu chamava de lar. Eu achava que era feliz e não enxergava a maldade. Hoje não sou mais.
O pai trabalhava de madrugada e pela manhã eu era obrigado a fazer silencio, motivo pelo qual eu ligava os desenhos no volume mínimo para não interromper o sono dele. Estefânia, minha irmã surda, claro não ligava pra isso. Ela raramente assistia os desenhos comigo, ficava quase sempre no quarto esperando o pai chegar. Não sei se mamãe já via a maldade na época, mas o sono do homem era tratado em casa como algo sagrado e que nada, nem ninguém deveria atrapalhar, afinal ele trabalhava muito, sustentava a casa e merecia descansar – ela dizia. Por esse motivo o pai não dormia no quarto dele, mas no outro, o que eu dividia com a menina e que também segundo os dizeres de mamãe: “era mais fresquinho, pois não recebia luz direta do sol e melhor pra dormir”. Hoje penso que ela se esforçava pra acreditar nisso, mas sendo nesse tempo só uma criança de 6 anos que nada entendia da vida eu achava que o motivo pra ela ficar triste era porque não dormia direito a noite (tinha olheiras profundas) por ser obrigada a ficar no pior quarto da casa: pequeno e quente.
O homem chegava, fechava a porta do quarto e mamãe pegava uma das garrafas escondida em um dos armários e ia para o quintal beber e fumar enquanto eu assistia meus desenhos. Eu ainda era inocente.
Às vezes, mamãe esquecia-se de fazer o almoço e eu faminto tinha que cobra-la: “mamãe, eu quero comer”. Ela respondia meio chorosa: “pega uma bolacha, desgraça! E me deixa em paz”. Com o tempo deixei de cobrar e me acostumei com a fome. Eu me sentia culpado por fazê-la chorar por ter se esquecido do almoço e também já não adiantava muito, pois já não tínhamos bolachas. Nem sei se ela se dava conta, mas quase não tínhamos o que comer enquanto as garrafas se multiplicavam pelos cantos da casa.
Quando eu tinha 8 anos e a filha do homem 10, ele já tinha um familiar cheiro de álcool e também guardava suas bebidas pela casa, que por sua vez tinha um cheiro misto de mofo, azedo e mijo ao qual estranhamente também me acostumei. O pai quase não trabalhava. Eu não gostava dele na casa porque quase sempre brigava com mamãe.
Quanto a escassez de comida, muitas vezes eu só comia a merenda da escola. Eu adorava ir pra lá, era minha chance de comer, ficar longe de casa e de ter acesso aos livros que tornavam minha infância mais suportável. Estefânia não ia comigo, frequentava uma escola especial pra surdos durante a tarde. Éramos irmãos, mas vivíamos como dois estranhos. Ela não falava comigo nem pela linguagem de sinais que eu já entendia. Ela não conversava sobre nada, muito menos sobre o que acontecia no quarto. Isso só entendi alguns anos depois. Eu ainda era inocente.
O pai deixava claro que preferia que a menina comesse em vez de mim ou mamãe. Se ele chegava com um doce era só pra Estefânia, se ganhava uns trocados fazendo algum bico era pra ela que dava presentes. Lembro-me da vez que mamãe ousou repartir a carne (que já era um artigo de luxo em casa) entre mim e minha irmã e que ganhou do marido como recompensa um puxão de cabelo e um novo hematoma. Já eram comuns os hematomas no corpo da mulher, assim como as demonstrações de violência. Ele dizia pra qualquer um ouvir que ela apanhava menos do que merecia e que iria mata-la se um dia ela ameaçasse deixa-lo. Ainda hoje o machismo de tomar como posse uma mulher vulnerável é encoberto pela sociedade. Imagine antigamente. Nisso mamãe se resguardava num peculiar estoicismo, a menina meio que indiferente comemorava o pedaço a mais que lhe sobrava e eu desde esse dia nunca mais voltei a comer carne e passei a odiar a minha irmã.
Talvez a filha do homem fosse só mais uma vitima, se eu fosse mais racional provavelmente pensaria assim. Difícil dizer e julgar com a razão, estando tão envolvido emocionalmente com os fatos. O que sinto é que Estefânia com o passar dos anos deixou de ser minha irmã pra se tornar apenas a filha dele. Ela sabia do seu poder e manipulava isso, talvez como uma forma inconsciente de garantir sua sobrevivência em meio ao caos. Era a isso que tudo se resumia: pessoas unidas tentando defender a sua manutenção de poder. Mamãe tinha o direito e poder de fingir que nada acontecia no quarto e depois o poder para suportar as humilhações do marido e da filha enquanto enchia a cara de álcool. Eu tentando protege-la de si mesma, ser solidário à sua tristeza já tão parecida com a minha e poder suportar a convivência naquela casa; o pai demonstrando seu poder através da violência e Estefânia conseguindo o que queria durante o dia, dando a ele, à noite, o que ele queria. O sexo nada mais é do que uma forma de comunicação e demonstração de poder. A menina aprendeu cedo isso e tentava inclusive a mim, sem sucesso. Incesto jamais esteve na minha lista de pecados.
Com 12 anos deixei de ser inocente. Passava mais da metade do tempo na rua evitando ao máximo o inferno que já chamei de lar. Uma manhã mamãe pediu-me que comprasse no posto um galão de gasolina para queimar algumas coisas velhas e dar uma ajeitada no quintal. Claro que não desconfiei ou estranhei o pedido. Há tempos minha casa parecia um deposito de sucata com entulhos, ferro velho, latinhas e papelão tomando conta de tudo. Juntávamos essas coisas pra fazer uns trocados e ter ao menos o que comer. Estava satisfeito por não ser o único a ver a bagunça que era a casa e por ela se preocupar em finalmente arrumar aquilo tudo em vez de passar a tarde bêbada. Hoje ainda não sei dizer por que ela resolveu isso e não me sinto no direito de perguntar. Acho que toda pessoa guarda uma escuridão na alma que não deve ser tocada, pois somente ela é capaz de entender os próprios limites.
Cheguei da escola, que agora era à tarde, percebi o cheiro forte de gasolina se embrenhando em toda a casa como as garras de um monstro implorando sua liberdade para agir. Mamãe no portão dos fundos me esperava com duas malas e algumas outras coisas. Com uma caixinha de fósforos na mão ela me acenou. Eu imediatamente entendi sua intenção e intimamente sabia que o homem e sua filha estavam dormindo no quarto e que aquilo de alguma forma tinha sido premeditado por mamãe. Não podia permitir que ela fizesse aquilo. Não depois de tudo o que já sofreu. Tomei a caixinha de fósforo de suas mãos e selei meu destino. Risquei o palito, atirei sobre um amontoado de papel e aguardei as chamas destruirem o lugar. O monstro estava solto. A inocencia acabou.
Enquanto o fogo crescia, mamãe ao meu lado sorria e chorava num misto de alegria e tristeza. Era a chave pra sua liberdade e eles eram maus e deveriam pagar por isso. Morreram no quarto, talvez sem se dar conta de que ardiam como as chamas do inferno. Às vezes pessoas como nós só dispõem de uma caixinha de fosforo e um pouco de combustível para fazer justiça.
Em poucos dias a policia entendeu que era um incêndio criminoso e logo fui identificado como único responsável devido às câmeras do posto terem me filmado comprando o galão de 5 litros de combustível. Fui pro reformatório e tratado como um sociopata mirim que planeja a morte do pai e da irmã deficiente.
A opinião publica tomou a tragédia da menina surda com a compaixão que reveste a história de todos os deficientes. Eu era o monstro. Não me arrependo.
Eu tinha o dever moral de proteger mamãe e foi o que fiz.
Eu tinha uma família com mãe, pai e irmã. Agora não tenho mais.
Eu já fui inocente. Hoje não sou mais. (FIM)
P.S. Esse texto é a parte um da Trilogia "O quarto". Nos textos seguintes narro essa mesma historia dando o ponto de vista outros personagens.