DEZ NO TOTAL

De repente, um barulho sincopado parece misturar-se à melodia que lhe chega pelos fones de ouvido. Imediatamente, ele diminui o volume, retira os fones e concentra-se nos sons que vêm de fora do alojamento, mais precisamente dos fundos do edifício. Apura ainda mais a audição e identifica um barulho metálico, uma repetição de pancadas que ora aumentam, ora diminuem a frequência e o volume, vindas, ao que parece, dos fundos do edifício.

“Será que é do xadrez mesmo que elas vêm?”, é a primeira dúvida que lhe ocorre, enquanto acostuma a visão à escuridão do recinto.

No começo parecem tímidas, mas logo vão se tornando mais ousadas e estridentes. Ato reflexo, tira a arma de debaixo do travesseiro e a destrava, mas logo reconsidera, a recoloca no lugar e põem de volta os fones, desta vez sem retomar a música. Em seguida, tragado pela escuridão, deita-se e aguarda. As pancadas de repente vão diminuindo de intensidade até sumirem.

“Mas será que sumiram mesmo?” ele se pergunta, sentindo emergir de dentro do peito uma espécie de cólera, que não sabe de onde vem e contra quem ou o que se volta.

Vai pegando no sono à medida que o tempo avança e uma miríade de lembranças esparsas e desconexas tomam-lhe o espírito, até ser novamente surpreendido pelo barulho de antes, agora um pouco mais intenso. Tira os fones e senta-se na cama. Sente muito sono, embora os sentidos permaneçam aguçados. É todo audição, pode ouvir os ratos mastigando os restos de comida na copa e o som do vento açoitando as copas das árvores lá fora. Ao novo barulho, parecem misturar-se vozes. Tira novamente a arma de debaixo do travesseiro e a destrava; apesar de entorpecido pelo cansaço, está decidido a ir ao xadrez para ver o que está acontecendo e tomar as providências devidas. Contudo, ao levantar-se e calçar os tênis, volta atrás, mas não por medo; trata-se de convicção, da certeza de que tudo aquilo não passa de uma quimera, fruto talvez do excesso de plantões que é obrigado a dar para aumentar a renda.

Retira então os tênis e, ainda de meias, estende-se no colchão gasto, decidido a dormir ininterrupta e tranquilamente; tem certeza de que nada acontece naquele momento e, se vier a acontecer, estará pronto para reagir e pôr ordem na casa: é feito para situações como aquela, empunha uma semiautomática poderosa que é como uma parte do seu próprio corpo e desconhece o medo da morte. Se for para o céu (desconsiderava por completo a possibilidade de ir para outro lugar ao morrer) essa noite, mandá para o inferno quem cruzar a sua linha de tiro.

Está já entre o estado de vigília e o sono profundo quando ouve passos no corredor e sussurros em frente à porta do alojamento, a poucos metros de distância de onde se encontra.

“Mas será que há alguém prestes a entrar aqui?”, a pergunta ecoa dentro do cérebro recém acordado, porém apto a seguir com precisão todo o protocolo que a situação recomenda.

Pega novamente a arma, já destravada, e a aponta em direção a porta, quieto e frio. O cão da pistola está em posição simples, pronto para, a um leve toque no gatilho, deflagrar o disparo certeiro. Mas no instante em que se prepara para a reação, vem-lhe de novo a convicção de que está tudo sob absoluto controle, de que não houve barulho algum instantes atrás, assim como não há vozes próximas à porta do quarto, que aliás está trancada.

E novamente, sem qualquer resquício de medo a lhe turvar a alma e inundar de adrenalina o corpo jovem e são, dorme, desta vez um sono límpido, sem sonhos e sobressaltos, para só acordar horas depois, o dia já claro, interpelado pelo chefe da inspetoria que, entre desconfiado e curioso, questiona:

"Saíram todos, você não viu? Fugiu todo mundo, TODO MUNDO, está sabendo?"

Dez no total.

João Pegado
Enviado por João Pegado em 27/05/2018
Reeditado em 27/05/2019
Código do texto: T6347648
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