A ÚLTIMA PÁGINA DE UM DIÁRIO
Nunca imaginei que um dia me pediriam para visitar um lugar tão macabro para avaliar um imóvel maltratado pelo tempo, justamente este imóvel. Nem nunca me passou pela cabeça entrar neste local que me remete aos piores cenários tais quais fitas de Boris Karloff. Agora estou aqui, sentado nesta velha cadeira entre um monte de quinquilharias empoeiradas pelo tempo, absorto folheando um caderno velho que encontrei dentro de uma gaveta de um armário, boquiaberto com o que acabo de ler. Este espaço um dia habitado por anônimos agora exala abandono e horror. Ainda está gravado em minha memória o dia da chegada daquela família se mudando para esta casa.
Recordo-me que naquela manhã o meu sono fora interrompido por um roncar de motor e um barulho sem precedentes, pessoas falando e dando ordens põem aqui, carrega esse pra dentro, cuidado para não quebrar, bem debaixo da minha janela. Tudo aquilo me fizera acordar num sábado bem mais cedo que de costume. Olhei para o rádio relógio à cabeceira e ele marcava sete horas apenas.
Tentei tapar os ouvidos com o travesseiro, enfiei-me por debaixo dos cobertores, em vão, o alvoroço não dava trégua. Levantei-me, puxei um pouco a cortina e pelas frestas da veneziana pude vislumbrar um enorme caminhão baú estacionado sobre a calçada do casarão no outro lado da rua. Percebi que os carregadores se apressavam em tirar as coisas e rapidamente às transportavam para dentro, havia sinal que uma forte chuva viria imediatamente.
Após anos fechada aquela propriedade voltaria a ser habitada. Já nem me lembrava quem foram os últimos inquilinos do lugar.
O fim de semana transcorreu quase que tranquilamente, não fossem o movimento e o barulho das marteladas vindas dos vizinhos recém-chegados.
Pessoas discretas, para não dizer misteriosas, os novos moradores nunca se integraram aos demais habitantes da rua. Raras foram as vezes em que vi alguém entrando ou saindo, exceto uma velha senhora pela manhã regando o jardim, sempre acompanhada por um homem apoiado em uma bengala. Com o passar do tempo acostumara-me a ver debruçada na janela do casarão uma jovem mulher, rosto magro, branca como o algodão, longos cabelos loiros observando o movimento da rua, pela aparência devia ter vinte e poucos anos.
Dona Terezinha, a vizinha dissera à minha mãe que achava aquele pessoal muito estranho, todas às segundas, quartas e sextas, um homem com uma maleta desce do carro, passa horas lá dentro.
- Precisão absoluta da Dona Terezinha, teria ela um fofocrômetro? - pergunto à mamãe.
- Leozinho meu filho, dizem que o homem do carro é o amante daquela mulher que por vezes se debruça e fica horas com o olhar perdido na janela do quarto. Enquanto o tal home permanece na casa ela não aparece na janela. Aí tem cheiro de coisas ou não tem?
- Mãe, o povo fala porque gosta de falar.
- Ainda outro dia a Dona Inácia achou muito estranho quando um motoqueiro parou e deixou um pacote lá.
- Todos recebem encomendas.
- Não é o que a Elisete, a cabeleireira da esquina pensa, disse que pode ser entrega de drogas. Ela vê encomendas chegando todas as semanas, faça chuva ou faça sol.
- Como pode uma criatura saber tanto da vida alheia.
- Ela fica o dia todo no salão e de lá tem uma visão de primeira, ela sabe das coisas.
Não dei mais trela e sai para a luta. Afinal mexericos são coisas de Candinha, pensei.
Desde que nos mudamos para o lugar Dona Terezinha mora ao lado de nossa casa. Considerada a beldade do bairro sempre despertou os olhares furtivos dos garanhões de plantão. Mas o tempo judiou muito dela desde a morte de Jorge, seu único filho que cometera suicido ainda na adolescência. Eu era muito criança à época, mas trago na memória a fisionomia dele no caixão, foi a primeira vez que vi um defunto. Meu irmão sempre que podia me assustava dizendo que ele viria me buscar. Acho que os pesadelos que tenho vêm desde o acontecimento.
Ela enviuvou há uns quatro anos, o seu Reginaldo deixou uma bela aposentadoria e agora vive cercada de garotos. Sempre presenteia o meu sobrinho. Acho que ela está dando para ele e para um monte de moleques aqui da rua. Minha mãe a estima muito e fica brava comigo quando eu ou o meu irmão comentamos sobre o assunto e vai logo se justificando.
- Ela gosta de meninos porque ficou sozinha e agora quer compensar as perdas do filho e do marido.
Como sempre minha mãe pondera sobre tudo e arruma justificativas para preservar as pessoas.
Eu, ao contrário dela penso que essa gorda deve dar muito trabalho para os coitadinhos, mas o que eles querem mesmo são os mimos que ela oferece.
Dona Inácia é a típica mulher puritana que se acha uma santa. Talvez seja a maior referência do que representa o termo devota sem precedentes, dialoga entre as mais diversas denominações religiosas. Vive nas missas, nos cultos, nas sessões de espiritismo. Todo esforço é válido para ela proferir a fé. Adora tanto um homem de batina que o seu marido, o seo Cândido, só veste ternos pretos. Não mede sacrifícios para agradar um sacerdote, uma verdadeira carola, ratazana de sacristia, além de ser tremenda de uma fofoqueira.
Para parecer politicamente correta batizou os filhos homenageando cada personagem de denominações religiosas. Assim tem o Martinho Lutero, o Alan Kardec, o Jesus de Nazaré e o Abraão Isaque. Afirma que televisão é coisa do diabo, até concordo com ela em relação a alguns programas. Já brigou com todas as vizinhas da rua e quando quer reatar leva bolos para as desafetas. Uma coisa não posso negar, é uma confeiteira de mão cheia. Gosto quando briga com mamãe, no dia seguinte vem bolo na certa. Vive falando mal das filhas dos outros, mas nem passa pela cabeça dela que a filha mais nova, a Tereza de Calcutá, é muito dada com a rapaziada.
E o que contar da Elizete, solteirona inveterada sabe de tudo o que acontece. O seu salão é o maior canal de mídia da localidade, se a Elizete não deu, a notícia, é porque o fato não aconteceu. Gaba-se de ter sido a rainha de bateria de uma famosa escola de samba. Ainda conserva os traços de uma linda mulher e deve ter deixado muitos crioulos e loiros doidos pela linda silhueta.
Por uns tempos queria por que queria pegar o meu irmão. Este passou apuros, mas se livrou da donzela. Até mandinga encomendou para conquistar o rapaz. Um dia roubou uma cueca lá de casa e a levou para um pai de santo rezar. Sem saber a idiota pegou a cueca do meu pai. Até hoje ninguém sabe se o feitiço funcionou e se o velho pegou a tal ou se a tal o velho pegou. Quando soube do ocorrido mamãe não se conteve, riu como nunca. O velho morreu poucos meses depois do acontecido, mas foi de cirrose. Mamãe chorou como nunca.
Minha cunhada fica com ciúmes quando o Neno, meu irmão mais velho, vem em casa, ela sabe que a Elizete ainda dá mole para ele além de chamar minha mãe de sogra.
Passara-se quase um ano desde a chegada daquelas pessoas, e a desconfiança do povo, que não tem o que fazer só se acentuava. Com exceção do homem da maleta, ninguém mais visitava a residência. A rotina naquela casa era sempre a mesma, o casal pela manhã no jardim, a estátua da moça na janela, a maleta do homem e as motos com as encomendas.
Sempre que eu saia à rua uma sensação estranha me forçava a direcionar o olhar para a dama em seu posto tal qual uma guardiã.
Repetidamente sonhara o mesmo sonho, eu queria atravessar um pórtico alto em um lugar frio e escuro, quando tentava adentrar uma sentinela trajando branco me barrava. Noites após noites tive o mesmo sonho, a sentinela é a moça da janela, o seu rosto é indefinido, mas tenho certeza de ser ela. No sonho eu me transformo em um anjo alado e a carrego nos braços, voando por entre as nuvens.
Ainda numa bela manhã ao olhar para a janela tive a nítida impressão que a moça mandava beijos para mim. Bobagem, talvez estivesse apenas impressionado pelos contínuos sonhos. Numa tarde o imponderável aconteceu. Soube do ocorrido, toda a rua em polvorosa, Terezinhas, Inácias e Elizetes com olhares de abutres mirando os carros da polícia e o da funerária parados em frente ao casarão. Curiosos observam os corpos envoltos em negros sacos plásticos transportados no rabecão.
A mídia no dia seguinte solta o verbo, manchetes em profusão, “Tragédia em família”; “Mistério do casarão” entre outras notas sensacionalistas.
Parcas e redundantes informações traziam apenas que foram encontrados os corpos de um casal de idosos, de uma jovem mulher e de um homem de meia-idade. A polícia chegou ao local atendendo a um telefonema anônimo de uma mulher vindo da própria residência. Investigações preliminares da polícia e do IML trabalham com a hipótese de envenenamento coletivo. Trata-se de mais um mistério a ser desvendado pelas autoridades.
Passados os primeiros dias da euforia, o caso como tantos outros logo cai no esquecimento.
Meu irmão é advogado, doze anos mais velho que eu, dono de um escritório de advocacia e de uma imobiliária. Acho estranho quando o chamam de Doutor Neno, deve ser porque sempre entendi que isso não á nome para doutor. Sabendo o quanto eu estava ferrado convidou-me para trabalhar com ele até conseguir algo na minha área.
- Cara, você vai ver, corretor consegue faturar uma boa grana. Logo você pega o jeito.
Como primeiro trabalho e por ser ao lado de casa direcionou-me para o casarão, uma vez que a justiça após três meses liberara o imóvel para o proprietário e este incumbiu o escritório do meu irmão para cuidar de tudo.
- Leozinho, aqui estão as chaves, faça um inventário, anote tudo para fazermos uma limpeza geral na propriedade.
Entro na casa e após acender as luzes me deparo com o ambiente todo empoeirado, móveis, quadros, pisos, lustres carregados de uma energia inexplicável. Cortinas de teias de aranha espalhadas pelos cômodos. Uma barata, mais uma, mais outras, outras mais se alvoroçam por todo ambiente e algumas rodeiam meus pés. Por sorte nunca tive aversão ao inseto, mas em quantidade excessiva é de dar nojo.
Penso que um dia aquilo fora habitado e agora as baratas dominam o fétido lugar. Vêm à minha mente trechos da obra Metamorfose, de Kafka. Sinto todo o meu corpo se arrepiar, um calafrio percorre de cima a baixo. A verdade é que estou quase me cagando todo. Deveria ter trazido mais uma pessoa.
Decido que irei começar de cima e logo subo as escadas. São três dormitórios, um corredor e um banheiro ao centro. Abro o primeiro e dou de cara com o que seria o aposento da jovem mulher que por vezes ficava debruçada na janela a observar o movimento da rua. Apesar do pó havia sobre o leito vestígios de um lençol branco alinhadamente estendido e travesseiros simetricamente distribuídos. Junto à janela uma cadeira velha. Abro um armário localizado em lado oposto ao da cama, o cheiro de naftalina logo é percebido, vejo algumas peças de roupas femininas penduradas nos cabides.
Temo em abrir as gavetas, elas estão trancadas. Forço uma delas que se abre sem maiores dificuldades, deparo-me com um caderno de capa azul em cima de muitas receitas médicas e fotos amareladas, colocadas ali como que propositadamente para que alguém as encontrasse.
O suor escorre pelo meu rosto. Abro a veneziana na tentativa de amenizar a penumbra e sento-me na cadeira, começo a folheá-lo e me encanto com a delicadeza da caligrafia, traçados perfeitos como se escrito com uma pena fina. Manuseio algumas daquelas velhas fotos estampando um casal segurando uma criança no colo, em outra uma menina num balanço. Curioso, noto que em nenhum dos retratos os personagens sorriem.
Passo então à leitura do conteúdo do caderno. Primeira página: “Diário de uma sonhadora sem esperança de vida” – “Numa certa data nasci – numa data certa partirei.”
Segunda página: “A solidão é real, a vida uma incerteza.”
Passo adiante e paro na página em que a autora narra, “Nos mudamos para uma nova casa.”
“Hoje é o primeiro dia em que saio à janela. Vi muitas pessoas pela rua, mas apenas um rapaz de cabelos loiros encaracolados saindo da casa em frente me chamou a atenção. Lembra um anjinho.”
“Não suporto mais tantos medicamentos. Estou extenuada, enjoada do Doutor Hélio por todos esses anos a me medicar.”
Adiante: “Hoje ao abrir a janela fiquei por algum tempo a observar, porém não vi o anjinho”.
“Esta manhã pude ver o jovem saindo da casa andando apressadamente. Anjo não deveria andar e sim voar. Parece que ele me viu.”
Prosseguindo: “Estou muito debilitada. As drogas ministradas já não fazem mais efeito. A única felicidade sentida nesses últimos dias é poder ver o meu Querubim.”
“Esta noite sonhei com o meu anjinho, ele veio me buscar.”
“Daqui pude ver o meu anjinho com mais detalhes, ele é muito mais bonito que quando aparece nos sonhos.”
“Não suporto mais tomar os medicamentos. Vou fazer o que o meu anjo mensageiro instruiu em sonho, viajo e levo todos comigo amanhã mesmo, inclusive o doutor.”
“Nesta manhã vi o meu anjinho e discretamente mandei o primeiro e único beijo para ele. Talvez tenha sido a última vez que o tenha visto. Creio que tenha percebido.”
Para minha decepção a metade da última página fora arrancada, como uma vida ceifada. Apenas a parte superior da folha permite leitura: “Ao meu anjinho rogo perdão. Saudades levarei. Todos se foram, agora chegou aminha vez de...”